05 junho 2025

Admirável mundo novo

Em meio à atração econômica da “Nova Rota da Seda” da China e a pressão política dos EUA contra a influência de Pequim na América Latina, resta ao Brasil uma terceira via: a do “pragmatismo responsável”, do chanceler Azeredo da Silveira, a política altiva e independente que o Itamaraty adotou nos momentos mais difíceis do nosso período militar: são os nossos interesses soberanos que indicarão o melhor caminho

Xi Jinping durante visita ao Brasil (Foto: Isac Nóbrega/PR)

Duas matérias publicadas no Estadão relacionadas com a China me pareceram particularmente relevantes: o artigo do colunista argentino do The Miami Herald, Andres Oppenheimer, intitulado A guerra pela América Latina, e o relato do sócio da plataforma para startups Startse, Mauricio Benvenutti, do que presenciou na sua recente passagem por aquele país: “O que vi em 3 semanas na China”. Combino estas análises com uma matéria da France Presse intitulada EUA advertem contra planos da Rota da Seda.

Começo pelo artigo de Oppenheimer, segundo o qual “o anúncio de Xi Jinping de uma linha de crédito de US$ 9,1 bilhões em investimentos em infraestrutura e isenções de visto para países latino-americanos é apenas o exemplo mais recente de como a China está aproveitando a agenda negativa de Donald Trump na região. Xi fez o anúncio durante a cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), em Pequim, no dia 13. Lá, ele apresentou a China como o “mocinho do filme”, em contraste com os aumentos de tarifas, os cortes de ajuda externa e as restrições à imigração impostos por Trump”… “Além disso, o presidente chinês anunciou uma política de entradas sem visto para turistas de Brasil, Argentina, Chile, Peru e Uruguai. A China também convidará 300 políticos latino-americanos e caribenhos para visitar o país anualmente nos próximos três anos”.

Vamos, agora, para o segundo artigo, no qual Benvenutti, um gaúcho que criou um dos maiores fundos de investimentos no Brasil e agora reside no Vale do Silício, na Califórnia, relata suas recentes experiências em Pequim, Xangai, e até no interior da China.

‘Superapps não são apenas redes sociais ou meios de pagamento, mas também grandes ecossistemas digitais’

Palavras suas: “…Vi muita coisa. Primeiro, WeChat e Alipay facilitam demais a vida. Esses superapps não são apenas redes sociais ou meios de pagamento, mas também grandes ecossistemas digitais para fazer compras, pedir comida, pagar faturas, chamar um DiDi – o Uber chinês – e acessar vários outros serviços”…

“Na JD.com, um dos maiores varejistas digitais do mundo, robôs gerenciam boa parte dos armazéns e dos centros de distribuição sem intervenção humana. No Asia No.1, o maior parque logístico inteligente do mundo, mais de 10 mil robôs de classificação processam até 4,5 milhões de pacotes diários com 99,99% de precisão”…

“No Ant Group, dono do Alipay, a visão é de que o futuro dos bancos não está mais nos bancos, mas em plataformas digitais que usam IA para atender a clientes, gerenciar contas, sugerir investimentos… Para fazer tudo. Aliás, em muitos lugares você pode pagar com seu rosto ou palma da mão. Já o dinheiro físico? Cada vez mais raro, representando só 7% do valor total das transações no país. Peguei o trem-bala de Pequim a Xangai – uma distância como São Paulo a Porto Alegre em apenas 4 horas. A China tem mais trilhos de alta velocidade que o resto do mundo combinado”… Como se não bastasse… “Também entrei em um carro voador da Vertaxi. Há mais de 250 empresas desenvolvendo essa tecnologia na China, fazendo o país deter 50% do mercado global desse tipo de veículo”…

Assustador? Admirável (?) mundo novo!

