As Forças Armadas do Brasil devem proteger a democracia – mas sua autonomia e autoimagem pairam sobre a política
O papel dos militares na política é uma tensão permanente e não resolvida no Estado brasileiro. Para cientista político, o país precisa de reformas que fortaleçam o controle civil, pois a noção de que os militares brasileiros são um poder moderador está viva para grandes setores da população
O papel dos militares na política é uma tensão permanente e não resolvida no Estado brasileiro. Para cientista político, o país precisa de reformas que fortaleçam o controle civil, pois a noção de que os militares brasileiros são um poder moderador está viva para grandes setores da população
Por Anthony Pereira*
O ataque aos três prédios que compõem a sede do governo em Brasília, no dia 8 de janeiro, lembrou uma tensão não resolvida no seio do Estado brasileiro: o papel das Forças Armadas.
Como em muitas outras democracias, as Forças Armadas do Brasil devem ser servidoras apolíticas do poder executivo e subordinadas ao seu comandante-em-chefe civil, o presidente. Mas o corpo de oficiais brasileiros às vezes se comporta e fala como o salvador da nação. Ele afirma ser o “poder moderador”, um papel que alguns afirmam ser concedido a eles pelo artigo 142 da constituição de 1988, que descreve os militares como defensores da “lei e da ordem”.
Essa crença é compartilhada por uma parcela significativa da população – e a violência de 8 de janeiro foi a manifestação física da ideia. Uma multidão atacou os prédios que abrigavam os principais ramos do governo enquanto pedia a tomada do poder pelas Forças Armadas.
Temia-se algum tipo de tentativa de golpe desde que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi derrotado em uma eleição apertada em novembro do ano passado por Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente entre 2003 e 2010. Os apoiadores de Bolsonaro acreditavam que seu líder poderia induzir o Exército a fornecer força na tentativa de colocar Bolsonaro de volta ao poder e derrubar a eleição de 2022. Mas isso não aconteceu. Agora parece que as Forças Armadas usaram Bolsonaro de forma mais inteligente do que ele as usou.
Sob Bolsonaro, os militares ocuparam mais de 6.000 empregos na burocracia federal. Conseguiram a isenção da reforma da Previdência, simbolizando sua posição privilegiada dentro do Estado.
Conseguiram o controle de fato sobre o Ministério da Defesa e sufocaram a criação de um quadro de especialistas civis em defesa e segurança. E ganharam orçamentos generosos e grandes programas de armas.
Depois que Bolsonaro perdeu a eleição, as Forças Armadas ficaram de lado enquanto os seguidores de Bolsonaro estabeleceram acampamentos fora dos quartéis militares em todo o país. E sua resposta às multidões que invadiram os prédios do governo em 8 de janeiro foi criticada como lenta e, em alguns casos, inadequada.
Grande demais para suas botas
Mas antes de parabenizar as Forças Armadas por não terem participado de um golpe de Estado, é importante reconhecer como sua visão auto-engrandecedora de sua missão política continua sendo um problema para a democracia brasileira.
Exemplos da expressão dessa visão são abundantes. Um ocorreu recentemente. Em 30 de dezembro de 2022, Bolsonaro saiu de Brasília para a Flórida, nos EUA, sem ter reconhecido sua derrota na eleição. Pelo contrário, ele repetiu suas alegações de que a eleição havia sido fraudulenta e deixou claro que não participaria da cerimônia de posse de Lula, papel tradicional dos presidentes que deixam o poder no Brasil.
A saída de Bolsonaro do país significou que o vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado do Exército, se tornou o presidente interino. E foi nessa qualidade que ele fez um discurso televisionado à nação em 31 de dezembro de 2022, dizendo que líderes que deveriam ter “pacificado e unido a nação em torno de um projeto de país … permitiram que o silêncio ou um protagonismo inoportuno e deletério criasse um clima de caos e desagregação social e de forma irresponsável deixaram que as Forças Armadas de todos os brasileiros pagassem a conta”.
Suas palavras foram interpretadas como uma crítica ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso brasileiro – mas também ao seu próprio ex-presidente Bolsonaro.
Conversa incendiária
A essa altura, milhares de manifestantes estavam acampados do lado de fora das bases do Exército em todo o país, incluindo centenas fora de um quartel em Brasília.
Embora as palavras de Mourão não tenham sido bem recebidas pela maioria desses manifestantes, elas estabeleceram uma dicotomia perigosa. De um lado estavam os chefes oportunistas, irresponsáveis, corruptos, egoístas e arrogantes da suprema corte, do Congresso e de grande parte do Poder Executivo – os políticos por conta própria.
Do outro lado estavam as Forças Armadas, mais antigas que a própria nação e movidas pelos valores da hierarquia, disciplina, ordem e amor à pátria e ao bem comum.
Os manifestantes foram informados de que a eleição havia sido roubada. Eles foram informados de que as ações do Supremo Tribunal Federal – como a anulação da condenação de Lula e as intervenções contra a divulgação de “notícias falsas” nas redes sociais durante a campanha eleitoral – eram ilegítimas e que Lula deveria estar preso.
E assim as esperanças dos manifestantes se voltaram para os fardados que pudessem intervir, como já haviam feito em tantas outras ocasiões na história do país, inclusive na fundação da República em 1889, desencadeada por um golpe militar que derrubou o imperador D. Pedro II.
Essa visão de tutela militar do Brasil, que é apoiada por muitas pessoas – apesar de seu envolvimento na instauração da ditadura militar de 21 anos após o golpe de 1964 –, está profundamente enraizada no país. A transição da democracia no Brasil em meados da década de 1980 foi diferente da de alguns de seus vizinhos, que também derrubaram o governo dos generais no mesmo período.
Na Argentina e no Chile, por exemplo, o retorno a um regime democrático foi acompanhado de justiça de transição, acerto de contas com o passado e reconhecimento de que as Forças Armadas se afastaram de sua missão constitucional.
Isso não aconteceu durante a transição do Brasil e, posteriormente, tentativas limitadas de responsabilização, como a Comissão da Verdade de 2012-2014, foram fortemente rejeitadas pelos militares. Mas, independentemente das razões de sua existência, a noção de que os militares brasileiros são um poder moderador, e devem ser chamados como garantidores da política brasileira sempre que houver uma crise, está viva para grandes setores da população.
Reformas importantes destinadas a fortalecer o controle civil sobre os militares estão sendo propostas e sua consideração gerará debates vigorosos. Mas a crença generalizada de que as Forças Armadas são guardiãs da nação provavelmente permanecerá viva muito depois de Bolsonaro ter desaparecido na história.
*Anthony Pereira é diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University.
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Anthony W. Pereira é diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na Escola de Assuntos Globais do King’s College London, onde dirigiu o King’s Brazil Institute.
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