Caminhos da Democracia em Tocqueville, Levitsky e Trump – Declínio democrático: A democracia tem salvação?
Da promessa americana de Tocqueville ao alerta contemporâneo de Levitsky, os caminhos do declínio democrático diante da ascensão de lideranças autoritárias, do enfraquecimento das instituições e da fragilidade dos sistemas políticos. A partir de EUA, Europa e América Latina, investiga-se: a democracia ainda pode ser salva ou já vivemos seu ocaso histórico?

Em meados do século XIX, Tocqueville descrevia a decadência dos regimes aristocráticos europeus e anunciava a emergência do mundo da democracia, inspirado na experiência da América.
Quase dois séculos mais tarde a equação se inverte. Trump avança na desconstrução dessa mesma democracia e defende regimes autoritários.
Nesse novo mundo, Levitsky analisa como as Democracias Morrem e, em seguida, diante do episódio do 6 de janeiro de 2021, procura explicar Como Salvar a Democracia.
A democracia tem salvação? Ou estamos no fim da Era das Democracias?
Diferentes ameaças à democracia – Visões de Tocqueville e Levitsky
A Democracia na América oferecia a fotografia de uma democracia em que igualdade e liberdade se equilibravam. Mas continha também o filme em que, no longo prazo, esses dois vetores se desequilibravam, deformavam os fundamentos da democracia e produziam a tirania da maioria.
Para Tocqueville, o desequilíbrio tinha diversas origens. A primeira era a tendência de democracias privilegiarem a igualdade sobre a liberdade. A primazia da igualdade produzia um individualismo que afastava o indivíduo de preocupações situadas além do seu pequeno mundo da família e do trabalho.
‘O distante universo da política se apequenava, os rumos do país não mais refletiam o embate de ideias que molda o jogo democrático, e esse vácuo era ocupado por governantes eleitos, mas autoritários – o ovo da serpente da tirania da maioria’
Assim, o distante universo da política se apequenava, os rumos do país não mais refletiam o embate de ideias que molda o jogo democrático, e esse vácuo era ocupado por governantes eleitos, mas autoritários – o ovo da serpente da tirania da maioria.
Enquanto Tocqueville visualizava, no século XIX esse desvirtuamento da democracia como uma possibilidade futura, Levitsky e Ziblatt se confrontam, na segunda década do século XXI, com uma recessão democrática real, nos EUA e no mundo. Ressaltam que, nos EUA, esse fenômeno tem origem muito anterior a Trump.
“Durante a maior parte da história dos Estados Unidos, os partidos políticos priorizaram a guarda dos portões, em detrimento da abertura… Por um lado, não era muito democrático. … Por outro lado, o sistema de convenções era um guardião eficiente, pois filtrava de maneira sistemática candidatos perigosos.” (1)
Figuras com grande apelo popular, tais como Henry Ford, George Wallace e Joseph McCarthy, sempre tiveram suas ambições políticas barradas pelos guardiões do partido.
Os Guardiões da Democracia saem – Os outsiders entram.
Entretanto, a partir de 1972, a grande maioria dos delegados das convenções de democratas e republicanos passou a ser eleita em primárias vinculantes ou em assembleias estaduais. “Primárias vinculantes eram certamente mais democráticas. Mas não seriam democráticas demais? Ao colocar as indicações presidenciais nas mãos dos eleitores, as primárias vinculantes enfraqueceram a função dos partidos como guardiões da democracia, abrindo a porta para outsiders.” (2)
Esse processo vai desvirtuando o sistema político e culmina na escolha de Trump como candidato do Partido Republicano. “Mesmo depois que ele começou a crescer abruptamente nas pesquisas, poucas pessoas levaram sua candidatura a sério. … Contudo, o mundo havia mudado. Os guardiões do partido eram apenas uma sombra do que tinham sido, por duas razões principais. Uma foi o aumento dramático da disponibilidade de dinheiro de fora. …O outro grande responsável … foi a explosão da mídia alternativa, sobretudo noticiários de TV a cabo e redes sociais … Embora muitos fatores tenham contribuído para o sucesso político atordoante de Trump, sua ascensão à Presidência é, em boa medida, uma história de guarda ineficaz dos portões”. (3)
‘O diagnóstico de Levitsky e Ziblatt a respeito da grande falha do sistema eleitoral norte-americano (“guarda ineficaz dos portões”) se aproxima do argumento de Tocqueville sobre a necessidade de introduzir núcleos aristocráticos na sociedade democrática’
O diagnóstico de Levitsky e Ziblatt a respeito da grande falha do sistema eleitoral norte-americano (“guarda ineficaz dos portões”) se aproxima do argumento de Tocqueville sobre a necessidade de introduzir núcleos aristocráticos na sociedade democrática. Seu melhor exemplo é a figura do juiz – situado acima do homem comum –, capaz de introduzir certa racionalidade e de evitar a demagogia. O juiz aristocrático na democracia de Tocqueville se transformou no guardião dos portões da estabilidade democrática norte-americana até os anos 1970.
