24 julho 2024

Cenário pós-eleição na França é de paralisação política e incerteza

As eleições antecipadas para a Assembleia Nacional resultaram em um parlamento dividido em três blocos, sem maioria evidente

A deputada Yael Braun-Pivet faz um discurso ao ser reeleita como presidente da Assembleia Nacional francesa após três rodadas de votações (Foto: Assembleia Nacional da França)

Por Aline Burni*

Na França, as eleições antecipadas para a Assembleia Nacional resultaram em um parlamento dividido em três blocos, sem maioria evidente. Com a falta de um vencedor claro e sem perspectiva de coalizão entre os blocos – ao menos da forma como estão constituídos – houve pouco progresso em direção à indicação de um nome consensual para o cargo de primeiro-ministro e à formação de um novo governo. Dessa forma, a França segue paralisada e enfrenta uma crise política, a poucos dias do início dos Jogos Olímpicos de Paris. O governo permanece sob a liderança interina do jovem Gabriel Attal até que uma coordenação entre as elites políticas viabilize a indicação de um(a) novo(a) primeiro(a)-ministro(a). Quais são os cenários possíveis e as implicações para o papel internacional da França?

Macron: um presidente fraco

Na noite de 9 de junho, ao serem divulgados os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, o presidente Macron surpreendeu ao anunciar a decisão de dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições antecipadas. O partido da direita populista radical Rassemblement National (RN), liderado por Marine Le Pen e seu protégé, Jordan Bardella, foi o mais votado nas eleições europeias, conquistando o dobro da votação obtida pelo campo de Macron. A derrota de Macron e o expressivo resultado do RN impulsionaram a convocação das eleições antecipadas por parte do presidente, que alegou buscar uma ‘clarificação’.

Entretanto, Macron vinha sendo um presidente enfraquecido, particularmente nos últimos dois anos. Desde 2022, seu campo tinha apenas uma maioria relativa no parlamento (250 de 577 deputados), o que resultou em governos minoritários sob os dois últimos primeiros-ministros. A popularidade do presidente seguia em queda, com apenas 26% de aprovação às vésperas da dissolução. Duas importantes reformas propostas por Macron foram extremamente controversas e geraram forte oposição popular: a reforma da aposentadoria e a da imigração. Ainda que a Constituição francesa conceda significativos poderes formais ao presidente, Macron vinha sendo um presidente desgastado, à frente de um governo frágil e impopular.

Decisão de alto risco

Foi a primeira vez em que uma eleição europeia teve tanta repercussão no nível nacional. Normalmente referidas como ‘eleições de segunda ordem’, por mobilizarem pouco os eleitores e serem percebidas por eles como menos importantes do que as eleições nacionais, as últimas eleições europeias tiveram uma repercussão sem precedentes na França ao provocarem a dissolução da Assembleia Nacional. Duas principais interpretações emergiram na tentativa de explicar a decisão de Macron.

A primeira foi a de que Macron esperava conseguir mobilizar seu eleitorado e sair mais fortalecido em novas eleições legislativas ao lançar mão de uma estratégia que funcionou em eleições anteriores: Macron se colocar como a única alternativa capaz de barrar o acesso ao poder por parte da direita populista radical de Marine Le Pen.

Nesse sentido, Macron apostou na hipótese de que a maioria do eleitorado francês fosse rejeitar o RN quando confrontada com a possibilidade de um governo populista de direita radical. A segunda motivação foi a de que, no suposto caso em que o RN obtivesse uma maioria no parlamento e chegasse ao poder, Macron estaria disposto a suportar uma coabitação com o RN na expectativa deste realizar um mau governo e sair enfraquecido na disputa pelo ‘prêmio mais importante’ – as presidenciais de 2027.

Ambas as estratégias foram extremamente arriscadas em um contexto de impopularidade e desgaste do presidente. Além disso, o cenário era de alta mobilização eleitoral e confiança por parte dos apoiadores do RN logo após o bem-sucedido resultado nas eleições europeias. A população francesa buscava mudança e viu uma oportunidade de alternância de governo naquela ocasião de eleições legislativas descasadas das eleições para presidente.

Do perigo da direita populista radical a um parlamento sem maioria clara e paralisado

Assim que as eleições foram convocadas, houve uma rápida e inesperada mobilização por parte da esquerda, que formou uma aliança eleitoral reunindo ‘La France Insoumise’ (LFI), comunistas, socialistas e verdes para concorrer sob uma única etiqueta, a Nova Frente Popular (NFP). No primeiro turno, o RN chegou em primeiro, ganhando mais de 33% dos votos no nível nacional em uma eleição com alta participação (66%). O partido fundado por Jean-Marie Le Pen cresceu em toda a França e ampliou significativamente sua atratividade entre os mais diversos perfis de eleitores.

