Contagem regressiva para a decisão política nos EUA
Donald Trump e Kamala Harris se enfrentam em uma eleição de resultado incerto e com potenciais efeitos em todo o mundo. Para o atual governo brasileiro, uma vitória democrata traria alívio e previsibilidade, enquanto apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro preferem a volta do republicano ao poder
Na noite de 5 de novembro de 2024 começam as etapas finais das eleições nos Estados Unidos. A votação (tanto por correio quanto presencial), que começou em alguns estados já no final de setembro, finalmente será encerrada, e a contagem final dos votos começará.
Embora seja frequentemente chamada de uma única eleição, na verdade, trata-se de um conjunto de 51 eleições, em que os 50 estados determinam os vencedores, e o voto final para presidente ocorre no Colégio Eleitoral.
De fato, a eleição é ainda mais descentralizada do que isso – ela é administrada por 8.000 escritórios eleitorais e cerca de 200 mil distritos em todo o país (Massari 2024: 15).
O resultado da eleição presidencial depende de um pequeno número de eleitores nos estados onde a disputa está extraordinariamente acirrada: Arizona, Nevada, Michigan, Wisconsin, Pensilvânia, Carolina do Norte e Geórgia.
O fato de uma eleição tão importante para os Estados Unidos e para o mundo depender de tão poucos eleitores é tanto extraordinário quanto profundamente preocupante.
Embora existam várias diferenças políticas claras entre os dois principais candidatos, o republicano Donald J. Trump e a democrata Kamala Harris, também há questões importantes que não mudarão como resultado desta eleição.
Por exemplo, a política dos EUA em relação a Israel continuará (dito isso, os democratas seriam um pouco mais exigented em relação a um cessar-fogo em Gaza, e o premiê de Israel é claramente em favor de uma vitória dos republicanos). A hostilidade em relação à China permanecerá como uma característica da política externa dos EUA, e a falta de regulamentação do financiamento de campanhas, das big techs e das redes sociais continuará.
Os déficits comercial e fiscal dos EUA, financiados por enormes quantidades de empréstimos em dólares, não desaparecerão. E as dificuldades dos americanos comuns em um sistema econômico e político cada vez mais oligárquico e economicamente desigual (Hardy, Krause e Ziliak 2024) também parecem destinadas a continuar.
As duas principais chapas na corrida presidencial oferecem um estudo de contrastes.
Trump oferece sua conhecida mistura de narcisismo, ódio e divisão a eleitores que muitas vezes dizem que planejam votar nele apesar de seus defeitos de caráter. Seu slogan, “Retome a América”, ecoa o “Retome o Controle” da campanha do Brexit em 2016, no Reino Unido.
Ele promete vingança e uma versão “turbinada” de sua primeira presidência. Trump promete enviar o procurador especial Jack Smith para a prisão. Smith acusou Trump no tribunal federal de participar de uma “conspiração contra direitos” (incluindo o direito de votar) ao tentar reverter os resultados da eleição de 2020 (Diaz 2023), em um caso que não será decidido antes da eleição.
Trump também quer libertar os “prisioneiros políticos” condenados por sedição por invadir o Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
O Projeto 2025, elaborado pelo think tank conservador Heritage Foundation e um guia para uma possível presidência de Trump, propõe reclassificar dezenas de milhares de funcionários civis federais como nomeados políticos que seriam obrigados a ser pessoalmente leais ao presidente Trump.
Na campanha, Trump também prometeu deportar milhões de imigrantes indocumentados, pessoas que ele acusa de “envenenar o sangue da nação”. Como há cerca de 11 milhões de imigrantes indocumentados no país, isso provavelmente é impossível tanto logisticamente quanto economicamente, mas a ameaça de sua execução fomentaria medo e divisão.
