21 agosto 2023

A saga da Índia 4 – Caxemira, o ‘nó górdio’

Região constitui o principal empecilho para que indianos e paquistaneses definam suas fronteiras e encontrem a paz. Para embaixador, mundo político e separatistas enfrentam dilema entre permanecer na Índia, unir-se ao Paquistão ou tornar-se um Estado independente

População da Caxemira protesta contra a Índia (Foto: CC)

Continuando as minhas análises sobre os caminhos que levaram a Índia ao lugar a que chegou no cenário internacional, é fundamental aprofundar o estudo do tema que norteia suas relações com o vizinho Paquistão. Na realidade, esta é uma das heranças mais nefastas – se não a pior delas – deixadas pelo colonialismo britânico no Subcontinente indiano: a ainda insolúvel questão da Caxemira, que constitui o principal empecilho para que indianos e paquistaneses definam suas fronteiras e encontrem a paz.

Como mencionei na minha postagem anterior – A Saga da Índia III – o processo de descolonização foi levado a cabo de forma atabalhoada pela Grã Bretanha, que exangue ao final da II Guerra Mundial, se confrontava com a incapacidade de prosseguir no seu projeto colonial na Ásia do Sul. Foi então promulgada, em 18 de julho de 1947, a Lei de Independência da Índia (Indian Independence Act), pela qual foram criados dois domínios independentes, Índia e Paquistão. Este último foi, por sua vez, subdividido em Paquistão ocidental e o Paquistão oriental, atualmente Bangladesh. De acordo com esta lei, o governo britânico concederia, até 30 de junho de 1948, no mais tardar, total independência e autogoverno aos Estados nascentes.

Para cumprir a tarefa de encerrar definitivamente a sua presença no solo indiano e supervisionar o processo de separação de uma civilização multimilenar em dois países divididos por credos religiosos foi designado Lord Louis Mountbatten, primo em segundo grau do Rei George VI. Sua missão era restaurar a paz entre as duas facções políticas antagonistas – o Indian National Congress, conduzido por Jawaharlal Nehru, que arregimentava a população hindu e não-muçulmana, e a Muslim League, que congregava os muçulmanos, sob a liderança de Muhammad Ali Jinnah. Contra esta cissiparidade insurgiu-se o Mahatma Gandhi, que, por sua obstinação em manter a unidade da Índia independente seria martirizado em Delhi numa manhã do dia 30 de janeiro de 1948, por um nacionalista hindu, Nathuram Godse.

O designado pela Coroa britânica para definir os limites das fronteiras entre os dois Estados nascentes foi Cyril John, 1º Visconde Radcliffe. Ele, que nunca tinha estado em outro local além de Paris, recebeu a incumbência de completar o trabalho em cinco semanas. Sir Radcliffe trancou-se numa sala do “India Office”, em Delhi, e debruçou-se sobre a tarefa quase impossível, sobretudo para um britânico que jamais estivera na Índia: definir as fronteiras comuns que separariam mais que dois países, uma história compartilhada durante milênios.

Os muçulmanos embasavam seu pleito na chamada “teoria das duas nações”, ou seja, o sentimento de que sua comunidade era cultural e historicamente distinta da maioria hindu. Argumentavam que a questão religiosa criara barreiras intransponíveis, e que hindus e muçulmanos constituíam, na realidade, duas nações distintas. Para eles, o objetivo político fundamental era preservar sua identidade distinta da Índia hindu.

Neste estado de ânimos, o fato de que o fim da supremacia dos colonizadores significava que todos os direitos decorrentes da relação dos territórios com a coroa britânica retornariam aos estados nascentes, deixando-os livres “para negociar suas relações entre si na base de total liberdade”, tornou o processo ainda mais complicado, pela necessidade de formatar antecipadamente uma cartografia geopolítica que levasse em conta as múltiplas realidades dessas sociedades.

Diante da complexidade da tarefa, e raciocinando como britânico – e ocidental – Cyrill Radcliffe decidiu definir a linha demarcatória dos territórios seguindo uma lógica que lhe parecia a cabível: tomou como critério a maioria da população – hindu ou muçulmana- “in situ”.

Entretanto, este raciocínio não levava em conta as múltiplas realidades dessas sociedades, ou seja, que em todos os locais em que havia uma maioria de um credo, havia igualmente uma minoria do outro; ou seja, as fronteiras geográficas não coincidiriam com as civilizacionais. Deu tudo errado. E esta indefinição foi o estopim de uma das maiores tragédias do século XX, quando milhões de hindus e muçulmanos trocaram seus lares ancestrais por uma nova pátria. E muitos pereceram nesse processo, que a história chamou de “Partição”, como já comentei.

