20 março 2024

A abertura e a internacionalização do futebol brasileiro

Aumento do limite de atletas estrangeiros em jogos do campeonato nacional gera polêmica, mas está alinhado a uma tendência global de migração e intercâmbio de jogadores. Para pesquisador, o Brasil já é o maior exportador de futebolistas no mundo, e abertura do mercado até demorou para acontecer

Aumento do limite de atletas estrangeiros em jogos do campeonato nacional gera polêmica, mas está alinhado a uma tendência global de migração e intercâmbio de jogadores. Para pesquisador, o Brasil já é o maior exportador de futebolistas no mundo, e abertura do mercado até demorou para acontecer

O jogador uruguaio Luis Suárez, do Grêmio, escolhido o destaque do Campeonato Brasileiro (Foto: Lucas Uebel/Grêmio FBPA)

Por André Luís Nery*

No dia 5 de março de 2024, os clubes da Série A do futebol nacional aprovaram o aumento do limite de atletas estrangeiros em jogos do Campeonato Brasileiro, passando de sete para nove jogadores. Além disso, os clubes podem contratar mais do que nove estrangeiros, mas só poderão escalar nove durante os jogos da competição. A alteração foi alvo de críticas da imprensa esportiva, de forma exagerada na maioria das vezes.

“É o início da morte do futebol brasileiro. Nove estrangeiros no time, não vai ser mais campeonato brasileiro, vai ser campeonato castelhano, porque vai ter boliviano, equatoriano, que não vão ser nem grandes jogadores, vão ser jogadores bonzinhos, e vão simplesmente tirar lugar dos jogadores brasileiros. Os brasileiros bons vão embora, esses vão embora rapidamente. Eu acho um absurdo”, disse o jornalista Renato Mauricio Prado, durante o programa “Fim de Papo”, do portal UOL.

‘A ampliação do número de estrangeiros pode ser algo até positivo para o futebol brasileiro, já que o nível técnico do Brasileirão caiu muito nos últimos anos’

Na realidade, a ampliação do número de estrangeiros pode ser algo até positivo para o futebol brasileiro, já que o nível técnico do Brasileirão caiu muito nos últimos anos, principalmente devido à venda de suas principais estrelas para o futebol europeu. Dessa forma, atletas de outros países sul-americanos podem suprir o espaço deixado. E essa abertura mais ampla do mercado de trabalho para jogadores estrangeiros até demorou para acontecer no Brasil, se compararmos com o futebol europeu.

Na Europa, tudo mudou com a Lei Bosman. Esta lei leva o nome do jogador belga Jean-Marc Bosman. No final da temporada 1989/90, o Liège (Bélgica), clube no qual jogava o atacante, propôs uma renovação de seu contrato com um salário quatro vezes menor. Como não houve acordo, Bosman foi colocado na lista de jogadores negociáveis, fixando um valor no seu passe. Então, o Dunkerque, da segunda divisão francesa, contatou o atacante e chegou a um pré-acordo com o Liège para contar com o jogador por empréstimo. No final da negociação, porém, o Liège não deu a liberação e ainda suspendeu o atleta. Bosman, porém, considerou que seu clube e as normas de transferências da União Europeia de Futebol (UEFA) eram responsáveis por sua frustrada ida para o Dunkerque. Em 8 de agosto de 1990, ele apresentou ante ao juizado de primeira instância de Liège uma ação contra seu clube e a federação local.

Depois de parecer favorável, a demanda seguiu para o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia (atual Tribunal de Justiça da União Europeia), em Luxemburgo. No dia 15 de dezembro de 1995, o tribunal não só deu ganho de causa ao atacante belga como iniciou uma revolução no futebol mundial. 

‘A sentença da justiça europeia decretou a livre circulação de atletas profissionais na União Europeia e o fim do passe, vínculo que prendia os jogadores aos clubes, mudando o destino do futebol europeu e mundial’

A sentença da justiça europeia decretou a livre circulação de atletas profissionais na União Europeia e o fim do passe, vínculo que prendia os jogadores aos clubes, mudando o destino do futebol europeu e mundial. Para o tribunal, o passe infringia a lei europeia sobre a livre circulação de trabalhadores. Além disso, o regulamento da UEFA diferenciava os jogadores nacionais dos demais profissionais pertencentes a outros Estados comunitários, o que constituía uma afronta à igualdade de condições da legislação do bloco que reconhece o direito de comunitário europeu a todos os cidadãos dos Estados que fazem parte da União Europeia. 

A jurisprudência criada pelo caso acabou provocando uma revolução no mercado de jogadores, já que as vagas para estrangeiros passaram a ser ocupadas por atletas oriundos de fora do bloco regional.

Assim como acontece agora no Brasil, a livre circulação de jogadores dentro da União Europeia foi alvo de críticas, especialmente de políticos de extrema-direita. Em matéria publicada na Folha de S. Paulo, no dia 2 de julho de 2003, o secretário italiano de Bens Culturais e do Esporte, Mario Pescante, disse que o velho continente tornou-se “um verdadeiro supermercado esportivo”. “Precisamos limitar os danos de uma Lei Bosman que hoje faz circular livremente os esportistas dos 15 países comunitários, que logo mais serão 25”, disse Pescante na época.

‘O Brasil é o país que mais exportou jogadores para outras ligas ao redor do mundo. No total, 1.287 jogadores nascidos no Brasil jogam em 145 ligas’

Segundo estudo de 2021 da CIES Football Observatory, centro de estudos do futebol localizado na Suíça, o Brasil é o país que mais exportou jogadores para outras ligas ao redor do mundo. No total, 1.287 jogadores nascidos no Brasil jogavam em 145 ligas nacionais que fizeram parte do estudo. O Brasil aparecia bem à frente da França, com 946 jogadores, e da Argentina, com 780. Em quarto, vinha a Inglaterra, com 494.

O estudo mostrava ainda que Inglaterra e Itália eram os principais importadores de jogadores de futebol. Os clubes profissionais dos dois países empregavam 771 e 695 expatriados, respectivamente. Se não fossem levados em conta os 231 jogadores das demais nações do Reino Unido que atuavam na Inglaterra, a Itália seria o país com maior número de jogadores expatriados.

Essa livre circulação de atletas gerou situações imagináveis no passado. Em 6 de abril de 2001, por exemplo, o Energie Cottbus enfrentou o Wolfsburg sem nenhum jogador alemão no time. Durante a partida, o Energie Cottbus ainda fez três substituições, mas todas envolvendo estrangeiros. Neste jogo, o Energie Cottbus escalou três bósnios, dois húngaros, um croata, um romeno, um polonês, um albanês, um beninense e um brasileiro. O mesmo aconteceu na Itália, em 23 de abril de 2016, quando Inter de Milão e Udinese se enfrentaram em Milão sem nenhum jogador nascido na Itália.

Tal situação ainda é impossível de acontecer no Campeonato Brasileiro, já que o regulamento permite a escalação de apenas nove estrangeiros. No entanto, é algo que não podemos descartar para o futuro.  E ver isso como algo negativo talvez não seja a melhor solução. A própria história do Brasileirão mostra que diversos estrangeiros brilharam aqui. Na última edição, por sinal, um estrangeiro, o uruguaio Luis Suárez, que atuava no Grêmio, foi escolhido o destaque da competição. 


*André Luís Nery é colunista da Interesse Nacional, jornalista, mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam-USP)

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


André Luís Nery é colunista da Interesse Nacional, jornalista, mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam-USP)

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