25 junho 2025

East x West

No mundo de 2025 não cabem temas como a visão binária da realidade. Uma percebida confrontação civilizacional Leste/Oeste não resiste à globalização econômica que amalgama a emergência de uma globalização civilizacional, contrariamente aos valores e preconceitos que alguns líderes mundiais anacronicamente perseveram em insistir

Destruição deixada por ataques à Faixa de Gaza (Foto: ONU)

“Oh, East is East, and West is West, and never the twain shall meet,

Till Earth and Sky stand presently at God’s great Judgment Seat;

But there is neither East nor West, Border, nor Breed, nor Birth, When two strong men stand face to face, though they come from the ends of the earth! “

Este texto de Rudyard Kipling, do poema The Ballad of East and West, refletia, já há cem anos, os confrontos civilizacionais que estamos vivendo atualmente e a noção que ainda perdura em vários setores no Ocidente sobre a superioridade dos seus valores sobre o restante do planeta.

‘Kipling reflete em sua obra a visão preconceituosa com que os europeus colonialistas olhavam para os orientais colonizados’

Kipling, bom inglês nascido em Mumbai, na Índia, em 1865, conhecido em todo o planeta pelas histórias que contou nos vários livros – The Jungle Book e Kim, por exemplo – que se transformaram em filmes inesquecíveis como The Man Who Would be King, do igualmente inesquecível John Huston, e que o levaram a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1907, reflete em sua obra a visão preconceituosa com que os europeus colonialistas olhavam para os orientais colonizados.

Na África do Sul, onde passou muito tempo como jornalista, ele tornou-se amigo de Cecil Rhodes, o magnata dos diamantes sul-africano responsável pelo, talvez, maior genocídio da população negra africana (estima-se algo em torno de 60 milhões de mortos). 

‘Muitos homens de seu tempo eram defensores da superioridade da raça branca, o que fomentou convicções imperialistas’

Rhodes, assim como muitos homens de seu tempo, era um profundo defensor da superioridade da raça branca. Esta associação fomentou as convicções imperialistas de Kipling, que se fortaleceram com o passar dos anos. 

Elas não devem ser descartadas sem reflexão, por estarem ligadas à convicção da missão civilizadora que se exigia de todo inglês, ou, mais amplamente, “de que todo homem branco, levasse a cultura europeia aos nativos pagãos do mundo incivilizado”. 

Entretanto, suas ideias já não representavam mais o que era o pensamento liberal da época e, à medida que envelhecia, Kipling tornou-se uma figura cada vez mais isolada.

‘Acontecimentos que sacodem o planeta envolvem visões antagônicas e preconceituosas sobre o que é o nosso mundo em 2025’

Levantei este tema por estar muito preocupado com os últimos acontecimentos que sacodem o planeta envolvendo visões antagônicas e preconceituosas sobre o que é o nosso mundo em 2025. 

Tomemos dois deles, mais pungentes: a Guerra da Ucrânia e o conflito Israel-Palestina. 

‘Se esmiuçarmos as raízes do que está acontecendo nas zonas de guerra, verificaremos que elas envolvem, no seu âmago, uma noção preconceituosa de superioridade de raça, religião, ou de uma causa’

Se esmiuçarmos as raízes do que está acontecendo nas zonas de guerra, verificaremos que elas envolvem, no seu âmago, uma noção preconceituosa de superioridade de raça, religião, ou de uma causa. Aliás, assim como a “xenofobia trumpista” com relação aos “imigrantes ilegais” do “Terceiro Mundo”.

Imbricadas – e transmutadas – numa briga westfaliana por território, na verdade o que Rússia e Ucrânia estão disputando é o que é ser parte da “Mãe Rússia”: em última instância, o que é ser “civilizacionalmente” russo, frente à ameaça da Otan, entre outras razões de “deturpação” dos valores que Vladimir Putin crê que a organização ocidental representa para a civilização eslavo-ortodoxa. 

A propósito, não nos esqueçamos de que o berço do Império russo foi o Principado de Kiev, no século XII; a se levar este raciocínio às últimas consequências, chegaríamos à conclusão de que está na Ucrânia – e não na Rússia – a semente civilizatória que Putin avoca para Moscou e reclama para toda a região. Só que a história andou e, na divisão em Estados nacionais que o Tratado de Westfália definiu em 1648, e a queda da União Soviética concretizou em 1991, as atuais fronteiras – “à tort ou à raison” – delimitam as soberanias.

‘O conflito entre Israel e o Hamas tem sua origem na disputa por territórios que já foram ocupados por diversos povos’

O mesmo acontece na região da Palestina. O conflito entre Israel e o Hamas tem sua origem na disputa por territórios que já foram ocupados por diversos povos, como os hebreus e os filisteus, berço comum dos descendentes israelenses e palestinos. 

A região foi primeiramente conquistada pelos hebreus, por volta de 1.200 AEC, guiados por Moisés. Entretanto, dominações estrangeiras sucessivas, iniciadas com a tomada de Jerusalém pelos babilônios, em 587 AEC, deram início ao processo de diáspora da população. Em 638 EC a região foi então conquistada pelos árabes no contexto da expansão do islamismo e passou a fazer parte do mundo muçulmano.

