01 maio 2023

Tempo quente no Mar do Sul da China

Exercício militar dos EUA revela tensão crescente em região que é um dos trajetos marítimos mais importantes do mundo. Para embaixador, qualquer obstrução desta passagem fundamental acarretaria enormes prejuízos para mais da metade do comércio da região e pode ter efeitos até mesmo no Brasil

Exercício militar dos EUA revela tensão crescente em região que é um dos trajetos marítimos mais importantes do mundo. Para embaixador, qualquer obstrução desta passagem fundamental acarretaria enormes prejuízos para mais da metade do comércio da região e pode ter efeitos até mesmo no Brasil

Exercício conjunto de militares dos EUA e das Filipinas (Foto: Marine Corps)

Por Fausto Godoy*

A imprensa internacional noticiou a expansão, a partir de 11 de abril, dos exercícios das forças armadas dos Estados Unidos nas Filipinas. Segundo o Estadão, estas seriam “as maiores manobras de guerra da história da região do Indo-Pacífico”, reunindo mais de 17 mil soldados e observadores militares do Japão e Austrália ao largo do arquipélago das Spratlys, no Mar do Sul da China. O objetivo seria monitorar os confrontos que se estão ali aguçando sobretudo diante da alegada investida dos chineses na região. O bom relacionamento do atual Presidente filipino, Ferdinand Marcos Jr. –filho do Ferdinand Marcos que dominou a vida política das Filipinas ao longo da segunda metade do século XX– com os americanos, propiciou a iniciativa. 

Só que estas ilhas são, juntamente com as Ilhas Paracel, os dois principais arquipélagos do Mar do Sul da China. Elas são em grande parte desabitadas, mas constituem ricas áreas de pesca, e consta que podem conter reservas significativas de petróleo e gás natural. No seu leito oceânico há também uma abundância de vida marinha que é explorada como alimento pelas nações da vizinhança há milhares de anos. Algumas das cerca de 45 dessas ilhas, ilhotas e recifes possuem assentamentos civis; em todas, no entanto, há estruturas que foram construídas por forças militares da Malásia, Taiwan, República Popular da China, Filipinas e Vietnã. Brunei também postula sua zona econômica exclusiva na parte sudeste das Ilhas Spratly. 

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Todos estes países reivindicam algum tipo de soberania sobre os dois arquipélagos. O imbróglio se acentua em razão da “Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”, de 1982, que definiu e codificou temas como mar territorial, zona econômica exclusiva e plataforma continental, estabelecendo os princípios gerais para a exploração dos seus recursos naturais. Neste contexto, a “Zona Econômica Exclusiva” (ZEE) definida pelo documento estabeleceu a distância de 200 milhas náuticas (cerca de 370 quilômetros) além das águas territoriais que constituem as 12 milhas, ou 22 quilômetros, a partir da costa. Nestas ZEE’s o Estado costeiro exerce soberania absoluta – “sole exploitation rights”, nos termos da convenção– tanto sobre o mar, quanto sobre o espaço aéreo acima, o fundo do mar e o subsolo abaixo, e tem prioridade na utilização e proteção dos seus recursos naturais.

É aí que a coisa fica feia… As projeções cartográficas das 200milhas do mar territorial de cada um desses Estados invadem espaços dos outros, que se entrecruzam e concorrem entre si, tornando praticamente insolúvel qualquer pleito isolado de direito unívoco sobre esses territórios. Para complicar, a República da China, baseada na sua percepção da história, reclama como sua a soberania sobre a maior parte do Mar da China Meridional. Para isto, ela invoca a chamada “linha das nove raias” (九段线), ou linha dos nove traços, que foi a demarcatória utilizada inicialmente pelo governo da República da China (ROC/Taiwan) e subsequentemente pela República Popular da China (RPC) para delimitar o seu mar territorial. As Filipinas levaram seu pleito contra Pequim ao Tribunal Internacional do Direito do Mar, na Haia, em 2016, que de forma inequívoca deu-lhe ganho de causa… Só que a República Popular nunca reconheceu a decisão. 

Mas o que está realmente em jogo?

O que mais importa, na verdade, é o tráfego marítimo que atravessa a região em direção ao Estreito de Malaca, entre a Indonésia e a Malásia, e abre passagem para as exportações dos países lindeiros –inclusive a China– destinadas ao Oceano Índico, e daí para o resto do planeta. Em resumo, qualquer obstrução desta passagem fundamental acarretaria enormes prejuízos para mais da metade do comércio marítimo da região! 

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E vamos incluir, em adição a este cenário, a disputa pela hegemonia mundial entre os Estados Unidos e a República Popular da China, e temos a tempestade quase perfeita. De fato, a manobra em ação faz parte de um plano lançado em 2022 pelo Pentágono de ampliar a presença militar americana na região para conter a China. Desde então, os EUA instalaram quatro novas bases militares no Pacífico, intensificaram treinamentos, criaram novas alianças e convenceram os países da região a aumentar seus gastos de defesa. Em paralelo, os americanos têm ampliado o apoio mais incisivo a Taiwan, cuja presidente, Tsai Ing-wen, acaba de realizar uma visita à Califórnia, onde se encontrou com o presidente –speaker– da Casa dos Representantes, Kevin McCarthy, (remember Nancy Pelosi?), irritando profundamente Pequim, que, como alerta, fez exercícios militares ameaçadores ao largo do Estreito de Taiwan. Mas, desta questão tratarei num outro artigo.

Em suma, para nós neste lado do planeta, este tema pode parecer longínquo e desconectado das nossas realidades. Em parte aparentemente o é; mas só aparentemente, pois a rota pelo Mar do Sul da China, via estreito de Malaca, é um dos trajetos marítimos mais importantes do mundo. Cerca de 90 mil navios por ano, ou quase 200 navios diariamente, o cruzam, tornando-o no principal canal de navegação entre os oceanos Índico e Pacífico… inclusive para o nosso comércio com a região..

Em resumo: sinal amarelo!!! As consequências podem ser funestas para todos nós! 

To be continued…


*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fausto-godoy-nos-e-a-asia/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

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