05 outubro 2023

Facções, milícias e o futuro da democracia

Pesquisador e jornalista, Bruno Paes Manso explica que foi por ironia da história, que veio do sofrimento e das mazelas acumuladas no sistema penitenciário, a chama para a criação e a promoção de uma nova governança, tocada pelos próprios presos e que transformou a cena criminal paulista em primeiro lugar, e depois a nacional. Um modelo de governança criminal mediado por facções de base prisional, profissional e articulado, que se aproveita das brechas e dos erros das políticas públicas. Há estimativas da existência de mais de 50 facções espalhadas pelas prisões e quebradas de todos os estados do Brasil

Pesquisador e jornalista, Bruno Paes Manso explica que foi por ironia da história, que veio do sofrimento e das mazelas acumuladas no sistema penitenciário, a chama para a criação e a promoção de uma nova governança, tocada pelos próprios presos e que transformou a cena criminal paulista em primeiro lugar, e depois a nacional. Um modelo de governança criminal mediado por facções de base prisional, profissional e articulado, que se aproveita das brechas e dos erros das políticas públicas. Há estimativas da existência de mais de 50 facções espalhadas pelas prisões e quebradas de todos os estados do Brasil

Por Bruno Paes Manso*

O dia 31 de agosto de 1993 é a data de referência de criação do Primeiro Comando da Capital (PCC). Conforme o relato dos seus integrantes, o evento fundador foi um jogo de futebol dentro da Casa de Custódia de Taubaté, um presídio que, na época, era informalmente considerado de segurança porque a tortura corria solta entre seus muros. Durante a partida, presos da capital se juntaram para matar os rivais que ameaçavam a vida deles e de outros detentos. O assassinato carregava uma mensagem: a covardia dos presos mais fortes contra os mais fracos devia acabar. Os presos precisavam se unir e traçar um objetivo comum para lidar com o sistema, já bastante injusto e cruel. O massacre do Carandiru, ocorrido no ano anterior, com 111 vítimas, mostrava que o risco no cárcere era real e exigia uma nova estratégia de sobrevivência entre os presos. 

Este texto foi publicado na edição 63 da revista Interesse Nacional. Clique aqui para ver a edição completa

Durante pelo menos oito anos, até fevereiro de 2001, quando houve a primeira megarrebelião liderada pelo PCC, o Estado negou a existência do grupo, alegando que a nova forma do crime se organizar não passava de sensacionalismo da imprensa. Havia motivos para o ceticismo: parecia improvável imaginar que os presos fossem capazes de se mobilizar no interior do sistema penitenciário paulista em expansão, que se modernizava com unidades menores e automatizadas. Eles eram iletrados, brutos, estavam isolados do mundo, fadados ao esquecimento, abarrotados em celas superlotadas, sem alimentação adequada, sem higiene, sem advogados para acompanharem a progressão de suas penas. Por ironia da história, veio do sofrimento e das mazelas acumuladas no sistema penitenciário a chama para a criação e a promoção de uma nova governança, que seria tocada pelos próprios presos e que transformaria a cena criminal paulista e nacional.

Trinta anos depois, o que parecia improvável cresceu e se consolidou. Primeiro, em São Paulo; depois, nos demais estados brasileiros. Um novo modelo de governança criminal, mediado por facções de base prisional, mais profissional e articulado, que se aproveita das brechas e dos erros das políticas públicas, passou a ser replicado em diversas praças para aumentar os lucros do bilionário mercado mundial de drogas. O PCC acabou encontrando um objetivo capaz de unir o submundo do crime: criar um ambiente de negócios mais previsível, para reduzir os riscos e ampliar os lucros de suas carreiras ilegais. O mundo do crime, finalmente, ganhava um governo para regulamentar o convívio e a vida de seus membros.

O PCC criou, inicialmente, um modelo de autogestão a partir do sistema penitenciário paulista, aproveitando a superlotação e a desordem dos presídios, somado ao desinteresse e à dificuldade dos governos em administrá-los diante das restrições orçamentárias. Os próprios presos definiram regras para tornar a vida atrás das grades suportável. Ficava proibida, sobretudo, a opressão do preso mais forte sobre o mais fraco porque todos sofriam as mesmas dores. Além disso, estabeleceram novas normas para os negócios. Essas regras passaram a valer também para o mundo do crime do lado de fora dos muros. Para os que ousassem desobedecê-las, haveria punição.

