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Interesse Nacional
17 novembro 2023

Crise econômica e fenômeno eleitoral imprevisível fazem desta eleição a mais importante dos últimos 40 anos na Argentina

Além das características dos candidatos, esta eleição pode ser considerada a mais importante desde o retorno à democracia, pois é a primeira vez em que chega à instância decisiva um candidato, Milei, que rejeita a política de memória pela verdade e pela justiça, o “Nunca Mais”, pedra fundamental da reconstrução da democracia no país

Além das características dos candidatos, esta eleição pode ser considerada a mais importante desde o retorno à democracia, pois é a primeira vez em que chega à instância decisiva um candidato, Milei, que rejeita a política de memória pela verdade e pela justiça, o “Nunca Mais”, pedra fundamental da reconstrução da democracia no país

Sérgio Massa e Javier Milei participam de debate eleitoral na Argentina (Foto: Divulgação)

Por Ramon Garcia Fernandez*

Neste domingo ocorrerá na Argentina o segundo turno das eleições presidências; nele se enfrentam o atual Ministro de Economia, Sérgio Massa (51 anos), candidato da situacionista União pela Pátria (peronista), e um outsider do sistema político tradicional, o economista autodefinido como anarcocapitalista, Javier Milei (53 anos), candidato do novo partido de (ultra)direita A Liberdade Avança.

Milei tem um caráter explosivo. Sua agressividade fica simbolizada na motoserra que empunha nos atos de campanha. Seus discursos atacam os políticos (“a casta”) e o Estado, visto como um agente que restringe as liberdades; insulta os que ele julga como socialistas, de Keynes ao Papa Francisco (de quem disse ser o representante do maligno na Terra); afirma que a justiça social é um roubo.

Entre suas propostas econômicas estão a de fechar o Banco Central, a dolarização da economia, um mercado de órgãos, vouchers para a Educação, a rápida e radical redução do gasto público e a eliminação das transferências sociais. A promessa de cortar relações com o Brasil e a China, dois dos principais parceiros comerciais do país, por serem ‘comunistas’ completa o quadro.

Em sua primeira incursão na política, Milei foi eleito deputado federal em 2021, mas faltou frequentemente às sessões, ou dormiu nelas, e muitas vezes se absteve ou saiu antes das votações.

Em comparação, Massa é mais convencional. Político que atua há muito no peronismo, foi deputado estadual e prefeito até virar chefe de gabinete no primeiro governo da Cristina Kirchner, cargo no qual ficou um ano. Tornou-se mais tarde opositor ao kirchnerismo, e com sua própria versão do peronismo, a Frente Renovadora, foi eleito deputado nacional em 2013. Foi candidato a presidente em 2015, ficando terceiro.

Para as eleições de 2019, a maioria das correntes do peronismo, incluindo a sua, fecharam com a candidatura de Alberto Fernández. Massa virou presidente da Câmara e em meados de 2022 virou Ministro de Economia. Em suas propostas, ele sempre enfatiza a necessidade de um grande acordo para acabar com a crise do país, e promete chamar opositores para seu governo.

Um pleito com características inéditas

Além das características dos candidatos, esta eleição pode ser considerada a mais importante dos 40 anos desde o retorno à democracia.

Atribuo a esta eleição esse caráter especial porque é a primeira vez em que chega à instância decisiva um candidato, Milei, que rejeita a política de memória pela verdade e pela justiça, o “Nunca Mais”, pedra fundamental da reconstrução da democracia no país.

O candidato de direita e sua vice, a advogada Victoria Villarruel, têm feito reiteradas críticas a essas políticas, minimizando o plano genocida da ditadura (1976-1983), atribuindo as desaparições e torturas a ‘alguns excessos’. A irrupção deste candidato decorre da complicada situação econômica, para a qual o governo do presidente Alberto Fernández não tem encontrado respostas.

A economia sofreu nos últimos meses uma aceleração da inflação e as reservas internacionais encontram-se em valores muito baixos. Há quem diga que esta é a maior crise da história argentina, o que revela uma descomunal falta de memória.

A economia durante o atual governo cresceu a taxas baixas, porém positivas, assim como o emprego, especialmente o industrial; por sinal, a própria indústria apresenta resultados bastante satisfatórios num momento difícil. Seria absurdo, por exemplo, querer comparar esta situação com a de 2002, início do atual ciclo político.

Nesse ano, a Argentina estava com desemprego recorde, e vinha de uma desvalorização de 200% depois de anos de conversibilidade; o país encontrava-se fortemente endividado em dólares, inclusive com o FMI. As classes médias estavam revoltadas porque suas poupanças, supostamente em dólares, foram passadas para pesos com importantes perdas.

Se a situação na qual o presidente Alberto Fernández assumiu era complicada, certamente o quadro piorou muito com a pandemia. As medidas adotadas para enfrentá-la conseguiram manter razoavelmente o nível de atividade, além de compensarem parcialmente a renda daqueles cujas atividades tinham sido forçosamente paralisadas. As restrições à mobilidade, porém, foram consideradas exageradas por parcela significativa da população, rejeição estimulada pela grande mídia completamente alinhada com a oposição.

A partir de 2021, a virada à direita

Nas eleições legislativas de 2021, o Mudemos (agora Juntos pela Mudança), coligação que apoiara o presidente Macri, conseguiu 43% dos votos, enquanto o kirchnerismo/peronismo apenas 35%. Nesse contexto de virada à direita da opinião pública, chamou a atenção a surpreendente votação, nas eleições legislativas da Cidade de Buenos Aires em outubro passado, de um partido novo, A Liberdade Avança, que obteve 17% dos votos. Quem encabeçava esse partido era, precisamente, Javier Milei.

