25 novembro 2024

Entre princípios e alianças – O dilema da política externa de Lula 3

Governo vive dilema ético que precisa resolver caso deseje atuar como um mediador legítimo no cenário global. A pretensão de apoiar um mundo multipolar parece seletiva: é tolerante com as potências orientais, mas crítica em relação às potências ocidentais, sem que isso se justifique pela aplicação imparcial dos princípios de direitos humanos, paz e autodeterminação

Foto oficial dos líderes do G20 no Rio de Janeiro (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

A política externa de Luiz Inácio Lula da Silva em seu terceiro mandato busca um equilíbrio entre a defesa de valores universais – como os direitos humanos, a paz e o direito internacional – e a preservação de alianças estratégicas com nações que, muitas vezes, infringem esses mesmos valores. 

Desde seu retorno ao poder, Lula tem reafirmado seu compromisso com uma ordem internacional mais justa e multipolar, e sua participação no Brics é uma peça-chave dessa estratégia. Esse bloco, que surgiu em resposta ao domínio das potências ocidentais nas instituições globais, buscava ser uma alternativa ao “Norte Global”, criticando a prevalência dos Estados Unidos e da Europa na configuração da governança internacional.

‘O Brasil, ao lado de outras nações do Brics, adota uma postura ambígua quando se trata de aplicar consistentemente os valores que declara defender’

Contudo, uma análise mais aprofundada do atual contexto revela que o Brasil, ao lado de outras nações do Brics, adota uma postura ambígua quando se trata de aplicar consistentemente os valores que declara defender. Essa ambiguidade ficou evidente na resposta brasileira à invasão da Ucrânia pela Rússia e ao tratamento de minorias por parte da China, questões que colocam em xeque a coerência da política externa brasileira. 

A postura moderada e diplomática do governo Lula em relação a esses aliados muitas vezes contrasta com o rigor com que critica as intervenções dos Estados Unidos e da União Europeia, sugerindo que o Brasil prioriza alianças estratégicas sobre os princípios que diz apoiar.

A postura do Brasil dentro do Brics ilustra essa complexidade. Inicialmente, o bloco parecia um espaço para que países emergentes como o Brasil, a Índia e a África do Sul tivessem maior voz nas questões globais, desafiando a hegemonia ocidental e promovendo uma ordem multipolar. No entanto, esse ideal multipolar não significa, necessariamente, uma ordem mais democrática ou justa. 

‘Ao abrigar nações como a China e a Rússia, potências que não compartilham as mesmas preocupações com democracia e direitos humanos, o bloco parece priorizar uma agenda que valoriza o poder e a autonomia nacional em detrimento da proteção de valores universais’

Ao abrigar nações como a China e a Rússia, potências que não compartilham as mesmas preocupações com democracia e direitos humanos, o bloco parece priorizar uma agenda que valoriza o poder e a autonomia nacional em detrimento da proteção de valores universais.

A situação se torna ainda mais complicada quando analisamos a retórica do governo brasileiro em fóruns internacionais. Enquanto Lula condena as intervenções militares dos EUA e de aliados ocidentais, como a invasão do Iraque em 2003 ou as operações na Síria e na Líbia, sua posição em relação à Rússia e à China é notavelmente mais branda. 

A guerra na Ucrânia, por exemplo, que representa uma violação direta à soberania de um país, recebeu uma abordagem cautelosa e diplomática do Brasil, que optou por não condenar explicitamente a agressão russa. Essa abordagem pode ser vista como uma tentativa de equilibrar os interesses brasileiros no cenário internacional, mas também sugere que a defesa de uma ordem multipolar – entendida como um contraponto ao domínio ocidental – é mais importante para o Brasil do que a defesa intransigente dos direitos humanos e da paz.

O governo brasileiro posiciona-se como um crítico feroz da ocupação e das operações militares de Israel, uma abordagem que reforça sua oposição ao que considera práticas injustas e desproporcionais’

Ainda, no caso de Israel, a postura de Lula é direta e contundente. O presidente brasileiro criticou publicamente as operações israelenses em Gaza, condenando o impacto devastador sobre civis e chamando atenção para as violações de direitos humanos em uma região marcada por décadas de conflito e disputas territoriais. Essa posição é consistente com o discurso de defesa dos direitos humanos e do direito internacional. O governo brasileiro posiciona-se como um crítico feroz da ocupação e das operações militares de Israel, uma abordagem que reforça sua oposição ao que considera práticas injustas e desproporcionais.

Contudo, quando se volta o olhar para a Turquia, vemos uma resposta bem diferente. Apesar das repetidas operações turcas contra comunidades curdas, inclusive com acusações de violações graves de direitos humanos, Lula mantém uma postura de cooperação e diplomacia, saudando a liderança turca e estabelecendo laços mais estreitos com o presidente Recep Tayyip Erdogan. 

As ações turcas contra os curdos – que incluem ataques aéreos, ofensivas militares em território estrangeiro e repressão interna – são amplamente criticadas por organizações de direitos humanos. Entretanto, o governo brasileiro adota uma abordagem de tolerância e não tece críticas públicas a essas ações, revelando uma seletividade que parece indicar um pragmatismo geopolítico em detrimento de uma aplicação universal dos princípios de direitos humanos.

‘O governo brasileiro corre o risco de transmitir a imagem de que seu compromisso com os direitos humanos e a paz é flexível e sujeito a considerações estratégicas. Essa percepção enfraquece a legitimidade do Brasil como defensor desses valores e compromete seu papel como uma potência regional que busca promover uma ordem internacional mais justa’

Ao agir dessa forma, o governo brasileiro corre o risco de transmitir a imagem de que seu compromisso com os direitos humanos e a paz é flexível e sujeito a considerações estratégicas. Essa percepção enfraquece a legitimidade do Brasil como defensor desses valores e compromete seu papel como uma potência regional que busca promover uma ordem internacional mais justa. Além disso, ao abster-se de críticas contundentes aos seus parceiros, o Brasil não apenas relativiza os valores que proclama, mas também se alinha, ainda que indiretamente, a uma visão de mundo em que a força e a influência regional se sobrepõem à defesa dos direitos universais.

O cenário torna-se ainda mais paradoxal quando consideramos que essa flexibilidade parece guiada mais por uma oposição ao modelo hegemônico ocidental do que por uma adesão genuína aos valores que o Brasil declara defender. 

O discurso de Lula, ao confrontar a liderança dos Estados Unidos e das antigas potências coloniais, resgata uma narrativa de “Sul Global” que se opõe ao imperialismo e à desigualdade estrutural da ordem mundial. Mas essa narrativa falha ao não reconhecer as práticas imperialistas e autoritárias que alguns de seus próprios aliados promovem em seus contextos regionais. A pretensão de apoiar um mundo multipolar, assim, parece seletiva: é tolerante com as potências orientais, mas crítica em relação às potências ocidentais, sem que isso se justifique pela aplicação imparcial dos princípios de direitos humanos, paz e autodeterminação.

Portanto, a política externa de Lula apresenta um dilema ético que o governo brasileiro precisa resolver caso deseje atuar como um mediador legítimo no cenário global. 

A construção de uma ordem internacional mais justa exige uma defesa imparcial dos valores universais, que vá além das preferências geopolíticas e reconheça que a violação desses valores é igualmente condenável, independentemente do país ou bloco envolvido. Se o Brasil deseja ser uma voz moral no mundo, precisa demonstrar uma coerência que se traduza em ações concretas, aplicando o mesmo padrão ético a todos os atores internacionais, inclusive aos seus aliados.

Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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