Com o tempo, esse mecanismo produziu obediência entre criminosos dentro e fora do cárcere, com uma eficiência surpreendente. Um dos motivos era o papel da prisão na carreira criminal. Mesmo os que estavam em liberdade precisavam contar com a possibilidade de passar uma temporada detido ao longo de sua trajetória. Caso não aceitassem a liderança do PCC, teriam que cumprir pena nas prisões neutras ou dos inimigos, carregando a pecha do criminoso que não respeita a ética da maioria. O segundo motivo é que as regras beneficiavam à coletividade, já que todos ganhavam em um ambiente mais profissional e menos sujeito à violência.

Agência reguladora do mercado criminal

Mais do que uma empresa ou um cartel, como ocorre com os grupos mexicanos e colombianos, o PCC se tornou uma agência reguladora do mercado criminal, a partir da formação de uma estrutura burocrática voltada para a preservação das regras e dos contratos no crime, com sintonias e disciplinas espalhados pelas unidades prisionais e pelas quebradas, que atuam para manter a máquina funcionando. Na imagem usada por Gabriel Feltran, a facção não tem um dono, mas age como uma irmandade, semelhante à maçonaria, em que seus membros podem ter seus próprios negócios, sem perder de vista a rede horizontal da qual fazem parte e o ideal coletivo que os orienta[1]. Os negócios criminais da facção servem para financiar a burocracia que mantém as regras do crime e ainda ajuda o grupo a atuar como uma espécie de banco de desenvolvimento da economia ilegal, que empresta armas e dinheiro para a rede de criminosos.

Com essa rede fortalecida pelo aumento da confiança nos contratos e na disponibilidade de crédito e ferramentas de trabalho, coube à mão invisível do mercado de drogas dar conta do resto. Em São Paulo, a competição entre concorrentes deixou de ocorrer à base da bala, o que incentivou rivais a buscarem rotas alternativas, mercadorias e preços vantajosos, levando a um desenvolvimento do mercado criminal. Produtores precisam de distribuidores, que fazem a mercadoria chegar aos centros consumidores de forma ininterrupta, seja por terra, ar e água, para vender um produto que não entra em crise. O crime paulista foi além das fronteiras da América do Sul, ingressando no mercado atacadista para vender para outros estados e países.

Depois do sucesso do modelo do PCC, a estratégia de governança a partir das prisões se disseminou, principalmente nos anos 10 (entre 2010 e 2020). As conexões entre facções do sudeste, como PCC, de São Paulo, e Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, estreitaram-se a partir dos contatos entre chefes de quadrilhas de diferentes estados, enviados aos presídios federais, que começaram a funcionar em 2006. As unidades, feitas para punir os mais perigosos, funcionaram também como um ponto de encontro dos criminosos mais articulados. Essa proximidade contribuiu para levar a inteligência da gestão criminal ao contexto dos outros estados, que se propagou rapidamente.

As estimativas atuais, conservadoras, são de que existem mais de 50 facções espalhadas pelas prisões e quebradas de todos os estados do Brasil, tentando governar esses mundos ilegais à base da ameaça e da violência. O mercado do crime tinha um novo modelo de gestão: PCC e CV passaram a ter influência nacional, associando-se a ou rivalizando com grupos locais nos estados. O interior dos presídios, longe de ser um universo paralelo, conecta-se com o lado de fora e acessa constantemente as quebradas brasileiras. Nos mercados regionais, a violência da nova cena criminal explodiu quando os competidores locais se recusavam a qualquer tipo de mediação e regulação, passando a disputar à bala por poder, territórios e mercados. Os homicídios explodiram no Norte e no Nordeste, onde a rivalidade entre os grupos era mais violenta. Ao mesmo tempo que aumentavam os conflitos, diversificava-se as redes de compradores de armas e de drogas no Brasil, fazendo conexões com máfias internacionais.

Essa nova configuração do mercado criminal brasileiro, com redes interconectadas e capitalizadas, agindo a partir dos presídios, ampliou os desafios das autoridades e de suas políticas públicas. As ações de segurança e de justiça já vinham se mostrando insuficientes ou contraproducentes para lidar com o fenômeno. Desde os anos 90, o número de presos cresceu em todo o Brasil, passando de 90 mil para cerca de 800 mil nos dias atuais, o que fez do país a terceira população carcerária do mundo, atrás somente dos Estados Unidos e da China.

