Sessenta anos do golpe militar: Como o esforço para esquecer mantém o país e as Forças Armadas presos ao passado?
Governo e militares parecem relutantes em examinar as lições das últimas décadas. Para pesquisador, o Brasil deveria se empenhar para lembrar para ser capaz de superar os obstáculos que mantém o país preso a esse passado ainda tão presente
Neste 1º de abril completam-se 60 anos do golpe que inaugurou a ditadura militar (1964-85). No desfecho do regime, as Forças Armadas, perpetradoras de uma série de graves violações de direitos e em meio a um desastre econômico, retornaram combalidas aos quartéis. À época, o último ditador, o general João Batista Figueiredo, manifestou o que parecia ser o desejo da maioria dos militares, queriam “ser esquecidos”.
Durante os primeiros governos civis, as Forças Armadas aparentavam ter apenas um papel coadjuvante na política nacional. Entretanto, nos bastidores, atuavam diligentemente para retomar o seu antigo protagonismo — desde a Constituinte, o lobby militar atuava exitoso.
Habitualmente, utilizavam o prestígio que conseguiram manter tanto para resguardar quanto para avançar seus interesses. É ilustrativo que somente em 1999 (mais de uma década após o fim do regime militar) as Forças Armadas tenham se tornado subordinadas ao poder civil, ainda que apenas formalmente, com a criação do Ministério da Defesa.
Posteriormente, durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, houve um intenso agravamento da tendência citada. Nesse período, as Forças Armadas passaram a ter cada vez mais influência sobre setores muito além de sua competência. Gradativamente, manifestações militares se tornavam mais frequentes, inclusive em relação a temas completamente alheios a suas funções ou opostos aos seus interesses.
A sublevação do então general Hamilton Mourão contra a então presidente Dilma Rousseff, em 2015, ilustra bem os limites alcançados pelas declarações militares à época. A indisciplina do militar em relação à presidente e a insuficiência da sanção ao ato de insubordinação deveriam ter servido de advertência ao que estava prestes a acontecer.
Entretanto, ao invés de serem adequadamente responsabilizadas e devidamente subordinadas ao controle civil, as Forças Armadas passaram a ser habitualmente convocadas a lidar com diversos tipos de crises, notadamente aquelas relacionadas à segurança pública. Durante os grandes eventos internacionais sediados no país, essa tendência se aprofundou. Entre 2010 a 2018, as Forças Armadas foram empregadas 44 vezes em operações de Garantia da Lei e da Ordem.
Com a ruptura que levou ao fim do governo Dilma, os militares retomaram o protagonismo em diversas áreas da esfera pública brasileira. Durante o governo Temer, passaram a chefiar o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional, e foram encarregados da intervenção federal no Rio de Janeiro. Essa atuação constante expandiu ainda mais o protagonismo dos militares, que voltava a ser público, elevando também o seu prestígio perante a população.
O constante emprego das Forças, aliado à ampliação do prestígio e da influência (tanto nos bastidores quanto de forma pública), em conjunto com a completa falta de responsabilização, a insubordinação ao poder civil e habituais rupturas na hierarquia estabeleceram as condições para o que ocorreria nos anos seguintes. O ‘compromisso’ feito por Jair Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras em 2014 — novamente impune — e as manifestações militares citadas foram sintomáticas e são ilustrativas do desenvolvimento desse cenário.
A partir dessa conjuntura, os militares utilizaram o prestígio público que recuperaram de forma gradativa após a redemocratização para contribuir para que uma chapa composta por um ex-capitão e um ex-general (ambos envolvidos em episódios conhecidos de indisciplina) fosse vitoriosa nas eleições de 2018.
Com a eleição de Bolsonaro, os militares retornaram de vez ao Palácio do Planalto. Além do ex-capitão, que já era político há 30 anos — alegando (sem resultados relevantes) representar os interesses da caserna — e do vice-presidente-general, membros das Forças chefiavam grande parte dos ministérios. Além disso, ampliaram a sua participação no Congresso, elegendo legisladores-militares das mais variadas patentes.
