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Interesse Nacional
06 setembro 2024

Esquizofrenia política

Candidatura de Pablo Marçal em São Paulo surfa na insatisfação com a política e no movimento contra o sistema, mas pode colocar em risco a estabilidade econômica e política do país. As instituições e a democracia certamente sofreriam com alguém que se apresenta como um não político

Pablo Marçal, à direita, durante debate entre candidatos à prefeitura de São Paulo organizado pela TV Gazeta e pelo portal MyNews (Foto: Reprodução/Yourube)

As eleições municipais em São Paulo ganharam uma repercussão nacional maior do que normalmente poderia ter pelo aparecimento de candidato até pouco tempo totalmente desconhecido pela grande maioria da população paulistana.

Pablo Marçal nunca teve militância partidária regular, nem ocupou cargo público, não conta com nenhum apoio de máquina partidária ou governamental, nem tem tempo na televisão, nem presença na mídia. Sua militância é na rede social, no meio evangélico e em outras áreas mais controvertidas. 

Os ataques pessoais que vem sofrendo dos demais candidatos, até aqui, reforçam sua candidatura, uma das três de maior apoio nas pesquisas de opinião pública, apesar de não ter nenhum programa de governo, apresente ideias mirabolantes para resolver alguns problemas da capital e exiba uma atitude agressiva contra os outros candidatos e com entrevistadores, sobretudo na TV.

‘É importante discutir as razões por trás do surgimento desse fenômeno político que de tempos em tempos emergem no cenário nacional’

É importante discutir as razões por trás do surgimento desse fenômeno político que de tempos em tempos emergem no cenário nacional. Jânio Quadros, Fernando Collor e Jair Bolsonaro em nível federal, Wilson Witzel, em nível estadual, cada um com as peculiaridades de seu tempo. Podem ainda ser lembrados, Cacareco, Macaco Simão e muitos outros.

No caso de Marçal, o conhecimento dele por parte de um segmento da sociedade, jovens, homens, deriva de sua militância na mídia social e na igreja evangélica, e em comunidades na periferia. Mas isso não seria suficiente para explicar a explosão de sua participação, reforçada pela facilidade de expressão, boa presença, desabrido vocabulário contra os políticos tradicionais e promessa de rápido dinheiro no bolso para os menos favorecidos, habitantes da periferia da capital. 

‘O principal motivo que justifica o fulminante aparecimento de Marçal é a insatisfação e a contrariedade da sociedade nacional com a situação atual’

O principal motivo que justifica seu fulminante aparecimento é a insatisfação e a contrariedade da sociedade nacional com a situação atual de fragilidade dos valores, princípios e ações na política, da corrupção, da violência, da cracolândia sem solução, símbolo do abandono da cidade. 

Desilusão e decepção do cidadão comum com o aparente desgoverno na cidade e, em nível nacional, com o que se ouve e se vê diariamente na TV em termos de disfuncionalidade do governo, incapacidade de enfrentar os novos desafios e a aparente indiferença com o uso do dinheiro público, com os crescentes privilégios nas funções públicas e combate a violência. A falta de confiança no governo alimenta o populismo do candidato. Tudo isso gera um forte sentimento de revolta antissistema, capturado pelo candidato Marçal.

‘Um segundo motivo aparente parece ser o sentimento de antipetismo, depois de um ano e meio de governo Lula’

Um segundo motivo aparente parece ser o sentimento de antipetismo, depois de um ano e meio de governo Lula. A percepção histórica de oposição ao petismo do cidadão comum, sobretudo da classe média e da classe A e B, junta-se o fato de que, ao contrário de um governo de união, com a participação de forças do centro democrático que ajudaram a eleger o presidente em 2022, o que se verifica hoje é um governo do PT, com o aparelhamento do Estado e com as mesmas políticas e práticas de 20 anos atrás.

Um terceiro motivo é o aparecimento a partir de 2018 da direita no cenário político nacional. A força do movimento de direita, até aqui identificado com o bolsonarismo, com valores de costumes conservadores e com uma visão liberal na economia, ficou evidente na radicalização da política e na crescente presença no Congresso Nacional e no debate interno. 

‘A direita radical busca ocupar a prefeitura da maior cidade do país e projetar essa vitória como o resultado de sua força política nacional’

Essa nova força política pretende manter a contestação “a tudo que aí está” e reforçar a polarização no cenário político nacional. Marçal representa a renovação e a ampliação da direita, além de Bolsonaro. Assim como o PT, a direita radical busca ocupar a prefeitura da maior cidade do país e projetar essa vitória como o resultado de sua força política nacional e capitalizá-la para a disputa presidencial em 2026.

O perigo de um resultado que possa favorecer Pablo Marçal na eleição da capital de São Paulo é a sua declarada intenção de disputar daqui a dois anos a Presidência da República. Caso consiga alcançar seu objetivo na eleição de outubro, contra a casta política, a exemplo de Javier Milei, na Argentina, a imprevisibilidade será a tônica da política brasileira, colocando em risco a estabilidade econômica e política do país. As instituições e a democracia certamente vão sofrer as consequências dessa atitude de alguém que se apresenta como um não político, um “outsider da política”.

Em nossa época, não existe isso de ficar fora da política. Tudo é político e a política é um conjunto de mentiras, evasivas, ódio e esquizofrenia. A frase, que cai como uma luva no momento político nacional, não é minha, é de George Orwell.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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