Trump fala de transformações milagrosas ao imaginar seu retorno à Casa Branca. Ele estenderia os cortes de impostos sobre a renda pessoal e corporativa que implementou como presidente (seu mandato foi de 2017-2021), e que devem expirar no final de 2025. Isso lhe rendeu apoio de muitos bilionários, incluindo Elon Musk, o gestor de fundos de hedge Bill Ackman, e o CEO da Blackstone, uma grande empresa de investimentos, Steve Schwarzman.
Ele fala sobre uma queda rápida nas taxas de juros e na inflação, o fim da guerra na Ucrânia e um novo respeito pelos Estados Unidos, assim que sua “liderança forte” for restaurada.
Trump também encerraria a transição à energia limpa estimulada pelo Ato de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act) de Biden (2022), reverteria pesadamente a petróleo e gás (com a lema do Drill Baby Drill) e romperia com o Acordo de Paris e os compromissos dos EUA em relação à mudança climática. O companheiro de chapa de Trump, JD Vance, repete essas promessas de forma polida e respeitável. Ele é o futuro do trumpismo.
A vice-presidente Kamala Harris está tentando trilhar um caminho menos familiar e mais delicado até a Presidência. Seu slogan é “Não Vamos Voltar Atrás”.
Ela busca reivindicar o manto da continuidade e da mudança, resgatando elementos populares do governo Biden (2021-presente) ao mesmo tempo em que se distancia de seus fracassos percebidos.
Ela propõe controles rigorosos na imigração pela fronteira sul, mas com uma face mais humana do que a sugerida por Trump. Ela eliminaria gradualmente os cortes de impostos de Trump sobre famílias que ganham mais de US$ 400 mil por ano.
Harris diz que quer criar um imposto mínimo para bilionários e aumentar o imposto sobre ganhos de capital para aqueles que ganham pelo menos US$ 1 milhão por ano. Ela quer restaurar o direito de mulheres em todo o país de fazer abortos até a 24ª semana de gravidez (o padrão que foi eliminado quando a Suprema Corte anulou Roe vs Wade). Outra promessa de Harris é fornecer US$ 25 mil dólares para compradores de primeira casa para ajudá-los a comprar um imóvel.
O companheiro de chapa de Harris, o governador de Minnesota Tim Walz, é um homem do Meio-Oeste que possui armas, gosta de caçar e foi treinador de futebol americano no ensino médio. Ele édeve solidificar o status dos democratas como “americanos de verdade”, um termo usado na Convenção Nacional Republicana para descrever a base de Trump e que pode, e é, usado para excluir muitos cidadãos reais dos EUA cuja identidade difere daqueles nascidos nos EUA, brancos, cristãos e heterossexuais.
Muitos eleitores potenciais de Harris reclamam que não a conhecem bem, já que ela só substituiu Biden como candidata democrata em 21 de julho de 2024. Contudo, sua campanha oferece políticas que são um contraste moderado ao capitalismo “turbinado” proposto por Trump, com políticas mais orientadas para a classe média e proteções mais fortes para os direitos reprodutivos das mulheres.
Harris também oferece mais “normalidade” e estabilidade em contraste com Trump. Alguns republicanos proeminentes, incluindo Dick Cheney, vice-presidente de George W. Bush (2001-2008), a apoiaram.
Prever o resultado desta eleição é quase impossível. Os procedimentos eleitorais mudaram em muitos estados, a demografia e a opinião pública estão mudando, e as pesquisas não são suficientemente confiáveis.
Mudanças leves nas pesquisas em uma direção ou outra nos sete estados-pêndulo estão dentro da margem de erro estatística. Os antigos padrões de votação estão se dissolvendo nas bordas.
Os cristãos evangélicos brancos, geralmente firmemente pró-Trump, poderiam votar em Harris em maior número este ano, talvez até 24%. Isso e por que a campanha de Harris está dizendo para os evangélicos que não é cristao desumanizar outras pessoas no estilo do Trump, um argumento que tem força, especialmente entre os jovens.
