26 agosto 2024

Eleição nos EUA: uma disputa entre o futuro e o passado

O que está em jogo, como é notório, na próxima eleição da presidência dos EUA, não é apenas o seu destino, mas a influência e o papel decisivo do país no mundo

Kamala Harris discursa durante a convenção do Partido Democrata (Foto: Democratic National Convention/Instagram)

Por Luiz Roberto Serrano*

Prometendo “governar acima do partido e de si mesma”, Kamala Harris, atual vice-presidente da República dos EUA, foi homologada pela convenção do Partido Democrata como candidata ao próximo período presidencial no país. Na convenção, realizada de 19 a 22 de agosto, Kamala Harris já abria ligeira vantagem nas pesquisas eleitorais sobre seu adversário, o republicano Donald Trump, na caminhada para as eleições. Conseguirá vencer a disputa, vitória que teria a simpatia dos democratas de todo o mundo, afastando o retrocesso representado pelo seu adversário?

As perspectivas atualmente são mais animadoras, ressalvadas as eventuais armadilhas do tradicional Colégio Eleitoral, criado na longínqua época em que os EUA se tornaram independentes da Inglaterra, que na prática define o resultado do pleito. O Colégio Eleitoral considera apenas a vitória do candidato ganhador do pleito em cada um dos Estados; consequentemente, se um dos partidos concorrentes vence em um Estado, carrega para o Colégio Eleitoral todos os delegados daquela unidade da federação. E há Estados que tem mais votos, outros menos, no Colégio Eleitoral. O que dá aos pleitos presidenciais norte-americanos uma certa aparência de eleições indiretas. Há algumas eleições, o sistema escanteou a vitória da também democrata Hillary Clinton, que venceu no sufrágio popular, mas foi derrotada no Colégio Eleitoral por esse mesmo Trump.

A difícil passagem do bastão democrata

A passagem do bastão da candidatura democrata para Kamala Harris foi antecedida pelos momentos dramáticos que resultaram na desistência do atual presidente Joe Biden, 81 anos, de concorrer à reeleição. Apesar da má performance em sua participação no primeiro debate contra Trump, que alarmou seus companheiros do partido, Biden resistiu às enormes pressões da legenda para que desistisse da candidatura — até que finalmente cedeu. A peculiaridade da situação, que fragilizava a posição do partido na corrida eleitoral, dispensou os ritos de escolha para a substituição de Biden, que tradicionalmente só seria sacramentada na convenção do partido, e apressou o coroamento de Kamala Harris como a candidata — que, pelo que se vê, está reenergizando a força dos democratas na disputa.

O que está em jogo, como é notório, na próxima eleição da presidência dos EUA, não é apenas o seu destino, mas a influência e o papel decisivo do país no mundo. Por isso, o resultado do pleito interessa a todo o mundo, especialmente num momento em que questões econômicas e sociais se tornam mais intrincadas e desafiadoras pelo planeta afora e em que a ocorrência de duas guerras — Ucrânia x Rússia e Israel x Hamas e aliados — em que os EUA são participantes indiretos e fornecedores de armas para um dos lados (Ucrânia e Israel), projeta dúvidas sobre o futuro.

Caminhos diferentes

Conforme o resultado do pleito, os EUA se comportarão de modo diverso, principalmente em suas disputas ideológicas e econômicas com o polo atualmente liderado pela China, que abarca a Rússia e seus poucos satélites fronteiriços, exerce alguma influência na Hungria e, por que não lembrar, alcança os países do BRICS, bloco que reúne até o Brasil deste presidente Lula e assim por diante.

Qual o efeito de uma vitória de Trump para a política internacional dos EUA? Tudo indica que Trump continuará fiel à sua política de “America First”, que tem potencial de criar preocupantes fissuras com a aliança histórica dos EUA com a Europa Ocidental e até mesmo com a Inglaterra do atual governo trabalhista, vigente e reforçada desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Repetirá Trump lances inesperados como sua visita à Coreia do Norte, arqui-inimiga do Ocidente, em seu primeiro mandato? Continuará vendo com estranha simpatia seu homólogo Wladimir Putin, como no mandato anterior? Qual sua política vis-a-vis a China, atual segunda potência mundial?

A continuidade da política de Biden

Uma vitória de Kamala Harris indicaria a continuidade da política externa do democrata Joe Biden, sempre próximo da Europa e da Inglaterra e estimuladora da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que se amplia e já arranha as fronteiras da Rússia. Indicaria também a continuidade de ações da Marinha dos EUA no Mar da China, onde o país norte-americano tenta aumentar sua presença num esforço de combater a China, que considera o oceano uma área de influência natural. Como ficarão as recentemente aumentadas barreiras às exportações da China para os EUA de baterias, chips de computador, veículos elétricos e outros bens, em nome da defesa da indústria norte-americana? Aparentemente, deverão continuar. Sobre o delicado confronto no Oriente Médio prometeu trabalhar para terminar a guerra, com o objetivo de garantir um Israel seguro e a liberdade para os palestinos.

Na política interna dos EUA, Trump nega, no momento, sua simpatia com o Projeto 2025, da conservadora Heritage Foundation, que recomenda a abolição de políticas progressistas atualmente em vigor nos EUA. Não esconde sua preferência por cortar impostos que taxam as camadas mais ricas da população norte-americana, que seriam favorecidas pelo conjunto de políticas econômicas que pretende implementar.

Classes médias e populares

Já Kamala Harris desenvolve um discurso voltado para o fortalecimento econômico das classes médias norte-americanas e das camadas menos favorecidas da população do país, bem de acordo com a tradicional e distributiva política econômica e social do Partido Democrata. “Vamos trabalhar pela liberdade, dignidade, justiça”, prometeu Kamala em seu discurso na convenção.

Em termos de EUA, as propostas dos candidatos são distintas, contrárias em sua essência, com efeitos conflitantes sobre a distribuição da renda e da riqueza no país. Em suas relações internacionais, os EUA, considerados imperialistas, poderão ter políticas mais negociadas com Kamala Harris, ou mais impositivas ou mesmo arrogantes com Donald Trump.

É importante notar que, na Convenção Democrata, Kamala Harris contou com a presença e o apoio entusiasmado dos ex-presidentes Bill Clinton e Barack Obama, além de Hillary Clinton e Michelle Obama, todos fortemente aplaudidos em seus discursos, além do endosso, claro, de Joe Biden. Sem esquecer da presença da midiática Oprah Winfrey. Em contraste, nenhum ex-presidente republicano apareceu na convenção que escolheu Donald Trump, que goza de fama de ter tomado conta absoluta da atual estrutura da agremiação.

Como sempre, o resultado da eleição norte-americana influenciará muito além de suas fronteiras, terá repercussão em todo o mundo. Como será com o Brasil?


*Luiz Roberto Serrano é jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

Este texto é uma reprodução autorizada de conteúdo do Jornal da USP - https://jornal.usp.br/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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