No ápice da participação de militares no governo federal, membros das Forças Armadas chegaram a ocupar mais de 6.000 cargos. Além de se mostrarem despreparados para diversas funções — como no paradigmático caso da condução da resposta federal à pandemia pelo ministro-general Eduardo Pazuello —, comumente recebiam, em razão do acúmulo de funções, salários que extrapolavam o teto constitucional.
Enfim, no epílogo do governo Bolsonaro, um desfecho um tanto quanto previsível para aqueles que acompanhavam os desdobramentos das últimas décadas de forma mais minuciosa. Inicialmente, durante as eleições de 2022, observamos o uso do Estado para efetuar uma série de abusos e violações de direitos. Nos meses subsequentes, testemunhamos a calmaria que costumeiramente antecede a tempestade.
Embora aliados alegassem que o silêncio de Bolsonaro decorria da melancolia da derrota eleitoral, evidências que posteriormente vieram à tona desvelam motivações diversas. Uma série de indícios revelados ao longo do último ano sustentam a possibilidade de que, na realidade, Bolsonaro e outros associados — incluindo diversos militares de alta patente — conspiravam para a execução de um golpe de Estado.
Em 8 de janeiro de 2023, a pretensa calmaria — e a possível trama golpista encoberta por ela — culminou em um ataque à sede dos Três Poderes. Ataque que, na realidade, como indicam as investigações da Polícia Federal (PF), visava produzir as condições necessárias para a execução da conspiração.
Cada vez mais, evidencias desveladas pelas investigações citadas apontam para indícios de omissões e de participação ativa de membros do alto oficialato das Forças Armadas na tentativa de golpe. Recentemente, outro candidato-a-vice-presidente-general, Walter Braga Netto, se tornou um dos principais alvos da investigação da PF sobre a trama golpista. Segundo os investigadores, “há indícios da participação decisiva de Braga Netto na coordenação, mobilização e captação de recursos para os ataques”.
Enquanto as investigações em relação à participação dos militares em uma tentativa de golpe de Estado avançam, o Executivo e o Legislativo permanecem praticamente inertes em relação ao tema. Em vez de implementar as (muito proteladas) reformas das Forças Armadas — mais do que necessárias, benéficas a elas e à defesa nacional de forma mais ampla —, parece que tanto o governo quanto os próprios militares optaram por um rumo similar ao tomado em 1985: o esquecimento.
Assim, projetos fundamentais para a modernização das Forças e a sua adequação à realidade contemporânea, nacional e internacional, foram engavetados e iniciativas que visavam resguardar a memória foram cerceadas — a reprise de uma novela que acabamos de assistir.
Em detrimento das necessárias reformas, sem as quais os militares continuarão ideológica e estruturalmente presos ao século XX, as Forças receberam uma ampliação de verbas, majoritariamente voltadas para o pagamento de pessoal — da ativa e da reserva. Como se não bastasse, os militares atuam para ampliar (ainda mais) seu orçamento para pelo menos 2% do PIB — uma previsão orçamentária que não consegue ser cumprida pela maioria dos membros da Otan.
Nos últimos anos, testemunhamos as Forças Armadas se tornarem vítimas de uma armadilha que ajudaram a armar. Sucessivos fracassos em áreas para além de seu campo de atuação, a participação ativa no último governo e o possível envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado, levaram tanto à incapacidade de gerir as atribuições conquistadas quanto à crescente degradação de sua imagem pública. Enquanto as Forças Armadas se empenharem em influenciar a política nacional, continuarão comprometendo sua capacidade de exercer sua função principal: a defesa nacional. Pouco adianta ampliar o orçamento ou lançar submarinos, se a estratégia, valores e práticas permanecerem atrelados ao século passado.
Assim, testemunhamos, mais uma vez, a incapacidade nacional de aprender com os erros do passado. Tanto o governo quanto as próprias Forças Armadas parecem relutantes em examinar as lições dos últimos sessenta anos e, especialmente, dos eventos mais recentes. Nos 60 anos do golpe militar, ao invés de esquecer, o Brasil deveria se empenhar para lembrar; pois, somente assim, e por meio de muito esforço, seremos capazes de superar os obstáculos que nos mantém presos a esse passado ainda tão presente.
Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute
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