Cresceram também os investimentos no patrulhamento ostensivo, que ganhou viaturas, armas de grosso calibre, equipamentos de comunicação, grupos de operação especial, preparados para intervenções violentas nos bairros pobres. Quanto mais se prendia e mais crescia o sistema penitenciário, mais pessoas ficavam sujeitas a se tornarem massa de manobra dos chefes das facções. Muito dinheiro foi investido pelos governos para estigmatizar e piorar as pessoas, que acabavam sendo empurradas para os braços do crime.

Os males do patrulhamento ostensivo

Claro que as autoridades não fazem isso intencionalmente. Acreditam que o encarceramento, a ostensividade da polícia e a guerra cotidiana contra o crime é o caminho para vitória do bem contra o mal. Uma guerra interna, autodestrutiva, vista como remédio para criar uma sociedade mais justa, como se a violência fosse um instrumento à mão das autoridades para produzir ordem e obediência. Foi ficando cada vez mais óbvio, no entanto, que a solução não era um remédio, mas um veneno. A violência dos governos, que se portavam nos territórios pobres como um exército inimigo, produzia reação e minava a própria legitimidade do Estado. Como resultado, estimulava grupos armados a se mobilizarem para promover uma governança local, um tipo de poder que passou a ser financiado com os recursos do mercado ilegal. Na mesma medida que as autoridades republicanas se enfraqueciam, crescia a influência dessas tiranias armadas, voltadas, sobretudo, aos interesses econômicos e políticos dos grupos criminosos. A democracia brasileira nas cidades passou a conviver com verdadeiras ditaduras de bairro.

O caso mais escancarado e visível dessa degradação institucional se deu no Rio de Janeiro, que em 2019 tinha grande parte de sua região metropolitana compartilhada entre facções ligadas ao tráfico e a grupos milicianos, oriundos das forças policiais fluminenses. O controle territorial armado dos bairros permitia a esses grupos obterem receitas em diversas frentes de negócio ilegais, como extorsão a moradores e comerciantes, organização de transporte clandestino, venda de terrenos e prédios irregulares, distribuição de gás, água, luz, internet, TV a cabo, areia, cigarros piratas etc. Além disso, o domínio permitia a organização da venda de drogas no varejo. O controle armado dos territórios para a obtenção de renda aproximou o modelo de negócios de traficantes e milicianos.

Essa nova forma de grupos armados gerirem parte das cidades, financiados pelo dinheiro do crime, passou a se espalhar pelo país. Um poder discreto e silencioso para os que observam de fora, mas real e cruel para os moradores que precisam se submeter às ordens cotidianas dos tiranos. A presença das gangues no dia a dia do Brasil pode ser mais bem dimensionada em duas pesquisas de opinião pública. A primeira delas, feita em 2020 pelo Latinobarômetro, perguntou aos habitantes dos países da América Latina se eles identificavam a presença de crime organizado, de grupos armados, traficantes ou gangues nos territórios ou municípios em que viviam. Entre os brasileiros, 70,8% responderam afirmativamente.

Entre os jovens de 15 a 25 anos, o total chegou a 75%. O resultado é surpreendente quando comparado às respostas das populações de outras nações do continente. O Brasil apareceu com folga no primeiro lugar, bem à frente de países que vivem há anos desafios semelhantes, como México (34%), Colômbia (36%), El Salvador (41%), Bolívia (32,8%) e Venezuela (28,7%)[2]. Em outro levantamento, feito em 2022 pelo Instituto Idea, 91% dos brasileiros disseram conviver com a presença de facções criminosas em seus bairros. Conforme os resultados, a presença podia ser alta (31%), média (31%) ou baixa (29%). Apenas 9% disseram que esses grupos não estão presentes em seus bairros[3].

Presídios e quebradas estão interconectados e oferecem oportunidade de emprego e renda para pessoas dispostas a arriscar a vida e a liberdade para ganhar dinheiro. O incentivo para se arriscar se tornou especialmente sedutor no contexto nacional de crise política e econômica, em que a capacidade para empreender e ganhar dinheiro pode determinar a diferença entre vida e morte nas cidades. A crença no surgimento de um estado forte, capaz de garantir direitos sociais básicos para uma vida digna, foi se enfraquecendo, dando lugar a um realismo cínico, em um mundo que massacra e esfola os pobres. Sem dinheiro, todos sabem, não se chega longe. Além disso, a expansão do mercado atacadista de drogas, que tornou o Brasil um importante corredor para a demanda mundial, permitiu a esses empreendedores ilegais transformar seus esquemas em negócios mais sofisticados, com apoio de profissionais especializados em esquentar e lavar dinheiro.