Comparado com o pleito de 2022, o RN ganhou mais de 6 milhões de apoiadores. Pela primeira vez na história do partido, chegou tão próximo ao poder, com pesquisas de opinião às vésperas e logo após o primeiro turno indicando que o RN tinha chances reais de obter uma maioria na Assembleia Nacional e chegar ao governo.

Contudo, o sistema francês para as eleições legislativas – distrital com dois turnos – permite que mais de dois candidatos concorram no segundo turno, desde que consigam o apoio de ao menos 12,5% dos eleitores registrados. Quando três candidatos disputam o segundo turno, ele é chamado de “triangulaire”. Com o resultado do primeiro turno, mais de 300 “triangulaires” seriam possíveis, em contraste com apenas oito em 2022.

No entanto, diante da situação extraordinária em que uma maioria de parlamentares do grupo da direita populista radical parecia possível, tanto a coalizão Ensemble de Macron quanto o NFP da esquerda rapidamente se mobilizaram para reduzir as chances de uma vitória do RN. Na prática, Ensemble e NFP retiraram seus candidatos da disputa nos casos em que estes não teriam condições de ganhar do RN, incentivando o chamado ‘voto estratégico’.

De forma inesperada e contra as projeções eleitorais, o bloco de esquerda NFP saiu na frente ao final do segundo turno, conquistando 182 cadeiras. A coalizão de Macron veio em seguida, com 168 deputados, enquanto o RN e seus aliados ficaram em terceiro lugar, com 143 cadeiras. Três principais fatores ajudaram a conter a ascensão do RN e reverter suas chances de conquistar uma maioria. Em primeiro lugar, o voto útil, ou voto estratégico.

Apesar da alta insatisfação do eleitorado com o governo de Macron, os eleitores hostis ou preocupados com um eventual governo do RN apoiaram a estratégia de retirada dos candidatos do NFP e do Ensemble e votaram na única alternativa viável diante do RN, seja ela da esquerda ou do centro. Pesquisas mostraram que foram especialmente os eleitores da esquerda que se mobilizaram contra o RN apoiando candidatos do Ensemble – apesar da oposição a Macron: 72% dos que apoiaram a esquerda no primeiro turno votaram em um candidato do Ensemble no segundo turno, ao passo que apenas 43% dos eleitores do Ensemble no primeiro turno passaram a apoiar candidatos do NFP na segunda etapa.

Em segundo lugar, também contribuiu significativamente a alta mobilização do eleitorado em geral, ligada à apreensão de um possível governo populista de direita radical. Em ambos os turnos, a participação foi forte e cresceu em relação às eleições anteriores para o Parlamento Europeu e legislativo nacional.

Em terceiro lugar, a ausência de Macron na campanha durante o segundo turno permitiu que os candidatos usassem de forma mais efetiva a narrativa de conter a direita populista radical sem a necessidade de associar tal escolha ao apoio ao presidente Macron, o que seria um problema devido à sua impopularidade.

Nenhuma maioria clara emergiu da eleição para a Assembleia Nacional. Os desafios à frente para a formação do próximo governo e para restabelecer a estabilidade do país são enormes. A Assembleia Nacional encontra-se dividida em três campos – nenhum deles chegando sequer próximo dos 289 parlamentares necessários para se formar uma maioria. Diferentemente de outros sistemas parlamentaristas europeus em que, no caso de falta de uma maioria clara após os resultados das eleições, partidos de distintas ideologias políticas costumam negociar uma aliança para formar um governo de coalizão tendo como base um programa de governo, este não é o caso na França.

As instituições da V República Francesa foram desenhadas para constituir maiorias claras ao final de uma eleição e historicamente induziram o sistema a uma polarização entre dois blocos políticos – algo que foi quebrado pela emergência do RN e pela crescente volatilidade eleitoral das últimas décadas. A cultura política francesa não tem a tradição de formação de consenso entre filiações partidárias distintas. Os três grupos que constituem a nova Assembleia Nacional se opõem fundamentalmente em praticamente todas as questões políticas centrais do debate francês, dentre elas a guerra da Rússia contra a Ucrânia, o tema da imigração, a reforma da aposentadoria e as finanças públicas.

A batalha eleitoral contra a direita populista radical foi mais uma vez vencida nesta ocasião, mas o fator que unificará uma possível aliança para constituir um novo governo em tempos tão desafiadores ainda não foi identificado. O chamado ‘bloco republicano’ que se formou na arena eleitoral não vê a perspectiva de funcionar no âmbito do governo. Além disso, a capacidade desse ‘bloco republicano’ em barrar o RN no futuro não é sustentável, sobretudo se a insatisfação dos eleitores franceses com a situação política e econômica do país e as ansiedades que os levaram a apoiar o RN continuarem crescendo.