Entretanto, no início do século XX já existiam na região pequenas comunidades israelitas vivendo em meio à população predominantemente árabe. A partir de então, novos núcleos começaram a se instalar ali, geralmente mediante a compra de terras aos árabes palestinos. 

‘Após a Primeira Guerra Mundial, se intensificou a imigração de judeus para a região, gerando inquietação no seio da população majoritariamente muçulmana’

Após a Primeira Guerra Mundial, a Palestina, que estivera até então sob o domínio dos turcos otomanos, passou a ser administrada pela Grã-Bretanha mediante mandato outorgado pela Liga das Nações. Foi quando se intensificou a imigração de judeus para a região, gerando inquietação no seio da população majoritariamente muçulmana. 

Diante do acirramento dos conflitos entre ambas, em novembro de 1917 o governo britânico emitiu a declaração registrada pela História como “Declaração Balfour” anunciando seu apoio ao estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina, então região otomana com uma população judaica bastante reduzida.

Após a Segunda Guerra Mundial, o fluxo de imigrantes judeus tornou-se irresistível. Finalmente, em 1947, a Assembleia-Geral da ONU decidiu dividir a Palestina em dois Estados independentes: um judeu e outro palestino, ainda que em meio à recusa dos árabes à partilha. Em 14 de maio de 1948, foi proclamado o Estado de Israel, que se viu imediatamente atacado.

‘Fruto dos confrontos entre árabes e judeus, Israel passou a controlar 75% do território palestino que havia sido delineado pela ONU’

A história, turbulenta, andou. E, fruto dos confrontos entre árabes e judeus, Israel passou a controlar 75% do território palestino que havia sido delineado pela ONU. Os 25% restantes, correspondentes à Faixa de Gaza e à Cisjordânia, ficaram sob a ocupação, respectivamente, do Egito e da Jordânia. 

A partir daí iniciou-se o êxodo dos palestinos para os países vizinhos. Atualmente, esses refugiados somam cerca de 3 milhões. Para arregimentar a população palestina na defesa dos seus territórios ancestrais, em 1964 foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Diante do percebido fracasso da OLP em defender a população, foi criado em 1982 o grupo Hezbollah – “Partido de Deus” -, organização xiita libanesa apoiada pelo governo islâmico fundamentalista do Irã.

‘As sucessivas iniciativas na busca de uma convivência entre árabes e judeus foram crescentemente dilapidadas’

Entretanto, as sucessivas iniciativas na busca de uma convivência entre árabes e judeus foram crescentemente dilapidadas quando, em 1996 foi eleito Primeiro-Ministro de Israel Binyamin Netanyahu, do Partido Likud, que paralisou a retirada das tropas israelenses que até então ocupavam territórios palestinos, e intensificou os assentamentos de colonos judeus em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, em meio à população predominantemente árabe. 

O processo de pacificação da região entrou, então, em compasso de espera, ao tempo em que recrudesceram os atentados terroristas do Hezbolah para reclamar o seu território, e dos confrontos com as tropas israelenses. 

As controvertidas políticas que Israel vem promovendo com o grupo de extrema-direita de Netanyahu e a ala radical de seu partido causaram profundo revés aos acordos previamente firmados e à convivência da população. A situação é ainda pior na Faixa de Gaza, como, horrorizados, estamos acompanhando.

Teria Israel passado de vítima a vitimário na história? Horror!

‘O que está em questionamento são valores que a globalização, em todo o seu espectro, está reformulando’

Voltamos ao início deste texto: o que está em questionamento são valores que a globalização, em todo o seu espectro, está reformulando: come-se “sushi” (com “hashi”) nas churrascarias brasileiras e compram-se (e se copiam) artigos de marca do Ocidente por toda a Ásia. E com isto, absorvem-se os valores e mitos que eles representam. 

No mundo de 2025 não cabem, a meu ver, temas como a visão “binária” da(s) realidade(s) que Rudyard Kipling sufragava. Uma percebida confrontação civilizacional Leste/Oeste não resiste à “globalização econômica” que amalgama a emergência de uma “globalização civilizacional”, contrariamente aos valores e preconceitos que alguns líderes mundiais anacronicamente perseveram em insistir.

A Pangeia se recompõe num ritmo acelerado, até pelas ameaças – climáticas, entre tantas outras – que enfrenta. Diante destes desafios essenciais fica, então, a pergunta: até quando dogmas e conceitos obsoletos subverterão a(s) realidade(s)?. Poderão eles, por exemplo, sobrepujar – ou substituír – a dor de uma mãe ou de um pai ao receber o cadáver de um filho morto na guerra? Ou a de um refugiado que perdeu tudo e toda a sua família e busca um espaço para a sua sobrevivência?

Mitos X realidades. Tautológico? Sobra para cada um – e todos nós – o desafio desta indagação.

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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