Tolerância histórica à letalidade policial

Os próprios governadores e as corporações policiais passaram a perder o controle sobre suas tropas. Em vez de enxugar gelo e arriscar suas vidas, muitos passaram a se organizar para tirar lasquinhas do imenso lucro do mercado ilegal. O descontrole das tropas fica registrado nas taxas elevadas de letalidade e nas diversas denúncias de grupos de policiais que usam suas fardas para enriquecer e obter vantagens perante as quadrilhas concorrentes. O Brasil, assim, assumiu o lugar mais alto do pódio das polícias mais violentas do mundo, numa escalada veloz. Em 2013, puxado pelos números de vítimas no Rio de Janeiro e em São Paulo, o país tinha registrado 2.212 mortos pela polícia. Em 2018, o total já havia ultrapassado a barreira dos 6 mil casos, patamar que se manteve nos cinco anos seguintes, fechando 2022 com 6.429 mortos. Amapá, Bahia – que foi governada em cinco gestões seguidas do PT, sem que fosse apresentada uma proposta política alternativa ao populismo de sempre – e Rio de Janeiro lideraram o ranking da letalidade, ao mesmo tempo que via a degradação do quadro institucional dos seus estados.

A tolerância histórica da sociedade e das autoridades com a letalidade policial contribuiu para empurrar seus membros para o crime. A violência e corrupção policial costumam andar de mãos dadas e são sintomas do descontrole das corporações. Ambas são sementes para a criação das milícias, podendo atuar em parceria com elites criminais para se aproveitar do poder da farda e ampliar seus lucros, como ocorre no Rio e em estados que vivem o drama de facções e milícias migrando para crimes ambientais – como contrabando de madeira e garimpo – e grilagem de terra.

O problema da segurança pública no Brasil, depois de décadas de omissões, erros e distorções, acabou se transformando em um grave problema político, que ameaça corroer a legitimidade das instituições democráticas. O Estado de Direito retrocedeu nos bairros controlados por tiranias armadas, que exercem o poder em áreas densamente povoadas nas capitais e no interior. Esses grupos têm mais capacidade de acumular capital e de lavar dinheiro. Os recursos ingressam na economia formal e exercem influência crescente sobre a política e a economia local. O lucro elevado também favorece a influência política e a capacidade de arregimentar autoridades que favoreçam esses negócios. Diminuem a vontade de fiscalizar ou regulamentar o mundo da ilegalidade. A inexistência de debate e a falta de soluções alternativas levam os governos a prometerem dobrar a dose do “remédio-veneno”, que segue fragilizando as instituições. Vão para as ruas mais policiais, que não se sujeitam a controles; presos sem importância continuam superlotando as cadeias, sem afetar a lucratividade e as engrenagens do negócio criminal. A credibilidade e a legitimidade das instituições continuam em declínio. É preciso parar, respirar e olhar de forma crítica o rumo que estamos seguindo. Caminhamos no sentido de criar uma distopia em que o Estado, em vez de agir para construir uma sociedade mais justa e menos desigual, é apropriado pelos grupos armados e endinheirados com o objetivo de ajudá-los a acumular dinheiro e poder, como um parceiro covarde dos mais fortes na sujeição aos que não estão dispostos a aceitar essa guerra.  


Bruno Paes Manso é jornalista, doutor em Ciências Políticas pela USP, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, autor de “A República das Milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro”, vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção de 2021; e de “A Fé e o Fuzil – crime e religião no Brasil do século XXI”, ambos os livros da Editora Todavia


Referências

[1]
FELTRAN, Gabriel: Irmãos: uma história do PCC. Companhia das Letras. São Paulo. 2018

[2] A pesquisa está em:  https://www.latinobarometro.org/latContents.jsp

[3]
A pesquisa Idea está em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/06/pesquisa-diz-que-91percent-dos-brasileiros-convivem-com-alguma-presenca-de-faccoes-criminosas-em-seus-bairros.ghtml

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