26 abril 2023

A ‘Tragédia dos Comuns’, direito e política no Brasil contemporâneo

O uso de bens comuns em benefício individual ameaça levar ao esgotamento de recursos disponíveis. Para pesquisador, é apenas por meio dos procedimentos oferecidos pelo direito e pela arena constituída pela política que se pode superar percepções patrimonialistas que contribuem para o exaurimento dos “bens” do país

O uso de bens comuns em benefício individual ameaça levar ao esgotamento de recursos disponíveis. Para pesquisador, é apenas por meio dos procedimentos oferecidos pelo direito e pela arena constituída pela política que se pode superar percepções patrimonialistas que contribuem para o exaurimento dos ‘bens’ do país

Manifestantes tomam gramado em frente ao Congresso Nacional e protestam contra a corrupção (Foto: Jonas Pereira/Agência Senado)

Por Felipe Tirado*

O dilema da “tragédia dos comuns” apresenta uma situação na qual indivíduos usam bens comuns de forma independente e sem regulações gerais –sociais ou legais. O uso desses bens comuns por esses indivíduos, agindo de acordo com seu interesse próprio (desprezando o bem comum), levaria, então, ao esgotamento dos recursos disponíveis.

O conceito foi proposto, pela primeira vez na modernidade, no campo econômico, pelo britânico Forster Lloyd e, no século passado, foi popularizado, no contexto ecológico, pelo americano Garrett Hardin. A lógica do dilema, entretanto, pode ser traçada à filosofia de Aristóteles:

Aquilo que é comum ao maior número [de pessoas] recebe menos atenção. [As pessoas] prestam mais atenção ao que é seu: eles se importam menos com o que é comum.

Certamente, cada leitor desenvolveu uma interpretação acerca do tema deste texto a partir de seu título e introdução, de acordo com seu próprio horizonte interpretativo. Alguns pensaram em relações econômicas que deveriam ser mais bem regulamentadas no país, outros pensaram em aspectos ambientais que sofrem com a falta de fiscalização e sanções apropriadas. O presente artigo, seguindo a temática desta coluna, pretende trabalhar com a forma pela qual direito e política atuariam de forma a evitar o prognóstico oferecido pela tragédia dos comuns. Entretanto, para além do esgotamento econômico ou ambiental, que são mais tangíveis, propomos também uma reflexão em relação ao esvaziamento progressivo da confiança em representantes eleitos e até da capacidade de gerir o país de forma mais eficiente e íntegra.

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No noticiário recente, se tornou comum acompanharmos matérias sobre o uso da máquina pública por atores públicos e privados que agem “de acordo com seu interesse próprio (desprezando o bem comum)”. O ex-ministro da Justiça alegou que o ex-presidente interferiu na Polícia Federal para beneficiar a si e aos seus. Parlamentares são acusados de usarem de verbas públicas, em orçamentos secretos, para beneficiar seus redutos eleitorais, visando a permanência no cargo. Empresas são investigadas por sonegarem impostos e praticarem fraudes, possivelmente ao prejuízo de milhões de pessoas, para o “benefício” pessoal de poucos. Isso para citar apenas alguns exemplos notórios de ações que muito se assemelham à tragédia descrita no introito, em uma perspectiva mais ampla.

A questão proposta aqui é como tentar evitar vários possíveis pontos de inflexão, partindo do prognóstico proposto pelo dilema apresentado no preambulo. Ou seja, como seria possível evitar que o sistema –no caso, diversas estruturas sociais existentes no Estado brasileiro– passasse pelo esgotamento de seus recursos (das mais variadas naturezas) após uma série de ações em interesse próprio, que desprezam o bem comum. Uma tendência identificada pelos mais diversos campos (econômico, ambiental, social e até moral, por exemplo) e, também, pela literatura nacional, por exemplo, pelo conceito de “rapinagem”, desenvolvido por Jessé Souza.

Novamente, é possível afirmar que cada leitor imaginará uma série de exemplos e contextos de violações com os quais tem maior familiaridade. Também seria possível citar muitos outros exemplos notáveis de corrupção (em seu sentido mais amplo) que poderiam ter sido evitados pela efetivação do debate político transparente ou com a aplicação célere e efetiva da lei. Entretanto, para além de referências negativas, também é possível imaginar várias experiências de sucesso –de como, através do direito e da política, uma série de “tragédias dos comuns” foram evitadas no Brasil. Nesses exemplos, encontramos as possíveis soluções.

‘O direito oferece uma série de ferramentas para tornar a sociedade brasileira mais justa e acessível aos cidadãos. Por outro lado, se encontra na política a arena fundamental para que a concepção de Estado como bem comum se realize’

Seguindo essa lógica, a resposta para evitar o esgotamento, portanto, está no direito e na política. Por um lado, o direito oferece uma série de ferramentas para tornar a sociedade brasileira mais justa, menos desigual e, assim, acessível aos cidadãos como um “bem comum” de fato. De tal forma, a efetivação de direitos e deveres, levaria tanto à redução de visões individualistas do Estado brasileiro, quanto à ampliação da compreensão deste como um bem comum a ser preservado.

Por outro lado, se encontra na política a arena fundamental para que a concepção de Estado como bem comum se realize –através de amplo debate e atuação na esfera pública. Assim, é possível afirmar que apenas por meio dos procedimentos oferecidos pelo direito e pela arena constituída pela política é possível superar percepções patrimonialistas ou individualistas que contribuem para o exaurimento dos mais variados “bens” de nosso país.

‘Efetivar o direito e concretizar a política requer o reconhecimento e diálogo constante com compreensões de vida e perspectivas destoantes, nas mais diversas esferas’

Apesar de a proposta defendida aqui parecer simples, na prática, ela é extremamente complexa. Efetivar o direito e concretizar a política requer o reconhecimento e diálogo constante com compreensões de vida e perspectivas destoantes, nas mais diversas esferas. Tal atuação pressupõe, inclusive, a busca pela compreensão e até mesmo cooperação com atores que nem sempre compartilham de nossas visões de mundo, sempre observadas as balizas impostas pelo Estado de Direito.

A necessidade, portanto, é de superar discursos e soluções simplistas, e polarizações simplificadoras; de fato, compreender o Estado brasileiro não como uma forma de efetivar o interesse pessoal, mas como um bem comum – com recursos (novamente, em sentido amplo) que podem se tornar escassos –; e o direito e a política como formas de se evitar possíveis tragédias.


*Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional, doutorando em direito e política e professor substituto de jurisprudência no King’s College London

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute

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