Em nome de Deus e do Estado brasileiro – Missionários evangélicos e política externa
Com grande poder econômico dentro e fora do país, Igreja Universal do Reino de Deus exerce influência no cenário político. Transformações no âmbito dos valores estimularam a busca por incidir na construção de uma identidade religiosa-conservadora da política externa brasileira
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é uma das mais poderosas instituições religiosas do Brasil. A denominação cristã de caráter evangélico neopentecostal foi fundada em 1977 por Edir Macedo no Rio de Janeiro. Já a partir dos anos 1980, a IURD iniciou um profundo processo de internacionalização, em princípio ao redor de comunidades de migrantes brasileiros em países como Estados Unidos, Portugal e Argentina. No final dos anos 1990 já estava em mais de 50 países. Atualmente já são mais de cem países de acordo com o site da instituição.
Em termos religiosos, a IURD é uma instituição poderosa. Contando com milhões de fiéis no Brasil, ela é uma das mais importantes denominações evangélicas neopentecostais do mundo e tem sua imagem fortemente relacionada à promoção da teologia da prosperidade.
Seu poder entretanto não se restringe ao âmbito religioso. Internacionalmente, mobiliza volume estrondoso de recursos financeiros. Sua nova sede mundial em São Paulo, inaugurada em 2014 e construída como uma réplica do antigo Templo de Salomão, teve custo estimado em R$ 685 milhões em valores da época, se tornando um dos maiores espaços religiosos do Brasil e um símbolo da sua riqueza.
Tanto poder religioso e financeiro também incide no cenário político. No Brasil, a instituição apoia candidaturas e mandatos políticos, e seus líderes são recebidos com honra pelas mais altas autoridades. A IURD conta inclusive com fortes vínculos com um dos mais importantes partidos políticos, o Republicanos. Sua influência política também é exercida internacionalmente, em especial em contextos em que uma boa relação com os governos locais viabiliza sua presença junto à população e permite sua atuação em diferentes setores econômicos (como cadeias de rádio e TV, editoras de livros e revistas etc.).
Uma referência no processo de internacionalização da IURD é Angola, um dos mais importantes países na estrutura internacional da instituição, onde possui forte influência religiosa, política e econômica, e está presente desde 1991. Em 2017, havia mais de 200 templos da IURD em Angola, além de uma versão local do canal de TV Record, ligada à igreja.
Sua presença em Angola esteve associada a uma história de boa relação com o governo local em um contexto em que era necessário amparo legal para operar no país. Esse cenário mudou em 2019, quando um movimento interno liderado por angolanos se rebelou contra a cúpula brasileira, invadindo templos e alegadamente agredindo brasileiros. O grupo “nacionalizou” a operação da igreja acusando práticas de racismo, xenofobia e pressão para que os pastores locais não tivessem filhos e fizessem vasectomia ou retirada do útero. O sinal da TV Record de Angola saiu do ar em abril de 2021. Documentos internos foram compartilhados com o governo, alimentando investigações de evasão de divisas e lavagem de dinheiro. O governo angolano investigava denúncias de que o dinheiro dos dízimos era levado escondido ao Brasil ou à África do Sul com a ajuda de líderes brasileiros.
O movimento foi localmente chamado de Reforma, em referência ao movimento liderado por Martinho Lutero de crítica à Igreja Católica no século XVI. E significou um baque para a IURD, que havia feito de Angola uma base para suas atividades no continente africano.
Vendo o risco de perder definitivamente seu poder no país e de que isso estimulasse dissidências em outros lugares, a cúpula da IURD mobilizou um grande aparato para pressionar o governo brasileiro a atuar junto ao governo angolano.
A Universal fazia parte da base de sustentação do governo Jair Bolsonaro (2019-2022) e todo seu poder político foi mobilizado para reverter a crise em Angola. De início, o governo federal decidiu não agir no caso, o que causou reação agressiva pela instituição, inclusive com reportagens críticas ao governo na TV Record. Depois, a postura do governo passou a ser de apoio à causa.
Em 2021, membros da Frente Parlamentar Evangélica encontraram o ministro das Relações Exteriores Carlos França para pedir ajuda. O presidente Bolsonaro enviou uma carta à sua contraparte em Angola, que também ouviu um pedido de reconsideração por parte do vice-presidente Hamilton Mourão. Se não fosse a forte reação do governo de Pretória, o embaixador brasileiro junto à África do Sul seria trocado pelo ex-bispo e ex-senador Marcelo Crivella, ligado à IURD, numa tática pensada para acalmar os ânimos por toda a região da África Austral. Todas as iniciativas se mostraram infrutíferas e ainda hoje a IURD não restabeleceu seu poder em Angola.
O contexto da crise da IURD no país africano reflete não somente o grande poder internacional da instituição brasileira, mas também sua relação com a agenda da política externa, em um fenômeno ainda bem pouco estudado.
Desde o início dos anos 2000, começando durante o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), lideranças evangélicas gozam do privilégio de passaporte diplomático brasileiro. Porém, a sinergia com o ideário ultraconservador do governo Bolsonaro trouxe um aprofundamento da atuação da diplomacia brasileira em prol da agenda missionária dos grupos evangélicos de maneira ainda pouco compreendida por parte dos analistas.
Se grupos conservadores evangélicos são visivelmente parte do cenário político doméstico brasileiro, pouco se entende sobre o que querem e como operam junto ao governo brasileiro em sua agenda internacional. Pesquisas iniciais têm mostrado que durante o governo Bolsonaro essa aliança incluiu a promoção de valores conservadores em organismos multilaterais (em prol do ideário da família tradicional, restrição ao aborto etc.), a defesa de uma noção difusa de meritocracia, assim como apoio político para a atuação missionária no exterior. Para agradar grupos evangélicos, Bolsonaro também havia prometido transferir a sede da embaixada em Israel para Jerusalém, causando conflito com os grupos ruralistas da base do governo preocupados em não melindrar governos árabes compradores de proteína animal, e que no final conseguiram barrar a iniciativa.
Essa agenda de pesquisa reforça o entendimento de que a política externa brasileira tem sido cada vez mais pressionada por diferentes atores políticos, se comportando mais e mais como as demais políticas públicas, sujeitas às pressões políticas e ao governo de turno. Se nas últimas décadas aumentou a atuação diplomática em agendas pouco visíveis, como saúde e educação, as transformações no âmbito dos valores estimularam a busca por incidir na construção de uma identidade religiosa-conservadora da política externa brasileira, em um contexto em que a diplomacia foi marcada por um viés messiânico no último governo.
Magno Klein é professor do curso de Relações Internacionais da UNILAB/BA
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