Possíveis cenários diante da atual crise política

A Constituição estabelece que o presidente nomeie o primeiro-ministro, que deve ser capaz de sobreviver a uma moção de censura no parlamento. Entretanto, não há critérios nem prazos especificados para tal nomeação. Durante pouco mais de uma semana após o resultado das urnas, Gabriel Attal permaneceu no cargo de primeiro-ministro a pedido de Macron, mas sofreu pressões de ambos os lados do espectro político, ao passo que o bloco centrista que o sustenta encontra-se ainda mais reduzido do que antes.

A aliança eleitoral formada pela esquerda já aparece fragilizada e dividida. A ala mais radical, liderada por Mélenchon, se recusa a discutir qualquer forma de aliança com representantes do centro. A ala mais moderada, representada pelo Partido Socialista, coloca-se aberta para dialogar com forças do centro macronista e encontrar uma solução para a paralisia política. Apesar de vários nomes terem circulado, até o momento a NFP não conseguiu entrar em acordo para propor alguém para o cargo de primeiro-ministro.

No campo da direita, tanto o RN quanto a direita tradicional afirmaram que irão bloquear qualquer formação que inclua representantes do partido ‘La France Insoumise’ (LFI), de Mélenchon. Nesse sentido, é bastante improvável que o novo parlamento aceite um governo minoritário de esquerda ou concorde com a formação de uma ‘grande coalizão’ de partidos de esquerda e centristas, no estilo alemão.

O fato é que todas as principais formações e líderes políticos estão vislumbrando 2027 e não estão fundamentalmente motivados a resolver a atual crise política do país. Assumir qualquer responsabilidade no próximo governo – sobretudo em potencial aliança com o centro de Macron – constitui um enorme risco de credibilidade e reputação, tendo em vista a próxima disputa presidencial e a enorme dificuldade para implementar um programa eleitoral.

Caso o NFP não consiga indicar um primeiro-ministro e negociar apoio para constituir o próximo governo – o que parece bastante improvável devido à rejeição sofrida pelo LFI pelos demais blocos – outra possibilidade seria o campo de Macron tentar agregar os partidos considerados como parte do ‘campo republicano’ – que vão desde os verdes e socialistas até a direita tradicional Les Républicains (LR) e, portanto, excluiria LFI e RN. Esta parece uma missão extremamente desafiadora para um presidente impopular e desgastado, a qual requereria a implosão da NFP, mas permanece um cenário razoavelmente possível.

Se nenhuma das alternativas anteriores funcionar, o que pode acontecer é o recurso a um governo ‘técnico’, com um primeiro-ministro sem afiliação partidária e de perfil mais ‘neutro’ que conduziria as atividades cotidianas do governo até que novas eleições aconteçam. O prazo mínimo para que Macron convoque novas eleições é meados de 2025.

Continuidade na Politica Externa, mas desafios diante da fragilidade interna

Tendo em vista que Macron permanecerá responsável pela condução da política externa até o fim do mandato presidencial, a expectativa é de continuidade no tom das relações da França com o Brasil e com o mundo. Entretanto, Macron continuará a sofrer crescentes pressões internas que podem tornar seus compromissos na política externa mais frágeis e instáveis, a exemplo da manutenção do apoio militar à Ucrânia e das ações no ambito da OTAN.

As experiências de “coabitação” do passado — quando o Presidente e o governo eram de partidos diferentes — permitiram ao Presidente uma predominância na condução das políticas de defesa e assuntos internacionais. Entretanto, nessas ocasiões, o Presidente e o Primeiro-Ministro estavam alinhados na esfera da política externa. Tendo em vista que os três principais blocos que atualmente compõem a Assembleia Nacional têm posições de política externa bastante distintas e irreconciliáveis, é possível que Macron esteja mais sujeito a pressões do legislativo em determinadas decisões que afetem a política internacional, sobretudo nas questões que tenham implicações orçamentárias.

A agravada crise política no âmbito doméstico também limita a assertividade da França, um dos principais motores da integração europeia, nas decisões no nível da União Europeia, precisamente em um momento crucial em que o bloco define as lideranças e políticas que o guiarão nos próximos cinco anos.

Conforme esperado, Gabriel Attal enviou novamente sua demissão no dia 16 de junho e permanecerá no cargo de forma interina durante o período das Olimpíadas, que começam no próximo dia 26 de julho. Essa é apenas uma solução temporária para que o governo continue a desempenhar suas atividades básicas até que as elites políticas consigam estabelecer um acordo e formar um novo governo. Tal governo, ao que tudo indica, será instável e breve, provavelmente não muito distinto da formação anterior, mas de fato ainda mais distante da preferência da maior parte do eleitorado francês.


*Aline Burni é doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Leia o artigo original

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

Democracia 🞌 Eleições 🞌 França 🞌

Cadastre-se para receber nossa Newsletter