Aí entra a questão dos chamados Estados Principescos (Princely States). A soberania da coroa britânica não abarcava a totalidade do território indiano: perduravam no subcontinente principados teoricamente independentes, que tinham à frente um soberano que era, na verdade, monarca de pleno direito. Estes Estados gozavam de autonomia e possuíam suas próprias leis, línguas e corpos administrativos, mas se encontravam sob a proteção britânica, o que os tornava essencialmente vassalos da coroa. Quando da independência em 1947, havia 641 Estados principescos, que se espalhavam por todo o subcontinente.

Um documento legal exarado pela coroa britânica, em 1947, intitulado “Instrumento de Adesão”, permitia que cada um dos governantes desses Estados Principescos se juntasse a um dos dois novos domínios, no processo de independência. Num curto espaço de tempo a grande maioria deles decidiu integrar o Domínio da Índia. Dois desses reinos, entretanto, o sultanato de Hyderabad e o reino de Jammu e Caxemira, tergiversaram em definir o seu futuro. O sultanato de Hyderabad tinha maioria de população muçulmana, porém estava encravado numa região de maioria hindu. Em setembro de 1948, através de uma ação militar – a “Operação Polo” – as Forças Armadas indianas invadiram o estado e o anexaram à União da Índia.

No caso da Caxemira ocorreu o oposto: de maioria quase absoluta muçulmana, o reino da Caxemira era governado por uma dinastia hindu. Consequentemente, em 26 de outubro de 1947, seu governante, o marajá Hari Singh, passou o controle da defesa e das relações externas do seu Estado ao governo indiano. Entretanto, hesitante em aderir à Índia ou ao Paquistão, por consciente de que qualquer decisão provocaria reações adversas entre a população do seu reino, Hari Singh firmou um acordo de trégua com o Paquistão, e propôs o mesmo à Índia. Anunciou, entretanto, que seu reino pretendia permanecer independente.

Na tentativa de forçar a adesão da Caxemira, o Paquistão cortou o abastecimento e as ligações de transporte na região, enquanto rumores sobre atrocidades contra a população muçulmana pelas forças do marajá circularam no país. Pouco depois, membros da tribo pathan da vizinha Província da Fronteira Noroeste, do Paquistão, invadiram a Caxemira, fazendo rápido progresso em direção à capital, Srinagar. O marajá Hari Singh pediu ajuda militar a Jawarhalal Nehru, que exigiu em troca a assinatura do Instrumento de Adesão e a criação de um governo interino liderado pelo sheikh Abdullah, seu aliado.

Hari Singh cumpriu sua palavra, mas Nehru declarou que qualquer status quo deveria ser confirmado por um plebiscito, que até agora não aconteceu. Não obstante, durante décadas a região gozou de um status privilegiado, outorgado pelo artigo 370 da Constituição da Índia. Entretanto, o governo indiano atual aboliu recentemente esta lei e tornou Jammu e Caxemira num estado submetido ao governo central. Tal medida inflama ainda mais as tensões na região e enfurece o rival Paquistão. O governo, liderado pelo partido nacionalista hindu Bharatiya Janata Party (BJP), também apresentou um projeto de lei propondo que o estado de Jammu e Caxemira seja dividido em dois Territórios da União governados diretamente por Nova Delhi.

Estive na Caxemira em duas ocasiões. Primeiramente em 1985, durante a minha missão na nossa embaixada em Nova Delhi. Naquela ocasião, a imagem que guardei dela era idílica: montanhas nevadas ao longe, que se avistavam dos house boats em que nos hospedávamos no Dal Lake, onde nenúfares cobriam as águas. O canto dos muezzin chamando os fiéis para as preces dos “salats”. Era a fantasiosa realidade, então.

Retornei três anos atrás, e encontrei devastação e o acirramento do radicalismo separatista. Estava em Srinagar justamente no momento em que o exército indiano matou dois jovens líderes separatistas, criando um enorme tumulto popular. Quase fui impedido de escapar, não fosse a diligência de amigos locais que providenciaram a minha fuga através de um cenário de devastação desolador.

Permanece o dilema que mobiliza o mundo político e os separatistas da Caxemira: permanecer na Índia; unir-se ao Paquistão; ou tornar-se um Estado independente? Eis a questão e a raiz da tragédia. Haverá um desfecho, em algum dia?

Pretendo abordar o tema do acirramento da questão religiosa numa próxima coluna.

To be continued…

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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