14 agosto 2023

Como os soviéticos roubaram segredos nucleares e culparam Oppenheimer, o ‘pai’ da bomba atômica

No fim da Segunda Guerra, a União Soviética recrutou diversos cientistas do Projeto Manhattan para ter acesso a informações confidenciais e reproduzir sua própria bomba atômica. Pesquisador e escritor aponta como Oppenheimer não foi um deles e, ainda assim, foi julgado injustamente

No fim da Segunda Guerra, a União Soviética recrutou diversos cientistas do Projeto Manhattan para ter acesso a informações confidenciais e reproduzir sua própria bomba atômica. Pesquisador e escritor aponta como Oppenheimer não foi um deles e, ainda assim, foi julgado injustamente

Cillian Murphy como o físico J. Robert Oppenheimer em Oppenheimer. (Foto: Universal Pictures)

Por Calder Walton*

Oppenheimer, o novo épico filme dirigido por Christopher Nolan, leva o público a conhecer a mente e as decisões morais de J. Robert Oppenheimer, o líder da equipe de cientistas brilhantes que se reuniram em Los Alamos, Novo México, e construíram a primeira bomba atômica do mundo. O filme não se trata de um documentário, mas ele aborda corretamente os grandes momentos e assuntos históricos.

As questões retratadas por Nolan não são relíquias de um passado distante. O novo mundo que Oppenheimer ajudou a criar e o pesadelo nuclear que ele temia ainda existem hoje.

O presidente russo Vladimir Putin está ameaçando usar armas nucleares em sua guerra contra a Ucrânia. O Irã está fazendo tudo o que pode para desenvolver armas atômicas. A China está expandindo seu arsenal nuclear.  E governos hostis, como o chinês, estão roubando tecnologias de defesa dos Estados Unidos, inclusive de Los Alamos.

‘As acusações de que Oppenheimer era um espião soviético e um risco à segurança – um dos principais focos do filme – foram desmentidas’

As acusações de que Oppenheimer era um espião soviético e um risco à segurança – um dos principais focos do filme – foram desmentidas. Em dezembro de 2022, o governo Biden anulou postumamente a decisão da Comissão de Energia Atômica dos EUA de 1954 de revogar a habilitação de segurança de Oppenheimer, chamando esse processo de tendencioso e injusto. Registros desclassificados revelaram que a espionagem soviética sobre o projeto da bomba atômica dos EUA fez avançar o programa nuclear de Moscou, mas Oppenheimer não era um espião.

A large orange cloud rises over desert land.
Uma nuvem em forma de cogumelo se forma segundos após a detonação da primeira bomba atômica no local de testes de Trinity, no Novo México, em 16 de julho de 1945.  (Foto: Departamento de Energia dos EUA/Wikimedia)

A perspectiva de Oppenheimer

Oppenheimer entrou para o Projeto Manhattan, um esforço nacional para construir a bomba atômica antes que os nazistas a desenvolvessem, em 1942. Os cientistas que ele liderava em Los Alamos formavam provavelmente o grupo de mentes mais talentosas já reunidas em um único laboratório, incluindo 12 ganhadores do Prêmio Nobel.

Em 1954, no auge da era McCarthy, Oppenheimer foi acusado de ser comunista e até mesmo de ser um espião soviético. Mas qual é a verdade?

Sabemos que, na década de 1930 e até 1943, Oppenheimer era um simpatizante comunista. Seu irmão Frank e sua namorada Jean Tatlock pertenciam ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Sua esposa, Katherine, era ex-integrante do partido.

Para Oppy, como seus alunos o chamavam, o marxismo era intelectualmente interessante, mas também era prático. O físico via o comunismo como a melhor defesa contra a ascensão do fascismo na Europa, que, por ser de origem judaica, era uma questão pessoal para ele.

Em 1943, no entanto, o apoio de Oppenheimer às causas do Partido Comunista mudou – evidentemente, quando ele percebeu a dimensão de sua missão de produzir uma bomba atômica. Naquele ano, Oppenheimer ajudou os oficiais de segurança do Exército dos Estados Unidos a identificar cientistas que ele acreditava serem comunistas.

Los Alamos foi desenvolvida para ser uma cidade secreta onde os cientistas construíram e testaram a primeira bomba atômica.

Ofertas russas

‘Oppenheimer era um dos principais alvos da inteligência soviética e estava sendo “cultivado” por oficiais da inteligência soviética’

Oppenheimer era um dos principais alvos da inteligência soviética, que lhe atribuiu os codinomes CHESTER e CHEMIST. Ele também estava sendo “cultivado” por oficiais da inteligência soviética. Mas ser um alvo cultivado para recrutamento não é o mesmo que ser um espião recrutado.

Como mostra o filme, em 1943, o colega acadêmico de Oppenheimer na Universidade da Califórnia em Berkeley, Haakon Chevalier, disse a ele que um cientista britânico que trabalhava em São Francisco poderia transmitir informações aos soviéticos. Oppenheimer rejeitou a abordagem, mas, por motivos que permanecem incertos, ele permaneceu vários meses sem informar as autoridades.

Nos anos que se seguiram, Oppenheimer forneceu pelo menos três versões da história, algumas vezes envolvendo seu irmão Frank. Parece provável que Robert estivesse tentando proteger seu irmão da segurança do Exército.

