15 setembro 2025

Da ‘questão militar’ do final do Império ao julgamento do século 

A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados, incluindo membros das Forças Armadas, é um ponto de inflexão decisivo na história do Brasil e abre caminho para superar a democracia tutelada e para pavimentar a longa estrada rumo a uma sociedade mais livre e justa

Sessão na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no quinto dia de julgamento dos réus do Núcleo 1 da trama golpista, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete aliados. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Bacharéis, militares e golpes impunes

No final do Império, quando o Brasil era “o país dos bacharéis”, as Forças Armadas – vitoriosas na Guerra do Paraguai – tinham ressentimento pelo reduzido prestígio e influência, o que produziu a chamada ‘Questão Militar’, destinada a valorizar a instituição. 

A partir de então, ao longo de quase 150 anos, o Brasil viveu democracias tuteladas pelos militares. 

Na República foram mais de uma dezena de golpes militares e apenas um – liderado pelo Marechal Lott – defendeu a democracia e assegurou a posse de JK em 1955. 

Os oficiais de alta patente que lideraram golpes militares nunca foram punidos.

A derrota nas eleições de 2022 levou o ex-presidente Jair Bolsonaro a organizar um golpe de Estado destinado a impedir a alternância no poder. 

‘Em acontecimento histórico, o país testemunhou neste mês o “julgamento do século”. Foram condenados, de forma inédita, por envolvimento na trama golpista, cinco líderes militares e um ex-presidente da República’

Em acontecimento histórico, o país testemunhou neste mês o “julgamento do século”. Foram condenados, de forma inédita, por envolvimento na trama golpista, cinco líderes militares e um ex-presidente da República a penas superiores a 20 anos. 

Será o fim da democracia tutelada pelos militares em nosso país? 

A presença de militares na política é um debate antigo, que remonta à questão militar do final do Império e até hoje resiliente. O tema do presente é o mesmo do passado, mas o propósito do debate atual é o inverso. 

Na questão militar do Império, o Exército era discriminado por um sistema imperial que privilegiava os bacharéis ligados a políticos conservadores e à oligarquia rural. Enquanto isso, os jovens tenentes, inspirados no positivismo do mestre Benjamin Constant, pregavam a ordem, assegurada pelo Exército, e o progresso, associado à abolição e à república. 

‘Hoje o núcleo da resiliente questão militar é a aspiração da sociedade de limitar o poder político dos militares, enfatizar sua profissionalização e, assim, preservar a democracia’

Assim, o núcleo da questão militar da década de 1870 era a aspiração dos jovens oficiais por liberdade política para se manifestarem em defesa da abolição, da república, da corporação. Em contraste, hoje o núcleo da resiliente questão militar é o oposto – a aspiração da sociedade de limitar o poder político dos militares, enfatizar sua profissionalização e, assim, preservar a democracia. Ou seja, o país vive hoje uma questão militar invertida. 

O golpe da República foi a primeira manifestação clara do papel político dos militares e da consciência de que a corporação deve ser a vanguarda na defesa lato sensu do país e da governabilidade. Era o resgate republicano do Poder Moderador do Império, assumido então, não mais pelo imperador, mas pelas FFAA.

A transição da Monarquia para a República preservou o sistema político dominado pelas oligarquias rurais, tendo os militares como garantes desse modelo excludente. 

‘Os militares não estavam no palco, mas inspiravam o enredo’

“A ausência do povo, eis o pecado original da República”, escreveu o saudoso mestre José Murilo de Carvalho (O Pecado Original da República. Debates, Personagens e Eventos para compreender o Brasil. P.18). Isso não impediu períodos de instabilidade, como o estado de sítio no governo Hermes da Fonseca, e rebeliões militares, como o Movimento Tenentista de 1922 que, embora derrotado, preservou forte influência política. Ou seja, os militares não estavam no palco, mas inspiravam o enredo. 

A Revolução de 30 foi o ponto de inflexão. “Foi necessário aguardar a década de 1930 para que a presença do povo se fizesse novamente sentir”, repetiu José Murilo de Carvalho (Idem. P.212).  

Mais uma vez, o Exército foi decisivo na vitória, tendo à frente o Tenentismo, com o importante apoio das Polícias Militares estaduais. A corporação contribuiu, assim, para o nascimento do Brasil moderno, semi-industrial  e apoiado pelo operariado urbano. É verdade que muitos tenentes de 1922 apoiaram Vargas na Revolução de 30, mas foram sendo cooptados pelos conservadores, e terminaram por endossar a ditadura do Estado Novo sete anos depois. 

A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, com a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), criou o paradoxo entre uma atuação externa democrática e uma ditadura doméstica. Uma vez mais, foram as Forças Armadas que operaram a inflexão, ao darem ultimatum a Vargas para deixar o poder e anunciar eleições livres, vencidas pelo General Dutra, então Ministro da Guerra.

Vargas assumiu três perfis ao longo da vida política, segundo seu biógrafo Lira Neto: o revolucionário de 30, o ditador do Estado Novo de 37 e o democrata – reformista de 51. 