Como as Democracias Morrem também se aproxima dos Federalistas. “Nossos fundadores estavam profundamente preocupados com a salvaguarda da democracia. Eles se debateram com um dilema que, em muitos aspectos, nos acompanha até hoje. Por um lado, eles não procuravam um monarca, mas um presidente eleito refletindo a vontade do povo. Por outro, não confiavam plenamente na capacidade do povo de avaliar a aptidão de candidatos para o cargo”.
“A história nos ensinará”, escreveu Alexander Hamilton em O Federalista, que “entre os homens que subverteram a liberdade de repúblicas, a maioria começou cortejando obsequiosamente o povo; começaram demagogos e terminaram tiranos.”
“O cargo de presidente raramente caberá a homens que não sejam dotados em grau eminente das qualificações necessárias.” Homens com talento para “intrigas baixas e as pequenas artes de popularidade” seriam removidos por filtragem. O Colégio Eleitoral tornou-se assim o guardião original de nossa democracia.” (4)
Esses ideais que inspiraram a democracia nascente foram preservados por quase dois séculos, com poucas exceções. Entretanto, como vimos, a partir de 1972, a maioria dos delegados do Colégio Eleitoral passou a ser eleita, o que “abriu a porta para outsiders”.
Ameaças à democracia na Europa – O crescimento da extrema direita.
Além dessa falha inerente ao sistema político norte-americano, dois fenômenos de outra ordem contribuíram para a recessão democrática dos EUA nas últimas décadas – a redução do crescimento econômico e o aumento da desigualdade.
O primeiro está ligado à crise econômica de 2008/2009 e aos efeitos da pandemia. O segundo derivou do avanço tecnológico e dos rumos da globalização que, nas palavras proféticas de Dani Rodrik, “foi longe demais”.
Outros desdobramentos, como a desindustrialização e a precarização da mão de obra, agravaram a desigualdade, que alimentou o descrédito no sistema político e o desencanto com a democracia. O desfecho foram os dois mandatos presidenciais de Trump, com efeitos devastadores para a democracia nos EUA e no mundo.
‘O declínio democrático não atinge apenas os EUA. Na Europa, a emergência de governantes autoritários e o crescimento do apoio popular a partidos de extrema direita ameaçam igualmente a democracia, ainda mais fragilizada com a reeleição de Trump’
O declínio democrático não atinge apenas os EUA. Na Europa, a emergência de governantes autoritários e o crescimento do apoio popular a partidos de extrema direita ameaçam igualmente a democracia, ainda mais fragilizada com a reeleição de Trump.
Suas declarações bombásticas comprometem o futuro da democracia e do Ocidente : a redução dos gastos militares dos EUA no continente; as críticas à Otan e as ameaças de retirada dos EUA; o apoio ao invasor Putin e o abandono do presidente do país invadido, Zelenski; o enfraquecimento da aliança com a União Europeia; as acusações ameaçadoras a vizinhos – incorporação do Canal do Panamá, transformação do Canadá no 51º estado norte-americano, mudança da designação geográfica do Golfo do México para Golfo da América.
O resultado dessas políticas para o papel dos EUA no mundo é o declínio de sua influência global e o agravamento das tensões econômicas e geopolíticas.
As democracias já estavam fragilizadas na União Europeia, mas Trump II alimentou esse descaminho. A Aliança pela Alemanha (AfD), de extrema direita, já é a terceira força política no país, com crescimento mais forte que as duas maiores agremiações – União Democrata-Cristã (CDU) e Partido Social-Democrata (SPD). Na Itália, Georgia Meloni, primeira-ministra desde 2022, apesar de gestão mais moderada, defende a organização fascista Movimento Socialista Italiano. Na França, a agenda reformista de Macron se revela impopular e, apesar da inelegibilidade de Marine Le Pen, seu partido ganha força e adeptos. Na Hungria, Viktor Orbán consolida a mais robusta guinada autoritária na União Europeia. “O primeiro-ministro mudou a composição de vários órgãos em teoria independentes – a Procuradoria-Geral, o Escritório Central de Estatísticas, o Tribunal de Contas, a Corte Constitucional – substituindo seus membros por aliados partidários depois que voltou ao poder em 2010. … Orbán aumentou o número total de membros da Corte Constitucional, mudou as regras de nomeação … e encheu a corte de partidários.” (5)
Populismos na América Latina – Chávez à esquerda, Fujimori à direita
Nos países da América Latina a democracia também esteve historicamente ameaçada, sendo com frequência derrotada por ditaduras militares ou civis. Levitsky e Ziblatt estudam em maior detalhe duas trajetórias de autoritarismo – Venezuela e Peru.
