Agro-suicídio: desmatamento põe em risco agronegócio e segurança alimentar no Brasil e no mundo
A proteção da floresta amazônica não é apenas vital para a biodiversidade e o bem-estar das comunidades locais, mas também desempenha um papel fundamental na estabilidade do clima local e regional, bem como na sobrevivência do agronegócio e na segurança alimentar global.
A proteção da floresta amazônica não é apenas vital para a biodiversidade e o bem-estar das comunidades locais, mas também desempenha um papel fundamental na estabilidade do clima local e regional, bem como na sobrevivência do agronegócio e na segurança alimentar global.
Por Argemiro Teixeira Leite Filho*
A atual situação de seca na Amazônia, que ganhou um novo nível de gravidade este ano, sofre influência de duas condições climáticas excepcionais: a temperatura anormalmente alta das águas do Atlântico Norte e a presença do fenômeno El Niño. Apesar dessas condições climáticas notáveis, no entanto, também são visíveis as marcas humanas nessa tragédia ambiental.
A rápida progressão dessa seca e sua intensidade destacam a necessidade de ações de resposta e medidas de apoio urgentes para enfrentar essa crise. Neste sentido, a proteção da floresta amazônica não é apenas vital para a biodiversidade e o bem-estar das comunidades locais, mas também desempenha um papel fundamental na estabilidade do clima local e regional, bem como na sobrevivência do agronegócio e na segurança alimentar global.
A parcela do agronegócio que apoia uma agenda antiambiental está testando a capacidade e limites da própria natureza e pode acabar sendo diretamente afetada por transformações que impactam a agricultura e a segurança alimentar não só do Brasil, mas de todo o mundo.
Extensivas pesquisas na Amazônia e Cerrado têm lançado luz sobre as intrincadas interações entre desmatamento, mudanças climáticas e as economias local, regionais e global. Os estudos que nosso grupo de pesquisadores das Universidades Federal de Minas Gerais (UFMG) e de Bonn, na Alemanha, realizou mostram que a atual trajetória de desmatamento está diminuindo a capacidade da Amazônia e do Cerrado em regular os padrões de chuva, colocando os sistemas agrícolas do país – grande parte de agricultura de sequeiro (alimentada por chuvas) – no caminho do “agro-suicídio”.
O “suicídio” agrícola e a escassez de recursos naturais
A chuva gerada pela floresta da Amazônia, da qual o agronegócio depende, torna-se cada vez mais escassa. A perda de floresta generalizada resulta em perdas hidrológicas e consequentemente econômicas. E estes efeitos já são uma realidade: em 2019, um quarto do sul da Amazônia brasileira já atingiu o limite crítico de perda de floresta. Em algumas regiões, a redução das chuvas devido ao desmatamento já chega a comprometer 48% do volume total registrado no ano.
Essas áreas mais afetadas são, preocupantemente, grandes regiões produtoras de soja ou onde a agricultura tende a se expandir no futuro, como as regiões Nordeste e Sudeste do Estado do Pará, Oeste do Estado do Maranhão, parte central de Rondônia e, principalmente, o cinturão da soja no norte do Mato Grosso. E caso o desmatamento continue no mesmo ritmo, as perdas serão enormes. Nosso estudo estima que elas podem chegar a R$ 5,7 bilhões por ano.
Em suma, nossos estudos destacaram que o desmatamento não apenas afeta o clima global, mas também tem impactos significativos em níveis regionais e locais. A remoção de florestas resulta em temperaturas mais elevadas, levando a ondas de calor mais frequentes e intensas, o que prejudica diretamente a saúde das comunidades locais e a agricultura, altamente sensível às mudanças climáticas.
Além disso, o desmatamento pode acionar feedbacks climáticos que amplificam as mudanças climáticas, como a diminuição da evapotranspiração devido à perda de vegetação, que pode reduzir ainda mais a precipitação e criar um ciclo de seca e desmatamento.
Análise das estações chuvosas
Nossas pesquisas na área tiveram início em 2019, quando nossa equipe conduziu uma análise detalhada dos dados das estações chuvosas na Amazônia, usando informações de 112 pluviômetros distribuídos pelo sul da região. Complementando essa análise, empregamos conjuntos de dados anuais sobre o uso da terra, cobrindo o período de 1974 a 2012. Os resultados deste estudo foram elucidativos: a cada aumento de 1% no desmatamento, observou-se um atraso no início da estação chuvosa de 0,12 a 0,17 dias.
Além disso, demonstramos de maneira clara que a probabilidade de início precoce da estação chuvosa diminui à medida que a fração de desmatamento local aumenta. Essas descobertas aprofundaram nossa compreensão das implicações diretas do desmatamento na estabilidade climática da região, fornecendo informações valiosas para orientar políticas públicas.
Ultrapassando limites críticos de desmatamento
Na sequência, a pesquisa expandiu-se para explorar os limites críticos do desmatamento na região sul da Amazônia Brasileira. Ampliamos a área de estudo e investigamos a relação entre o desmatamento histórico e os padrões de precipitação em diferentes escalas geográficas. Os estudos, realizados em 2021, também avaliaram os impactos de diferentes cenários de políticas de desmatamento na agricultura local.