Mas esses perfis produziram uma dicotomia na imagem pública do líder, aliás muito bem retratada no final da trilogia do biógrafo. “Para muitos, ele foi o grande responsável pela modernização do Brasil, ao pôr em prática um modelo nacional-desenvolvimentista capaz de direcionar, em pouco mais de duas décadas, um país agrário para o rumo efetivo da industrialização. … Para outros, contudo, o chamado populismo varguista seria a expressão mais pronta e acabada do uso das massas como instrumento de dominação política. A incorporação dos trabalhadores e das classes médias no cenário nacional teria sido apenas uma forma de legitimar o líder autoritário e personalista.”( Lira Neto. Getúlio. 1945-1954. Da volta pela consagração popular ao suicídio.P.350-351).   

Em lugar dessa dicotomia, José Murilo de Carvalho tem a visão, mais realista, de que com esse último Vargas (1951-1954), “veio a primeira experiência brasileira de conciliação da liberdade e da igualdade”. (Idem. P.154

O Golpe Militar adiado e sua chegada em 64

As reformas iniciadas por Vargas ameaçaram poderosos grupos econômicos nacionais e estrangeiros que, aliados com a liderança militar, tiveram como desfecho seu trágico suicídio. A gigantesca manifestação popular em solidariedade ao pai dos pobres frustrou a elite militar, que preparava o golpe. 

O suicídio, reconhecidamente, adiou por dez anos o golpe militar, que veio a ocorrer em 1964. Pela primeira vez, a corporação militar, tendo o apoio do empresariado, das classes médias e do governo norte-americano, assume o poder e inaugura o autoritarismo, com o regime militar de 21 anos. 

‘A imagem de um Exército reformista do passado desapareceu com o AI 5 de 1968’

A imagem de um Exército reformista do passado desapareceu com o AI 5 de 1968 e outras medidas que implicaram: proibição do jogo político democrático, suspensão das liberdades individuais, graves violações de direitos humanos, mortes e execuções sumárias. Com o golpe de 64, o desgaste da imagem pública das Forças Armadas foi inevitável.  

Militares redemocratizados e seu inverso

Em contraste, com a redemocratização e durante 33 anos, os militares respeitaram as instituições e se afastaram da política. 

A criação do Ministério da Defesa, ocupado por um civil desde o governo Fernando Henrique e até Dilma Rousseff, refletiu esse afastamento entre a caserna e a política.  

Entretanto, valem aqui duas importantes qualificações. Poucos dias antes do julgamento do pedido de habeas corpus de Lula, o comandante do Exército, general Villas Boas, fez grave manifestação ao STF em seu Twitter. “Embora falasse de respeito à Constituição, na realidade a agredia porque pressionava um dos três poderes da República, quando a Carta Magna manda que as Forças Armadas os garantam. Ela teve apoio imediato de outros generais da ativa e da reserva. … Em 2015, o general Hamilton Mourão, então à frente do Comando Militar do Sul, já fizera declarações políticas, atitude repetida dois anos depois.” (José Murilo de Carvalho. Forças Armadas e política no Brasil. P. 7-8.)

‘Apesar desses dois episódios de retrocesso, a política não entrou nos quarteis e, assim, os militares recuperaram em grande medida o perfil de honestidade, profissionalismo e espírito público’

Apesar desses dois episódios de retrocesso, a política não entrou nos quarteis e, assim, os militares recuperaram em grande medida o perfil de honestidade, profissionalismo e espírito público. “Em 1985, retomou-se o ensaio de 1945. Mas até hoje a recuperação da liberdade não tem resultado em progresso significativo da igualdade. O Brasil continua uma democracia liberal, com liberdade, mas sem igualdade”. ( José Murilo de Carvalho. O Pecado Original da República. P.155). 

A partir da eleição de Bolsonaro, aquelas virtudes dos militares se transformaram em vícios. 

Os amplos e profundos danos para a democracia durante o governo Bolsonaro são de domínio público – defesa do regime militar e dos ícones da tortura, como o coronel Brilhante Ustra; ataque às instituições representativas, em particular o Supremo Tribunal Federal (STF); tentativa de desacreditar o sistema eletrônico de votação; emprego de mais de seis mil e cem militares em funções civis; aparelhamento militar da Presidência da República e da Casa Civil, paradoxalmente chefiada por militar; forte aproximação com polícias militares estaduais; negacionismo de vacinas na pandemia; desvio de joias sauditas destinadas ao Estado em benefício próprio; e provas robustas de tentativa de golpe.

‘O desfecho do desvirtuamento do papel das Forças Armadas atingiu seu clímax no vandalismo das sedes dos Três Poderes’

Muitas dessas medidas tiveram o envolvimento de militares reformados e da ativa, alguns deles de alta patente, inclusive membros do Alto Comando. O desfecho desse desvirtuamento do papel das Forças Armadas atingiu seu clímax no vandalismo – praticado por milhares de seguidores do presidente – das sedes dos Três Poderes. Esse episódio do 8 de janeiro era parte de um plano destinado a provocar caos social generalizado, na expectativa de que a liderança das Forças Armadas se sentisse pressionada a dar o golpe.  