‘Os arquivos disponibilizados após o colapso da União Soviética agora estabelecem, que Oppenheimer não era um agente soviético, mas os russos penetraram de fato no Projeto Manhattan – a maior violação de segurança da história dos EUA’

Os arquivos disponibilizados após o colapso da União Soviética agora estabelecem, sem sombra de dúvida, que Oppenheimer não era um agente soviético. Na verdade, os relatórios da inteligência soviética sobre o Projeto Manhattan revelaram que, em momentos cruciais, os chefes de espionagem de Stalin ficaram frustrados com o fato de seus agentes não terem recrutado Oppenheimer. Mas os russos penetraram de fato no Projeto Manhattan – a maior violação de segurança da história dos EUA.

A page from a declassified security agency report describes events depicted in 'Oppenheimer'
Um trecho do dossiê da agência de segurança britânica MI5 sobre J. Robert Oppenheimer descreve os esforços soviéticos para persuadir Oppenheimer e outros cientistas a compartilhar informações sobre suas pesquisas com bombas atômicas. (Foto: Calder Walton)

Todos os homens do Kremlin

Vários cientistas que trabalharam no Projeto Manhattan forneceram informações importantes sobre a pesquisa da bomba atômica dos Estados Unidos para a União Soviética.

O filme concentra-se em Klaus Fuchs, um físico teórico brilhante que fugiu da Alemanha nazista para o Reino Unido e se naturalizou britânico. Desde o momento em que começou a trabalhar no projeto britânico da bomba atômica na época da guerra, Fuchs manteve o que ele mais tarde descreveu como “contato contínuo” com a inteligência soviética, fornecendo cálculos teóricos necessários para a construção da bomba atômica.

O general Leslie Groves, comandante militar do Projeto Manhattan, culpou posteriormente os britânicos por não terem identificado Fuchs como um espião soviético. Ele estava correto. Mas o dossiê desclassificado sobre Fuchs do serviço de segurança britânico, o MI5, mostra que, na época, a agência não tinha nenhuma evidência positiva e confiável do comunismo de Fuchs. O MI5 sabia que Fuchs era antinazista, mas não que ele era pró-soviético.

Como discuti no meu novo livro, Spies: The Epic Intelligence War Between East and West (“Espiões: a épica guerra de inteligência entre o Oriente e o Ocidente”, em tradução livre), outros espiões em Los Alamos incluíam o prodigioso cientista Theodore “Ted” Hall (codinome MLAD ou “Jovem”); Julius Rosenberg (codinome ANTENNA, depois LIBERAL); e David Greenglass (codinome BUMBLEBEE, CALIBER). Outros espiões soviéticos, como o cientista britânico Alan Nunn May, trabalharam em outros setores do Projeto Manhattan.

Esses homens tinham vários motivos para trair os segredos atômicos dos EUA. Eles acreditavam verdadeiramente no comunismo e achavam que as armas nucleares eram poderosas demais para serem mantidas por apenas um país. Além disso, eles tinham uma defesa (equivocada): a de que a União Soviética era aliada dos Estados Unidos em tempos de guerra e, portanto, eles estavam “apenas” entregando segredos a um governo aliado. Mas, como Nolan mostra corretamente no filme, quando Chevalier abordou Oppenheimer com o mesmo argumento, ele respondeu que isso ainda era traição.

‘Quando os soviéticos detonaram sua primeira arma atômica em agosto de 1949, ela era uma réplica daquela construída em Los Alamos e lançada pelos americanos em Nagasaki’

A espionagem soviética dentro do Projeto Manhattan mudaria a história. No final da Segunda Guerra Mundial, os espiões de Stalin entregaram os segredos da bomba atômica ao Kremlin. Isso acelerou o projeto nuclear de Moscou. Quando os soviéticos detonaram sua primeira arma atômica em agosto de 1949, ela era uma réplica daquela construída em Los Alamos e lançada pelos americanos em Nagasaki.

Mesmo agora, quase 80 anos depois, ainda estão surgindo segredos sobre a espionagem nuclear soviética. Um agente soviético cuja espionagem só foi revelada recentemente é George Koval (codinome DEVAL), um engenheiro americano que foi convocado para o Projeto Manhattan, onde trabalhou com “iniciadores” de bombas de polônio em uma instalação em Dayton, Ohio.

Após a morte de Koval em 2006, aos 93 anos de idade, o Ministério da Defesa da Rússia divulgou que o detonador da primeira bomba atômica soviética foi preparado de acordo com as especificações fornecidas por Koval. Putin homenageou Koval postumamente como “Herói da Rússia”, oferecendo um brinde com champanhe em sua honra.

Novos alvos

Se o filme de Nolan inspirar o público a ler a biografia profundamente pesquisada de Oppenheimer por Kai Bird e Martin Sherwin, que inspirou Nolan a fazer esse filme, ou outros relatos sobre o Projeto Manhattan e sobre a Guerra Fria, eles descobrirão que os tecidos subjacentes da ciência e da espionagem permanecem vivos.

Hoje, o mundo está à beira de revoluções tecnológicas que transformarão as sociedades no século 21, da mesma forma que as armas nucleares fizeram no século passado: inteligência artificial, computação quântica e engenharia biológica. Assistir a Oppenheimer me faz pensar se governos estrangeiros hostis já podem ter roubado as chaves para desbloquear essas novas tecnologias, da mesma forma que os soviéticos fizeram com a bomba atômica.


*Calder Walton é diretor-assistente do projeto de história aplicada e do projeto de inteligência na Harvard Kennedy School


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.

Tradução de Letícia Miranda


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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