“Por mais de 30 anos e, nos anos 1970, [a Venezuela] era vista como uma democracia modelo numa região infestada por golpes de Estado e ditaduras”. (6). Entretanto, como a maioria dos países latino-americanos, a Venezuela viveu uma prolongada recessão na década de 1980, o que levou ao golpe abortado de 1992, liderado por Chávez. Esse, a partir de então, construiu uma aliança com o ex-presidente Rafael Caldera e foi eleito presidente em 1998, ao derrotar o candidato do establishment.
‘Ao examinar a trajetória de Chávez, Levitsky e Ziblatt traçam um paralelo com a ascensão de Hitler e Mussolini. Ressaltam as enormes diferenças, mas igualmente as semelhanças espantosas entre os três para chegar ao poder’
Ao examinar a trajetória de Chávez, Levitsky e Ziblatt traçam um paralelo com a ascensão de Hitler e Mussolini. Ressaltam as enormes diferenças, mas igualmente as semelhanças espantosas entre os três para chegar ao poder. “Não apenas todos eles eram outsiders… mas cada um deles ascendeu ao poder porque políticos do establishment negligenciaram os sinais de alerta e, ou bem lhes entregaram o poder (Hitler e Mussolini) ou então lhes abriram a porta (Chávez). A abdicação de responsabilidades políticas da parte de seus líderes marca o primeiro passo de uma nação rumo ao autoritarismo.” (7)
O outro país latino-americano estudado é o Peru do presidente Alberto Fujimori, que chegou ao poder no início da década de 1990. O país tinha entrado em colapso com o surto inflacionário e com o terrorismo do Sendero Luminoso, que dominava amplas regiões do país. Um poderoso Congresso, hostil ao presidente, indicava juízes e a maior parte dos membros da Suprema Corte. Fujimori passou a atacar sistematicamente o Congresso, fechado em 1992.
“Instituições não facilmente expurgáveis podem ser sequestradas de maneira sutil, por outros meios. Poucos fizeram isso melhor que o conselheiro de inteligência de Alberto Fujimori, Vladimiro Montesinos. … Gravou em vídeos centenas de políticos, juízes, congressistas, empresários, jornalistas e editores de oposição pagando ou recebendo suborno … e depois usou os vídeos para chantageá-los. Ele também mantinha três magistrados da Suprema Corte, dois membros do Tribunal Constitucional e um número inacreditável de juízes e promotores públicos em sua folha de pagamento, fazendo entregas mensais em suas residências. … Nas sombras, porém, Montesinos ajudava Fujimori a consolidar seu poder”. (8)
‘Levitsky indicou que o grande mal dos sistemas políticos da América Latina é o crescimento vertiginoso de populismos. Para ele, a razão maior para esse fenômeno reside no lado da oferta, ou seja, a incapacidade do Estado de fazer o básico, de ofertar bens públicos essenciais para a população’
Em seminário na Fundação FHC sobre seu livro, Levitsky indicou que o grande mal dos sistemas políticos da América Latina é o crescimento vertiginoso de populismos. Para ele, a razão maior para esse fenômeno reside no lado da oferta, ou seja, a incapacidade do Estado de fazer o básico, de ofertar bens públicos essenciais para a população. Um Estado politicamente fraco pouco faz para satisfazer as necessidades da população – saúde, educação, segurança e transporte. Três modalidades de instituições falham em seus objetivos – partidos políticos; organizações da sociedade civil; e mídia.
Essa incapacidade do Estado gera insatisfação na população, com corolários que distorcem o jogo político e abalam a democracia: descrédito na política; redução da capacidade do Estado de tributar; marginalização dos partidos políticos; erosão das elites; disfuncionalidade dos grupos de pressão; e incapacidade de controlar a corrupção. O desfecho dessa sequência é o populismo – líderes autoritários, desequilíbrio das contas públicas, violação de direitos humanos e nacionalismo exacerbado.
Notas
1 Levitsky, Stephen. Ziblatt, Daniel. Como morrem as democracias. Editora Schwarcz. 2018.Rio de Janeiro. RJ. P. 48,49,50.
2 Ibidem. P.57.
3 Ibidem. P. 61/62.
4 Ibidem. P. 46/47.
5Ibidem. P. 82.
6 Ibidem. P. 27.
7 Ibidem. P. 29.
8.Ibidem. P. 82.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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