O ano de 2022 foi muito complicado para o governo do presidente Fernández. Diversas disputas entre ele e sua vice-presidente, a queda de sua popularidade (que não se estendeu à Cristina), uma seca excepcional que prejudicou a agricultura, a retração da economia mundial pela guerra da Ucrânia, além da saída do seu Ministro de Economia, Martín Guzmán, levaram alguns a pensar que ele não conseguiria concluir seu mandato.

A nomeação de Sérgio Massa como Ministro de Economia conseguiu deter as corridas contra o dólar, trazendo algo de calma a uma economia muito combalida. Essas dificuldades continuaram em 2023, especialmente com o fracasso sistemático das tentativas de diminuir a inflação. Apesar disso, a imagem de Massa como o efetivo condutor do governo foi se consolidando. E, na hora de escolher o candidato peronista, ele acabou sendo apoiado por quase todos os setores.

A ascensão de Milei

No começo da campanha de 2023, a candidatura de Milei foi bem recebida pelos conservadores que supunham que ele atingiria um público essencialmente pobre, masculino e jovem, setor que historicamente apoiava candidatos peronistas – e assim tirando votos deles. O complicado calendário eleitoral argentino, no qual as províncias e os municípios podem escolher o dia das eleições, fez com que houvesse desde março inúmeros confrontos locais. Em praticamente todas as eleições existiam partidos regionais alinhados com Milei. Todos eles obtiveram menos do que 15% dos votos e, na grande maioria dos casos, não chegaram a 5%.

O sistema eleitoral argentino também adota eleições primárias simultâneas e obrigatórias. Todos os partidos têm que realizar eleições internas, mesmo quando têm um único candidato, pois só podem concorrer nas eleições as listas que obtiverem no mínimo 1.5% nas primárias.

Antes dessas eleições, realizadas no 13 de agosto, havia um certo script no ar, no qual coincidiam os institutos da pesquisa e a grande imprensa. Nessa leitura, o Juntos pela Mudança (JxM) ficaria em primeiro lugar, o peronismo em segundo e Milei em terceiro. Sendo assim, a única disputa relevante ocorreria no interior do JxM, para ver se o candidato seria o Horácio Rodriguez Larreta, do setor mais moderado (as pombas) ou a Patrícia Bullrich, do setor mais agressivo (os falcões).

Seguia o script dizendo que, no primeiro ou no segundo turno, Milei acabaria apoiando o candidato do JxM, e este se imporia nas eleições com uma margem superior aos 60% dos votos, garantindo a força para realizar mudanças radicais de corte liberalizante.

Para surpresa geral, Milei foi o primeiro nas primárias, ganhando em 16 dos 24 distritos do pais; o peronismo ganhou em 5 e o JxM, em 3. A diferença entre os três partidos foi mínima, 2.8% do primeiro, Milei, ao terceiro, Massa, enquanto Patrícia Bullrich, ganhadora da interna do JxM, ficou em segundo.

Esta situação provocou um desconcerto nas elites econômicas que apoiavam o JxM. A candidatura de Bullrich começou a naufragar no dia posterior às primárias, pois parecia estar se cristalizando um confronto entre Milei pela direita e Massa pelo centro e centro-esquerda, sem espaço para uma direita desprovida do charme da novidade.

Campanha cheia de surpresas

Finalmente, no primeiro turno das eleições, em 22/10, houve outra surpresa: o candidato peronista pulou de terceiro para primeiro, com 36.7%, Milei ficou estagnado em 30% e o JxM só conseguiu 23.8%. Massa se impôs em 13 distritos, Milei em 10 e o JxM só se manteve no seu reduto da cidade de Buenos Aires. Essa simples soma de percentagens, porém, esconde que a participação no primeiro turno aumentou 7% em relação às primárias, e que o número de votos em branco caiu pela metade.

A questão no segundo turno será a de ver para onde vão os votos dessa terceira parte do eleitorado que não votou no Massa nem no Milei. Este conseguiu, logo após o primeiro turno, o apoio do ex-presidente Mauricio Macri e de Bullrich. Isto não significa, porém, um apoio de todo o JxM: diversos setores propõem votar em branco, alguns preferem liberdade de ação, e outros declararam apoio a Massa.

A esquerda supõe-se que votará a Massa ou em branco, e entre os seguidores de Schiaretti muitos apoiam Massa, apesar de que o candidato parece ser mais simpático a Milei.

No debate obrigatório entre os candidatos, realizado no dia 12 de novembro, houve uma constatação, até entre os jornalistas de direita, de que Massa saiu-se muito melhor.

Milei não conseguiu encurralar o candidato que é ministro de uma economia em situação difícil, enquanto Massa atacou com solidez as inconsistências das propostas de Milei e cobrou dele se levaria a cabo suas propostas mais bombásticas.

Certamente o caráter de Milei afasta muitos eleitores moderados, e sua aliança com o impopular Macri pode espantar os que acreditavam em sua distância da ‘casta’. Por outro lado, a situação econômica difícil joga contra Massa.

Considero que, apesar destas dificuldades, os argentinos saberão escolher o caminho mais equilibrado, evitando um salto no escuro cujas consequências são imprevisíveis.


*Ramon Garcia Fernandez é professor na Universidade Federal do ABC (UFABC)


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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