Nos 33 anos pós-redemocratização, as Forças Armadas estiveram em grande medida ausentes do jogo político, o que contribuiu para o avanço da democracia, apesar das turbulências geradas pelo impeachment de dois Presidentes e pela maior recessão econômica desde os anos 1930. 

O ponto de inflexão nessa trajetória virtuosa foi o governo Bolsonaro, que trouxe de volta os militares para a cena política e produziu um marcante desgaste na imagem da instituição. Isso tem sido comprovado por pesquisas recentes de opinião pública, sobretudo após a divulgação de partes da delação premiada do Ajudante de Ordens do Presidente, tenente-coronel Mauro Cid. 

Os descaminhos militares e seus antídotos  

A sucessão de episódios, anteriormente descritos, que minaram a imagem das Forças Armadas, produziu sérios agravantes, tanto na esfera política como no campo da corrupção. 

Apesar desses agravantes, tem sido inegável a disposição dos comandantes das Três Forças de apoiarem, e até mesmo acelerarem, as investigações da Polícia Federal, uma vez que seu prolongamento provoca desgaste crescente na imagem pública da corporação. 

Entretanto, mesmo diante dessa disposição e do clima de cordialidade entre o Comandante do Exército e o Ministro da Defesa, a dificuldade maior subsistia – até onde poderiam chegar o julgamento e eventuais condenações dos militares de alta patente envolvidos na tentativa de golpe? 

Essa dificuldade foi superada com o início do julgamento no STF.

Conclusão

A superação do envolvimento dos militares na política depende tanto de variáveis estruturais como conjunturais. “A questão envolve uma dimensão histórico-sociológica. O fenômeno de Forças Armadas profissionais, alheias ao mundo político… Só existe em democracias liberais. Nesses países criou-se uma hegemonia burguesa baseada em crescimento econômico e inclusão política de proletários e camponeses. Paralelamente, o crescimento do nacionalismo fortaleceu as identidades nacionais em detrimento de identidades de classe, sobretudo da classe operária, reduzindo com isso as possibilidades de revoltas e revoluções, restringindo o papel político dos militares a guerras externas.” (José Murilo de Carvalho. Idem. P.22).

‘Nosso desenvolvimento tardio, excludente, não foi capaz de construir uma democracia sólida’

Em contraste com essas características das economias avançadas, nosso desenvolvimento tardio, excludente, não foi capaz de construir uma democracia sólida, nem de incorporar as massas na economia e na política. “A entrada tardia do povo na política, verificada na década de 1930, veio acompanhada de mobilização política que deu margem à transformação das Forças Armadas em atores políticos importantes, quando não hegemônicos.”( José Murilo de Carvalho. Idem. P. 23).  

Essa hegemonia esteve presente na Lei da Anistia, sem dúvida um avanço ao preparar o caminho para o fim da ditadura. 

Entretanto,  “perdeu-se a chance da reconciliação efetiva e do aprendizado na memória nacional … Aqui no Brasil o lixo foi varrido para debaixo do tapete. Faz de conta que não aconteceu.”(Pérsio Arida. Revista Piauí. Número 205.Outubro de 2023. Os Vivos e os Mortos. A questão militar e a democracia no Brasil. Fernando de Barros Silva).  

‘As dificuldades mais fortes para distanciar os militares da política residem na resiliência de uma extrema direita antidemocrática’

No plano das circunstâncias conjunturais, as dificuldades mais fortes para distanciar os militares da política residem na resiliência de uma extrema direita antidemocrática, que abrange parcela da corporação militar e cerca de um quarto da sociedade.  A isso se soma a frágil base de sustentação do governo atual em um Congresso de ampla maioria conservadora e fisiológica. 

O cotejo dessas duas vertentes – estrutura e conjuntura – que condicionam o horizonte de superação do envolvimento dos militares na política, permite concluir que o país está no caminho certo. 

A arquitetura do golpe de Estado construída nos quatro anos do governo Bolsonaro, que culminou na sublevação do 8 de janeiro, ameaçou o país com perigoso retrocesso institucional. Esse cenário foi agravado pela ambiguidade das Forças Armadas, finalmente superada pela recusa dos comandantes do Exército e da Aeronáutica de acatarem o projeto golpista do Presidente. 

Ao longo dos dois últimos anos, um amplo movimento destinado a limitar o papel dos militares na política ganhava força, crescia sua aceitação na sociedade, e alcançava adesão no interior da corporação. Embora lentos, os progressos vinham ocorrendo e a despolitização dos quarteis avançava.

Essa trajetória promissora alcançou o ápice esta semana, com o  “julgamento do século”. Em decisão inédita na história de nosso país, a Primeira Turma do STF condenou, com penas superiores a 20 anos, o ex-presidente Bolsonaro – líder da organização criminosa – e mais sete aliados, cinco deles militares de alta patente, por tentativa de golpe de Estado, e outros quatro crimes. Por primeira vez, lideranças políticas e oficiais das Forças Armadas são condenados por atentados contra a democracia.  

O “julgamento do século” é um ponto de inflexão decisivo em nossa história. Abre caminho para superar a democracia tutelada e, assim, pavimentar a longa estrada rumo a uma sociedade mais livre e justa.  

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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