Entre princípios e alianças – O dilema da política externa de Lula 3
Governo vive dilema ético que precisa resolver caso deseje atuar como um mediador legítimo no cenário global. A pretensão de apoiar um mundo multipolar parece seletiva: é tolerante com as potências orientais, mas crítica em relação às potências ocidentais, sem que isso se justifique pela aplicação imparcial dos princípios de direitos humanos, paz e autodeterminação
A política externa de Luiz Inácio Lula da Silva em seu terceiro mandato busca um equilíbrio entre a defesa de valores universais – como os direitos humanos, a paz e o direito internacional – e a preservação de alianças estratégicas com nações que, muitas vezes, infringem esses mesmos valores.
Desde seu retorno ao poder, Lula tem reafirmado seu compromisso com uma ordem internacional mais justa e multipolar, e sua participação no Brics é uma peça-chave dessa estratégia. Esse bloco, que surgiu em resposta ao domínio das potências ocidentais nas instituições globais, buscava ser uma alternativa ao “Norte Global”, criticando a prevalência dos Estados Unidos e da Europa na configuração da governança internacional.
Contudo, uma análise mais aprofundada do atual contexto revela que o Brasil, ao lado de outras nações do Brics, adota uma postura ambígua quando se trata de aplicar consistentemente os valores que declara defender. Essa ambiguidade ficou evidente na resposta brasileira à invasão da Ucrânia pela Rússia e ao tratamento de minorias por parte da China, questões que colocam em xeque a coerência da política externa brasileira.
A postura moderada e diplomática do governo Lula em relação a esses aliados muitas vezes contrasta com o rigor com que critica as intervenções dos Estados Unidos e da União Europeia, sugerindo que o Brasil prioriza alianças estratégicas sobre os princípios que diz apoiar.
A postura do Brasil dentro do Brics ilustra essa complexidade. Inicialmente, o bloco parecia um espaço para que países emergentes como o Brasil, a Índia e a África do Sul tivessem maior voz nas questões globais, desafiando a hegemonia ocidental e promovendo uma ordem multipolar. No entanto, esse ideal multipolar não significa, necessariamente, uma ordem mais democrática ou justa.
Ao abrigar nações como a China e a Rússia, potências que não compartilham as mesmas preocupações com democracia e direitos humanos, o bloco parece priorizar uma agenda que valoriza o poder e a autonomia nacional em detrimento da proteção de valores universais.
A situação se torna ainda mais complicada quando analisamos a retórica do governo brasileiro em fóruns internacionais. Enquanto Lula condena as intervenções militares dos EUA e de aliados ocidentais, como a invasão do Iraque em 2003 ou as operações na Síria e na Líbia, sua posição em relação à Rússia e à China é notavelmente mais branda.
A guerra na Ucrânia, por exemplo, que representa uma violação direta à soberania de um país, recebeu uma abordagem cautelosa e diplomática do Brasil, que optou por não condenar explicitamente a agressão russa. Essa abordagem pode ser vista como uma tentativa de equilibrar os interesses brasileiros no cenário internacional, mas também sugere que a defesa de uma ordem multipolar – entendida como um contraponto ao domínio ocidental – é mais importante para o Brasil do que a defesa intransigente dos direitos humanos e da paz.
Ainda, no caso de Israel, a postura de Lula é direta e contundente. O presidente brasileiro criticou publicamente as operações israelenses em Gaza, condenando o impacto devastador sobre civis e chamando atenção para as violações de direitos humanos em uma região marcada por décadas de conflito e disputas territoriais. Essa posição é consistente com o discurso de defesa dos direitos humanos e do direito internacional. O governo brasileiro posiciona-se como um crítico feroz da ocupação e das operações militares de Israel, uma abordagem que reforça sua oposição ao que considera práticas injustas e desproporcionais.
Contudo, quando se volta o olhar para a Turquia, vemos uma resposta bem diferente. Apesar das repetidas operações turcas contra comunidades curdas, inclusive com acusações de violações graves de direitos humanos, Lula mantém uma postura de cooperação e diplomacia, saudando a liderança turca e estabelecendo laços mais estreitos com o presidente Recep Tayyip Erdogan.
As ações turcas contra os curdos – que incluem ataques aéreos, ofensivas militares em território estrangeiro e repressão interna – são amplamente criticadas por organizações de direitos humanos. Entretanto, o governo brasileiro adota uma abordagem de tolerância e não tece críticas públicas a essas ações, revelando uma seletividade que parece indicar um pragmatismo geopolítico em detrimento de uma aplicação universal dos princípios de direitos humanos.
Ao agir dessa forma, o governo brasileiro corre o risco de transmitir a imagem de que seu compromisso com os direitos humanos e a paz é flexível e sujeito a considerações estratégicas. Essa percepção enfraquece a legitimidade do Brasil como defensor desses valores e compromete seu papel como uma potência regional que busca promover uma ordem internacional mais justa. Além disso, ao abster-se de críticas contundentes aos seus parceiros, o Brasil não apenas relativiza os valores que proclama, mas também se alinha, ainda que indiretamente, a uma visão de mundo em que a força e a influência regional se sobrepõem à defesa dos direitos universais.
O cenário torna-se ainda mais paradoxal quando consideramos que essa flexibilidade parece guiada mais por uma oposição ao modelo hegemônico ocidental do que por uma adesão genuína aos valores que o Brasil declara defender.
O discurso de Lula, ao confrontar a liderança dos Estados Unidos e das antigas potências coloniais, resgata uma narrativa de “Sul Global” que se opõe ao imperialismo e à desigualdade estrutural da ordem mundial. Mas essa narrativa falha ao não reconhecer as práticas imperialistas e autoritárias que alguns de seus próprios aliados promovem em seus contextos regionais. A pretensão de apoiar um mundo multipolar, assim, parece seletiva: é tolerante com as potências orientais, mas crítica em relação às potências ocidentais, sem que isso se justifique pela aplicação imparcial dos princípios de direitos humanos, paz e autodeterminação.
Portanto, a política externa de Lula apresenta um dilema ético que o governo brasileiro precisa resolver caso deseje atuar como um mediador legítimo no cenário global.
A construção de uma ordem internacional mais justa exige uma defesa imparcial dos valores universais, que vá além das preferências geopolíticas e reconheça que a violação desses valores é igualmente condenável, independentemente do país ou bloco envolvido. Se o Brasil deseja ser uma voz moral no mundo, precisa demonstrar uma coerência que se traduza em ações concretas, aplicando o mesmo padrão ético a todos os atores internacionais, inclusive aos seus aliados.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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