Alguns afro-americanos, geralmente democratas, poderiam migrar para Trump; pesquisas sugerem que até 20% dos homens negros e 12% das mulheres negras poderiam votar no candidato republicano. O voto hispânico está dividido e poderia ser especialmente importante no Arizona e em Nevada. Aqueles que votam em Trump, segundo o jornalista Paolo Ramos (2024), são influenciados em parte pelos homens fortes autoritários na história recente da América Latina.
No entanto, há algumas certezas nesta eleição. Trump não vencerá no voto popular, e seu único caminho para a vitória passa pelo Colégio Eleitoral. Além disso, a maioria dos eleitores republicanos diz aos pesquisadores que acredita que a eleição de 2020 foi roubada, embora não haja evidências disso, e a Agência de Segurança de Infraestrutura e Cibersegurança do Departamento de Segurança Interna (Homeland Security) chamou a eleição de 2020 de “a mais segura na história do país” (Massari 2024, 12). Em terceiro lugar, é muito improvável que Trump aceite a derrota caso seja declarado perdedor.
Ambos os partidos têm exércitos de observadores e advogados prontos para entrar em ação caso a contagem de votos seja contestada em algum condado ou estado. A honestidade dos oficiais eleitorais pode ser decisiva após a votação.
A contagem de votos provavelmente levará semanas em alguns locais. A certificação de todas as eleições em nível estadual deve ocorrer até 11 de dezembro de 2024. Em 17 de dezembro, os membros do Colégio Eleitoral estão programados para se reunir em seus estados para votar. Em 6 de janeiro de 2025, o Congresso se reunirá. A vice-presidente Harris, como presidente do Senado, anunciará os resultados do voto do Colégio Eleitoral.
Os conflitos potenciais neste processo são inúmeros. Se o voto do Colégio Eleitoral terminar empatado, a eleição poderá acabar nas mãos da Câmara dos Representantes no Congresso, atualmente controlada por uma estreita maioria republicana. Uma votação ali decidiria quem ganha a Presidência.
Dependendo dos desafios legais, o caso também poderia terminar na Suprema Corte, como na eleição de 2000 entre George W. Bush e Al Gore. Se Trump vencer no Colégio Eleitoral, Kamala Harris teria que certificar sua eleição, o que provavelmente não lhe daria prazer.
Como os Estados Unidos não têm uma contagem de votos nacional agregada nem um sistema padronizado de urnas eletrônicas, como o Brasil, a incerteza e o rancor partidário que marcaram esta campanha podem se estender por semanas ou até meses após o 5 de novembro.
Trump oferece a possibilidade de mais mudanças do que Harris. A política de Trump para a Ucrânia poderia recompensar a Rússia com ganhos territoriais e maior status, a menos que ele fosse contido pelo establishment de política externa.
Guerreiros culturais celebrariam a vitória de Trump como um passo em direção ao nacionalismo étnico e religioso e ao conservadorismo social que valorizam. No comércio, Trump prometeu uma tarifa geral sobre importações de 20% e tarifas para importações da China de 60%.
Avaliar exatamente quais promessas de campanha Trump realmente cumpriria e quais ele descartaria é difícil. A acusação de seus críticos de que seu personalismo, vingança e arbitrariedade ameaçam a democracia e o Estado de Direito não é exagerada, mas não necessariamente influenciará os eleitores americanos.
Trump tem uma vantagem importante sobre Harris, pois a mensagem dele responsabilizando Harris para os preços altos na economia tem sido eficaz.
Pesquisas mostram que o número dos eleitores que confia mais nele para gerenciar a economia do que em Harris é igual ou – dependendo do instituto– maior dela. Isso é crucial, pois questões econômicas, como o preço da gasolina, alimentos, moradia, saúde e educação, geralmente estão no topo das preocupações que motivam eleitores nas eleições presidenciais dos EUA.
Harris precisa de uma alta participação para vencer em uma eleição que pode ser extraordinariamente apertada. O apoio de mulheres, especialmente jovens preocupadas com novas restrições ao direito ao aborto sob uma segunda administração Trump, pode ser decisivo para ela, caso vença.