Os resultados desses estudos foram igualmente impressionantes: a perda de floresta em até 55-60% das áreas de grade de 28 km levou a um aumento na precipitação, mas ultrapassar esse limite resultou em uma redução drástica e irreversível nas chuvas. Essa descoberta enfatizou a complexidade das interações entre o desmatamento e o clima, também com implicações significativas para o meio ambiente e a economia local.
Além da Amazônia, o desafio do Cerrado
Nos últimos dois anos, nossa equipe voltou sua atenção também para o Cerrado. A expansão da agricultura em larga escala transformou esse bioma em um importante polo agrícola, contribuindo com 63% da produção de grãos no Brasil e 20% da produção global de soja. Preocupantemente, essa expansão desenfreada no Cerrado está em ascensão, com um alarmante aumento de 17% nas taxas de desmatamento em 2023.
Nesse contexto, nos debruçamos sobre o que vem acontecendo com o clima do Cerrado, que identificamos ter experimentado, em média, um atraso de 1 mês e 26 dias no início da estação chuvosa agrícola, uma redução de 16% no volume de chuvas e um aumento de 2°C na temperatura máxima desde a década de 1980.
A situação atual e a luz no fim do túnel
É inegável que fatores climáticos extraordinários desempenham um papel significativo na grave seca atual na Amazônia, principalmente no estado do Amazonas. O cenário atual é agravado pela convergência de duas condições climáticas notáveis. Em primeiro lugar, a temperatura das águas do Atlântico Norte está anormalmente alta. Isso tem efeitos diretos na circulação atmosférica na região e pode afetar os padrões de chuva.
Em segundo lugar, a presença do fenômeno El Niño, conhecido por seu impacto em todo o sistema climático global, está sendo observada. Esses fatores combinados resultaram na estiagem se estabelecendo de maneira muito mais rápida e intensa do que o normal. Essa combinação única de eventos climáticos está gerando desafios excepcionais para as comunidades e as autoridades locais, uma vez que os recursos hídricos, que são essenciais para a vida na região amazônica, estão em níveis historicamente baixos.
A essas condições naturais soma-se a ação humana. À medida que as árvores são derrubadas, a capacidade da floresta de realizar a evapotranspiração e liberar umidade na atmosfera é reduzida, afetando a formação de nuvens e, consequentemente, a ocorrência de chuvas. Além disso, as mudanças nos padrões de vento e nas correntes atmosféricas, influenciadas pela presença da floresta, são prejudicadas pelo desmatamento, dificultando o transporte de umidade para outras partes do Brasil. Isso resulta em uma diminuição da precipitação, intensificando as secas prolongadas e afetando a disponibilidade de água.
As extensivas pesquisas que têm sido realizadas por diversos pesquisadores na região da Amazônia e no bioma do Cerrado, ambos de vital importância para o Brasil, ressaltam a necessidade de se preservar essas áreas para o bem-estar do planeta. Essas pesquisas ultrapassam o âmbito acadêmico e são reconhecidas internacionalmente, tendo sido incorporadas em relatórios da FAO e ganhado destaque no relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas IPCC AR6.
Elas são relevantes na formulação de políticas ambientais globais, e também desempenham um papel crucial na elaboração de políticas de conservação florestal, redução de emissões de gases de efeito estufa e promoção da biodiversidade em ambos os biomas. Elas fornecem uma base sólida de dados científicos que embasam tomadas de decisões e estratégias de conservação em âmbito regional e global, impactando diretamente na preservação do meio ambiente e no planejamento de políticas para um futuro mais sustentável, não apenas para o Brasil, mas para todo o mundo.
E se, por um lado, elas mostram um cenário preocupante, por outro elas apontam que há luz no fim do túnel: estimamos que a aplicação efetiva de políticas de conservação, incluindo a plena implementação do Código Florestal e incentivos adicionais para a conservação, podem reduzir em 24% o total da área que atingiria o limite crítico de redução de chuvas até 2050.
A mensagem é clara: o Brasil precisa retornar ao caminho da integração entre a produção agrícola sustentável e a conservação da Amazônia. Esse caminho inclui a conservação de áreas naturais, a adoção de práticas agrícolas de baixo impacto e o investimento em tecnologias agrícolas mais eficientes e ecologicamente corretas. Além disso, é essencial reconhecer que o desmatamento excessivo prejudica a imagem internacional do setor agrícola brasileiro, levando muitos países e empresas a se comprometerem com a proteção ambiental e a relutarem em fazer negócios com setores que contribuem para a destruição do meio ambiente.
Portanto, a preservação dos biomas brasileiros é fundamental não apenas pela preservação ambiental, mas também para a sobrevivência do agronegócio e para a segurança alimentar global. Não investir em estratégias de conservação ambiental é uma atitude anti-agronegócio. Sem a floresta não há chuvas, e na falta de chuvas, sobram prejuízos. E a conta já chegou para o agronegócio.
*Argemiro Teixeira Leite Filho é pesquisador do Centro de Sensoriamento Remoto (CSR), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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