É preciso repensar modelos de desenvolvimento após catástrofe
Especialistas têm insistido que as infraestruturas não podem ser apenas reconstruídas, mas arquitetadas em novos moldes, já adaptadas à realidade de fenômenos climáticos cada vez mais intensos e frequentes
Por Paulo Niederle*
O presidente Lula deve anunciou um importante conjunto de medidas do governo federal para amenizar os impactos da catástrofe climática no Rio Grande do Sul. Além das ações emergenciais, começam a aparecer as primeiras medidas com efeitos de médio e longo prazo.
Um dos anúncios mais importantes diz respeito à suspensão da dívida do estado com a União por 36 meses, o que representa a liberação de R$11 bilhões para ações de reconstrução. Na mesma direção, orienta-se o empréstimo do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, ou Banco do Brics+), no valor de R$5,75 bilhões. Uma parcela substancial desses recursos deve ser utilizada para reconstruir as infraestruturas públicas que foram destruídas pelas chuvas.
Essas ações trazem alento nesse momento tão difícil, mas também a apreensão de que, sem o devido tempo para amadurecer as condições de implementação, tais recursos possam ter um destino trágico e reforçar algumas das principais causas da crise.
Especialistas têm insistido que as infraestruturas não podem ser apenas reconstruídas, mas arquitetadas em novos moldes, já adaptadas à realidade de fenômenos climáticos cada vez mais intensos e frequentes. Obviamente, nos casos em que se requer urgência, será necessário trabalhar com o possível e não com o ideal.
Mesmo assim, preocupa o fato de que as decisões sobre a gestão desses recursos estejam a cargo de um governo que, ao longo dos últimos anos, trabalhou para flexibilizar as regras ambientais com vistas a facilitar usos indevidos do solo, tanto nas áreas urbanas como rurais. Em 2019, o governo de Eduardo Leite se esforçou para aprovar quase 500 alterações no Código Ambiental do Rio Grande do Sul.
O Governo Federal não estabelecerá condicionalidades ao uso desses recursos. Além do impacto político negativo que isso produziria neste momento, estamos tratando de recursos do próprio estado, que seriam utilizados para o pagamento de sua dívida. Mas, e no caso do empréstimo do NDE, ou dos recursos oriundos de rubricas de políticas federais específicas?
Sistemas agroalimentares mais sustentáveis?
Em virtude da familiaridade com o tema, dentre todas as medidas anunciadas, destaco aquelas destinadas aos agricultores familiares, que não apenas constituem um grupo social fortemente atingido pela catástrofe, mas que também são responsáveis por uma parcela expressiva da produção de alimentos para os mercados regionais e nacionais, e cuja perda impactará o abastecimento e os preços alimentares.
Dentre as medidas emergenciais para esse público, destaca-se a distribuição de cestas básicas e a prorrogação de dívidas. Enquanto medidas de caráter emergencial, elas são necessárias e acertadas.
No entanto, quando miramos as iniciativas de médio prazo, que não terão impacto imediato, está a liberação de quase R$1 bilhão para a subvenção econômica do crédito rural do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Essa medida foi demandada pelos próprios movimentos políticos da agricultura familiar gaúcha e, a partir disso, prontamente atendidas pelo governo.
Até o momento, não há informações sobre a existência de algum direcionamento quanto ao uso desse recurso para modalidades de crédito que possam incentivar sistemas ecológicos de produção de alimentos, para a recuperação sustentável de áreas degradadas, para ampliar as áreas de manejo agroflorestal, enfim, para um amplo e urgente conjunto de ações de transição agroecológica que, conforme também destacam inúmeros especialistas, precisam ser colocadas em marcha para ampliar a resiliência da agricultura às mudanças climáticas.
O que acontecerá se a maioria dos recursos do Pronaf destinadas ao Rio Grande do Sul for utilizada, como tem sido a regra, para o financiamento de lavouras de commodities? Se oferecermos crédito com taxas de juros nominais de 0% ao ano para a expansão da soja sobre áreas desmatadas, incluindo as áreas de encostas? Para a expansão de monocultivos que substituem a floresta biodiversa – com grande capacidade de captação da água – por cultivos que favorecem o assoreamento dos rios e, em virtude disso, aumentam exponencialmente a velocidade das águas e a magnitude das tragédias?
A resposta é simples: podemos até garantir renda e condições econômicas básicas para os agricultores, mas ao custo de aumentar ainda mais a vulnerabilidade deles (e de toda a sociedade) aos próximos eventos climáticos.
Nesse contexto de catástrofe, pensar em condicionalidades ambientais para acesso a recursos públicos é inimaginável quando o assunto são as ações e políticas emergenciais, incluindo a renegociação das dívidas do Pronaf. Entretanto, a reconstrução de médio e longo prazo demanda desde agora uma nova racionalidade, e não apenas dos governos, que infelizmente têm sido muito mais reativos do que proativos na agenda das mudanças climáticas, mas também das organizações sociais que pressionam esses governos por recursos e dos próprios agricultores que elas representam.
Não faltam evidências de que a transição para sistemas agroalimentares mais sustentáveis é uma medida essencial e urgente para adaptação das sociedades contemporâneas às mudanças climáticas. Se não for agora, neste exato momento em que ainda estamos catatônicos face aos acontecimentos, que seja pelo menos no futuro próximo, depois que as águas baixarem.
Daqui para frente, precisamos ter ainda mais consciência de que não podemos continuar repetindo as mesmas práticas esperando que elas produzirão resultados diferentes.
*Paulo Niederle é professor de sociologia e desenvolvimento rural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
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Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br
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