Cartas ao multilateralismo e o chamado ao mutirão
Líderes do Brasil, África do Sul e Espanha defendem que as cúpulas internacionais de 2025 avancem com ações concretas frente às desigualdades, à crise climática e ao déficit de financiamento. Em um mundo multipolar e fragmentado, pedem cooperação e coragem para renovar o multilateralismo e enfrentar os desafios globais.

Foto: Ricardo Stuckert / PR
As grandes reuniões da agenda internacional previstas para 2025 não podem ser “apenas mais-do-mesmo”, precisam entregar “progressos reais” para o enfrentamento dos desafios do planeta. Estas foram as palavras do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e dos presidentes da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e da Espanha, Pedro Sánchez, em artigo de opinião publicado simultaneamente em diversos veículos ao redor do mundo no início de março. O apelo vem de três chefes de Estado cujos países sediarão importantes eventos este ano: a 4ª Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), em Sevilha; a COP30 do Clima, em Belém; e a Cúpula do G20, em Joanesburgo.
Ainda segundo os presidentes: “Os desafios que se apresentam diante de nós — desigualdades crescentes, mudanças climáticas e o déficit de financiamento para o desenvolvimento sustentável — são urgentes e estão interconectados. É preciso tomar ações coordenadas e corajosas para abordá-los — e não recuar ao isolamento, a ações unilaterais ou a rupturas”.
‘ Enquanto uns se retiram, outros se apresentam. O mundo multipolar já chegou’
O chamado à coordenação e coragem — escrito à muitas mãos e reafirmando o compromisso com a cooperação internacional — escancara o tamanho dos desafios diante de nós em um mundo de grandes incertezas e turbulência ao mesmo tempo em que indica haver vontade política e liderança para além dos polos tradicionais de poder. Enquanto uns se retiram, outros se apresentam. O mundo multipolar já chegou.
A África do Sul lidera o último G20 presidido por países em desenvolvimento, após Indonésia, Índia, Brasil. O protagonismo e a voz “do Sul” – vinda da Ásia, África e América Latina – é parte incontestável do multilateralismo atual, e com ela novas agendas emergem. Nas discussões sobre desenvolvimento internacional, no G20, na ONU ou no Brics, questões ditas “sistêmicas” antes relegadas a segundo plano estão na pauta: desigualdades, taxação, dívida externa, custo do capital, diversificação de meios de pagamentos. Estes e outros temas figuram nas negociações do FfD4 – capitaneadas pela anfitriã Espanha junto aos co-facilitadores México, Nepal, Noruega e Zâmbia – apesar das reticências de muitos no chamado mundo desenvolvido.
‘Enquanto os Estados Unidos optam por se retirarem de processos internacionais e países europeus redirecionam fundos de cooperação para o desenvolvimento e ajuda humanitária para a defesa e segurança nacionais’
Enquanto os Estados Unidos optam por se retirarem de processos internacionais e países europeus, como Reino Unido, redirecionam fundos de cooperação para o desenvolvimento e ajuda humanitária para a defesa e segurança nacionais, a Espanha aprovou uma nova Lei de Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável e a Solidariedade Global.
A nova lei, que conta com apoio popular segundo o Eurobarómetro, prevê a destinação de 0,7% da Renda Nacional Bruta espanhola à Assistência Oficial para o Desenvolvimento (AOD). Para além de fortalecer ações bilaterais e multilaterais em temáticas como segurança alimentar e mudanças climáticas, em 2025 a Espanha se junta à África do Sul e ao Brasil na difícil missão de mobilizar e conciliar interesses em um mundo fragmentado.
‘A missão de construir pontes também é evidente no caso do Brasil, cuja liderança na COP30 exigirá inúmeras articulações para reenergizar a ação global à altura da urgência climática’
A missão de construir pontes também é evidente no caso do Brasil, cuja liderança na COP30 exigirá inúmeras articulações para reenergizar a ação global à altura da urgência climática. O desafio não é apenas gerar consenso em questões ambientais, mas também achar respostas econômicas, sociais e culturais para crises planetárias interpostas.
Em recente carta à comunidade internacional, o presidente brasileiro da COP30, Embaixador André Corrêa do Lago disse que o Brasil organizará um mutirão pelo clima, o que necessariamente exigirá diálogo, alinhamento e criação de pontes: da porta para dentro e da porta para fora.
No entanto, a comunicação que vem de Brasília é clara: sabe que, sozinho, o Brasil não resolverá a questão, mas usará de seu capital diplomático carismático para mobilizar parceiros governamentais e não-governamentais que estejam igualmente comprometidos com a implementação do Acordo de Paris. Nas palavras de Corrêa do Lago: “Enquanto atravessamos o luto de perdas humanas e materiais, 2025 tem de ser o ano em que canalizaremos nossa indignação e tristeza para uma ação coletiva construtiva”.
‘Juntas, as duas cartas ao multilateralismo ressoam como um apelo teimoso à esperança, um convite a seguir, coletivamente, buscando soluções para os grandes desafios da atualidade’
Juntas, as duas cartas ao multilateralismo ressoam como um apelo teimoso à esperança, um convite a seguir, coletivamente, buscando soluções para os grandes desafios da atualidade. Não se trata de negar o abismo diante de nossos olhos, ou o “Efeito Trump 2.0”, que será profundo e duradouro. Tampouco se trata de afirmar que países como Brasil, África do Sul, Espanha – ou a China e os países do Golfo – irão ocupar imediatamente ou plenamente o vazio financeiro, político e normativo deixado pela retração dos EUA e de outras potências europeias nestas e em outras agendas.
É preciso, no entanto, reconhecer que a crise atual tem raízes profundas e que a dita “ordem liberal”, ancorada desde 1945 na potência do Ocidente, é repleta de injustiças e assimetrias. É uma ordem que há tempos precisa ser reformada. A crise da ordem vigente – e sua contestação por atores situados dentro e fora do núcleo euro-americano – não começou em 2025. Trata-se de um processo longo, ainda que não-linear, cuja consequência será inevitavelmente uma pluralização e “des-ocidentalização” do espaço internacional.
‘O mundo que vier a emergir não será necessariamente mais estável, seguro, próspero ou justo. Será, no entanto, seguramente diferente’
O mundo que vier a emergir não será necessariamente mais estável, seguro, próspero ou justo. Será, no entanto, seguramente diferente. Neste interregnum, para salvar e revigorar a cooperação internacional e o multilateralismo – hoje respirando por aparelhos – serão preciso novos empreendedores político-normativos, capazes de construir “alianças” e “coalizões” de geometrias variadas e variáveis. Serão arranjos informais, “ad hoc” ou “issue-based” que reconheçam as diferenças e assimetrias Norte-Sul e Leste-Oeste, mas que também logrem operar no espaço do possível meio a estas grandes “macro-categorias” geopolíticas que há décadas moldam o espaço internacional.
Céticos dirão que são lideranças e coalizões improváveis e insustentáveis. Dirão também que não há maneira lograr aliar ambição e pragmatismo em 2025. De minha parte, eu me juntarei ao mutirão.
Laura Trajber Waisbich é cientista política e diretora-adjunta de programas no Instituto Igarapé. É afiliada ao Skoll Centre, na Said Business School da Universidade de Oxford e foi diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na mesma universidade.
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