25 maio 2023

Deslocamentos internacionais forçados e mudanças climáticas: dilemas e o limbo institucional normativo

Migrações se confundem com a história da humanidade, e desde os anos 1950 há iniciativas para proteger o deslocamento forçado de pessoas, mas ‘refugiados ambientais’ ainda se encontram em uma indefinição que desafia as instituições e deixa vítimas de desastres naturais sem proteção. Para pesquisadores, crise deve ocasionar uma mudança institucional que responda a ela, mas o resultado é incerto

Migrações se confundem com a história da humanidade, e desde os anos 1950 há iniciativas para proteger o deslocamento forçado de pessoas, mas ‘refugiados ambientais’ ainda se encontram em uma indefinição que desafia as instituições e deixa vítimas de desastres naturais sem proteção. Para pesquisadores, crise deve ocasionar uma mudança institucional que responda a ela, mas o resultado é incerto

Famílias deslocadas por problemas climáticos buscam água no Paquistão (Foto: Asian Development Bank)

Por Ricardo Rosado e Alexandre Igari*

A história da humanidade se confunde com a história da migração. Desde os primeiros Homo sapiens, que surgiram no continente africano e se espalharam por todo o planeta, os seres humanos sempre se deslocaram e se locomoveram em busca de melhores condições de vida. No entanto, conforme a sociedade moderna foi se desenvolvendo, o trânsito das pessoas passou a ser cada vez mais limitado. Quanto maior a consolidação do atual sistema internacional –composto por Estados soberanos com fronteiras rígidas e bem controladas–, mais restrições foram impostas à locomoção humana.

Foi em uma Conferência da Liga das Nações em 1920, realizada em Paris logo após o final da Primeira Guerra Mundial (Paris Conference on Passports & Customs Formalities and Through Tickets), que se definiu o formato utilizado até hoje para controlar os deslocamentos internacionais, baseado na emissão de passaportes e de vistos. Esse formato permite que o Estado que recebe imigrantes possa decidir, caso a caso, quem está autorizado a entrar em seu território e sob quais condições. Mas, se a Primeira Guerra foi o contexto que possibilitou o estabelecimento do sistema internacional de migração, a Segunda Guerra originou a criação de um regime de exceção a essa instituição[1]: o sistema internacional de refúgio.

‘Além das milhões de mortes e da destruição de cidades, a Segunda Guerra Mundial deixou outro legado negativo: o maior fluxo de deslocamento forçado da história moderna até então’

Além das milhões de mortes de militares e de civis e da destruição de dezenas de cidades, a Segunda Guerra Mundial deixou outro legado negativo: o maior fluxo de deslocamento forçado da história moderna até então. Apenas na Europa, as estimativas indicam mais de 60 milhões de pessoas deslocadas no período do pós-guerra. Para lidar com este problema, o sistema internacional articulou uma série de iniciativas sob a coordenação da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU). Este processo culminou na criação do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), em dezembro de 1950, e na adoção da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, em 28 de julho de 1951.

Baseado nos documentos que compõem o sistema internacional de refúgio, o ACNUR adota a seguinte definição para refugiados: “As pessoas refugiadas estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Também é considerado refugiado quem foi forçado a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e graves violações dos direitos humanos”.

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Contrastantemente às restrições impostas aos migrantes, os refugiados dispõem de uma série de direitos de trânsito que lhes permitem contar com a proteção do país de acolhida e da comunidade internacional, geralmente representada pelo ACNUR. Esses direitos incluem a proteção contra a devolução do refugiado ao país onde ele corre risco. Em outras palavras, o país receptor não pode se recusar a receber o refugiado e enviá-lo de volta ao seu país de origem.

Inicialmente criado como uma organização temporária, com um mandato de três anos, cujo objetivo era reassentar os refugiados europeus da Segunda Guerra Mundial, o ACNUR se tornou permanente devido ao aumento constante dos deslocamentos forçados durante a segunda metade do século XX. Essa foi a primeira grande mudança institucional pela qual passou o sistema internacional de refúgio, à qual muitas outras se seguiram e alargaram o escopo de atuação do ACNUR que, além do seu mandato original, hoje chega a atuar em situações que envolvem deslocados internos e apátridas.

Atualmente uma nova crise afeta a instituição do refúgio: os desastres naturais causados, principalmente, pelas mudanças climáticas. Nas últimas décadas, tais fenômenos vêm se intensificando tanto em frequência quanto em magnitude devido à ação humana sobre os sistemas da natureza e têm, cada vez mais, afetado grandes populações e causado deslocamentos forçados.

‘Desde 2008 uma média anual de 26,4 milhões de pessoas foram deslocadas de suas casas devido a desastres naturais, equivalente a uma pessoa deslocada por segundo’

De acordo com o Internal Displacement Monitoring Centre, desde 2008 uma média anual de 26,4 milhões de pessoas foram deslocadas de suas casas devido a desastres naturais, equivalente a uma pessoa deslocada por segundo. E, como as áreas mais vulneráveis a desastres naturais tendem a se localizar em países menos desenvolvidos, seus habitantes costumam ser pessoas em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica.

No entanto, apesar do uso cada vez mais corrente do termo “refugiados ambientais”, as vítimas de desastres naturais que cruzam fronteiras não se qualificam como refugiados, pois não se enquadram no conceito de fuga “por fundados temores de perseguição ou por violência” consagrado pelo sistema internacional. Dessa forma, essas pessoas não contam com a proteção do sistema internacional de refúgio e do ACNUR.

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De um lado, existem pressões migratórias enormes: as mudanças climáticas supramencionadas se somam às outras motivações existentes para o deslocamento internacional, como a migração por questões socioeconômicas e o refúgio. De outro, existe um sistema internacional extremamente restritivo e que dificulta o trânsito de pessoas, principalmente daquelas que não têm recursos para seguir os canais regulares de migração.

Isso faz com que os “refugiados ambientais” encontrem-se num limbo normativo que desafia as instituições da migração e do refúgio, ainda incapazes de oferecer proteção e dignidade às vítimas de desastres naturais forçadas ao deslocamento. Tal crise, como as anteriores, deve ocasionar uma mudança institucional que responda a ela. No entanto, ainda é incerto se isso ocorrerá em alguma dessas instituições ou se a resposta partirá de alguma outra, seja por meio do processo de mudança institucional, seja pela criação de um novo arcabouço desenhado especificamente para essa questão.


*Ricardo Rosado é bacharel em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduando em sustentabilidade pela Escola Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, onde desenvolve pesquisas sobre o impacto dos desastres naturais e das mudanças climáticas no deslocamento de populações vulneráveis. Trabalha com projetos sociais e ambientais e tem passagens por órgãos internacionais, organizações do Terceiro Setor e empresas.

Alexandre Igari é professor e pesquisador na Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve pesquisas nas áreas de economia ecológica e mudança institucional, atuando no Programa de Pós-graduação em Sustentabilidade e no bacharelado em gestão ambiental da Escola de Artes Ciências e Humanidades (EACH). Graduou-se em administração de empresas e em ciências biológicas pela USP, é mestre em gestão e restauração do meio natural pela Universidade de Alicante (Espanha) e doutor em ecologia pelo Instituto de Biociências da USP.  


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


[1] Instituições aqui são entendidas como regras e normas, tanto formais quanto informais, que balizam e dão previsibilidade às relações sociais.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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