Ela arrecadou mais dinheiro do que Trump, mas isso não garante sua vitória nos estados-pêndulo. Se conseguir manter Michigan, Wisconsin e Pensilvânia e adicionar mais um estado, provavelmente Nevada, ela pode chegar à Casa Branca.
No Brasil, uma vitória de Harris seria recebida com alívio pelo governo Lula. A cooperação entre EUA e Brasil continuaria em áreas como meio ambiente e mudanças climáticas, direitos trabalhistas, comércio e investimento.
A volta de Trump, por outro lado, estimularia as aspirações dos bolsonaristas no Brasil, onde o Partido Liberal, o partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, se saiu bem nas eleições municipais de 2024. O resultado também seria um impulso para a extrema-direita em todo o mundo.
Se Trump vencer apesar de sua condenação por crime grave, isso poderia levar a pedidos para reverter a inelegibilidade de Bolsonaro no Brasil. A libertação dos “vândalos” de 6 de janeiro que invadiram o Capitólio dos EUA – se isso ocorrer (e há uma chance de Trump permitir que eles permaneçam na prisão) – poderia gerar pressão para fazer o mesmo com os condenados pela invasão do Planalto em Brasília em 8 de janeiro de 2023.
Na luta entre a direita mais convencional e o “bolsonarismo raiz” – claramente evidente nas eleições municipais no Brasil em outubro de 2024 –, a eleição do Trump fortaleceria o bolsonarismo raiz. A esperança da extrema-direita no Brasil seria que um novo governo brasileiro, empossado em 2027, se alinhe a uma administração Trump nos EUA. No curto prazo, as relações EUA-Brasil, já tensas no nível geopolítico, se deteriorariam ainda mais.
O pior de uma vitória de Trump seria a elevação de sua visão autoritária da política à Casa Branca. À maneira de McCarthy, Trump vê seus opositores políticos como inimigos. Nos últimos dias, chamou os democratas de “malignos” e “perigosos”, e disse que, se se tornar presidente, invocará a Alien Enemies Act de 1798, que permite ao presidente prender e deportar qualquer um considerado um “inimigo alienígena” (como “imigração legal e ilegal” não foi definida no ato, isso abriria as portas para amplos poderes presidenciais). Trump também disse: “Temos o inimigo externo e, em seguida, temos o inimigo interno, e o inimigo interno, na minha opinião, é mais perigoso do que a China, a Rússia e todos esses países” (Bouie, 2024; Dowd, 2024).
Pode ser uma longa noite em 5 de novembro. Os Estados Unidos, uma hegemonia em declínio, uma democracia conturbada, uma sociedade dividida – poderão durar algumas semanas ou mesmo meses agonizantes.
Referências
Bouie, Jamelle. (2024). “This is No Ordinary Election” in The New York Times, Sunday Opinion, 20 October, p. 3.
Diaz, Jaclyn, (2023) “The charges facing Trump in the Jan. 6 investigation, explained” in National Public Radio, www.npr.org 2 August, at https://www.npr.org/2023/08/01/1191493880/trump-january-6-charges-indictment-counts accessed on 28 October 2024.
Dowd, Maureen. (2024). “Trump’s Charity Towards None” in The New York Times, Sunday Opinion, 20 October, p. 2.
Hardy, Bradley L., Elizabeth Krause, and James P. Ziliak (2024) “Income Inequality in the United States, 1975-2022” in Fiscal Studies Special Issue Paper, at https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/1475-5890.12368 accessed on 28 October 2024.
Massari, Paul (2024) “Hope for Democracy: Steve Ansolabehere says voting is alive and well in the US. That doesn’t mean it can’t be improved” in Colloquy, Harvard Graduate School of Arts and Sciences, Summer/Fall 2024, pp. 10-15.
Ramos, Paola. 2024. Defectors: The Rise of the Latino Far Right and What it Means for America. New York: Pantheon Books.
É diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House
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