‘Este país, cujo quotidiano se distancia cada vez mais do nosso com suas inovações e progresso tecnológico, que de tão impressionantes até levantam dúvidas, tem-nos buscado com cada vez maior frequência’

Este país, cujo quotidiano se distancia cada vez mais do nosso com suas inovações e progresso tecnológico, que de tão impressionantes até levantam dúvidas, tem-nos buscado com cada vez maior frequência. Um exemplo deste empenho é a quantidade de visitas que o presidente Xi Jinping já realizou ao Brasil nestes últimos anos, tanto para participar de eventos dos quais fomos anfitriões, como a VI Cúpula do Brics, em Fortaleza, em 2024, quanto visitas bilaterais propriamente ditas, como em novembro do ano passado. Sem mencionar as incontáveis reuniões entre autoridades e especialistas de várias áreas, tanto cá como lá. 

Em comparação, Donald Trump jamais esteve no Brasil, aliás, tampouco na América do Sul. Na realidade ele teria estado apenas uma vez, na Argentina, por dois dias, em novembro de 2018, pelo que pude averiguar.

Aí entra o terceiro fator – fundamental – desta história: a Belt and Road Initiative, a “Nova Rota da Seda”, que a República Popular quer estender ao nosso continente. 

‘A “Nova Rota da Seda” é o “aggiornamento” da antiga, que fez a fortuna da China ao longo dos séculos até que as potências europeias viessem quebrar seu domínio econômico e submetê-la ao iníquo Século das Humilhações’

Como sabemos ela é o “aggiornamento” da antiga Rota da Seda, que fez a fortuna da China ao longo dos séculos até que as potências europeias viessem quebrar, no século XIX/XX, seu domínio econômico e submetê-la ao iníquo Século das Humilhações, raiz de tudo o que aconteceu posteriormente na sua história. 

Só que esta nova rota não comercia mais seda, chá, porcelana, como na sua versão primitiva, mas visa estabelecer uma ligação entre a Ásia, a Europa e a África em setores de tecnologia de ponta. 

‘Restava a América Latina… Não mais, pois ela já o fez: sete países sul-americanos já participam da iniciativa’

Restava a América Latina… Não mais, pois ela já o fez: sete países sul-americanos já participam da iniciativa: Venezuela, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Argentina e Uruguai. A China foi ainda mais longe e assinou acordos de livre comércio com vários deles, incluindo Chile, Equador e Peru. Finalmente, durante a recente reunião da CELAC, em Pequim, a Colômbia aderiu à iniciativa. 

Por enquanto o Brasil ainda se recusa a fazê-lo.

Por fim, quero abordar a última matéria, da AFP, que mencionei acima. Segundo o texto, “os EUA vão se opor ‘energicamente’ aos projetos da Rota da Seda na América Latina. A advertência foi feita pelo Departamento de Estado depois que a Colômbia aderiu ao megaprojeto de infraestrutura de Pequim. Washington pretende usar seu poder no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) contra projetos na Colômbia e ameaça fazer o mesmo em outros países que aderirem ao programa.” 

Evidentemente, os projetos chineses sem a participação do Brasil, o maior e mais importante país da região, perdem muito do seu propósito. Principalmente pelo que eles já investiram em nosso território…e pelo que planejam investir.

‘Que opções/alternativas nos restam? Para onde ir: em direção aos ávidos “comunistas” da Nova Rota da Seda, ou permanecermos irrelevantes no Ocidente central de Trump‘

Em resumo, somos fundamentais neste projeto. Mas quanto é esta iniciativa fundamental para nós? Que opções/alternativas nos restam? Para onde ir: em direção aos ávidos “comunistas” da Nova Rota da Seda, ou permanecermos irrelevantes no Ocidente central de Trump (ele já afirmou que não necessita do Brasil…)? Seria trocar uma dependência – nossa velha conhecida – por outra, esta desconhecida? Serão estas as nossas únicas opções?

Isto me parece raso – até um pouco exemplo do complexo de “vira-lata” subserviente, condição na qual alguns do nosso mundo político insistem em nos manter. Como escapar deste “fatalismo civilizacional”?

Resta, para mim, uma terceira via: a do “pragmatismo responsável”, do chanceler Azeredo da Silveira, a política altiva e independente que o Itamaraty adotou nos momentos mais difíceis do nosso período militar, e que nos levou, por exemplo, a transferir, em 1974, o nosso reconhecimento do país “China” de Taipé para Pequim: são os nossos interesses soberanos que indicarão o melhor caminho! A História provou que estávamos corretos.

Das escolhas acertadas depende o nosso futuro, como percebemos…

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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