01 fevereiro 2023

Um necessário acerto de contas com o Estado de Direito

Após ataques golpistas em Brasília, país tem oportunidade de passar por um processo de responsabilização dos envolvidos e apoiadores dos atos. Para pesquisador de política e direito, falar em tolerância e pacificação alude à impunidade e seria oposto ao que pretende o conceito de justiça no paradigma do Estado de Direito

Após ataques golpistas em Brasília, país tem oportunidade de passar por um processo de responsabilização dos envolvidos e apoiadores dos atos. Para pesquisador de direito e política, falar em tolerância e pacificação alude à impunidade e seria oposto ao que pretende o conceito de justiça no paradigma do Estado de Direito

Palácio do Planalto após a destruição de vândalos em ataque golpista (Foto: Agência Brasil)

Por Felipe Tirado*

Os atos de terror perpetrados em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023 podem ser considerados o maior ataque à democracia brasileira desde o fim da ditadura militar. Na sequência dos ataques, textos defenderam a possibilidade oferecida pelos trágicos eventos para o desenvolvimento da democracia brasileira, a reorganização da relação entre civis e militares, a postura nacional em relação ao fascismo, e até a compreensão de bolsonarismo.

Este artigo, em sentido análogo, defende a possibilidade de o país de fazer um necessário acerto de contas com o Estado de Direito, e os requerimentos englobados por este, com foco na justiça – compreendida aqui por responsabilização. Tal perspectiva se faz necessária para que o país seja capaz de lidar com seu histórico de impunidade seletiva e seu mais de um século de sucessivas anistias a perpetradores de crimes contra a própria população.

O paradigma Estado de Direito compreende inúmeros deveres, direitos e garantias que, de forma geral, defendem a igualdade dos cidadãos perante a lei e limitam o poder estatal. Especificamente em relação à justiça, há uma série de requerimentos e objetivos específicos. Neste caso, o requerimento central é o devido processo legal – e a série de direitos e garantias englobados por este. Por outro lado, dentre os objetivos, há a dissuasão de violações futuras, a restauração do dano, a reparação às vítimas, e a reabilitação dos violadores. Apresenta-se agora, portanto, a oportunidade de acertar as contas com esses aspectos centrais. Um acerto de contas que se torna ainda mais necessário após os danos gerados pelo lavajatismo, como defendido por Fábio de Sá e Silva e Lênio Streck.

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De tal forma, ponderar – com argumentos de política e considerações para além do direito – sobre o que deve ser feito em relação aos responsáveis pelos crimes ocorridos em 8 de janeiro não seria compatível com os requerimentos do Estado de Direito. Ao contrário, observados os requerimentos legais citados, faz-se necessário investigar e punir aqueles considerados culpados.  Afirmar, por exemplo, que Bolsonaro “daria menos trabalho inelegível” não é sustentável dessa perspectiva. Caso sua responsabilidade seja reconhecida, respeitado o devido processo legal, o ex-presidente deverá ser punido na extensão dos termos da lei.

‘Afirmar, por exemplo, que Bolsonaro “daria menos trabalho inelegível” não é sustentável’

Como defendido anteriormente, inclusive a partir da perspectiva da justiça de transição, é necessário apurar a responsabilidade de todos aqueles que participaram, lideraram, estimularam e apoiaram, e financiaram esses atos. Caso, após a investigação e o devido processo, sejam considerados culpados, faz-se necessário que cumpram as penas prescritas por lei. Neste sentido, falar em tolerância e pacificação, compreendidas no sentido de impunidade, seria oposto ao que pretende o conceito de justiça no paradigma do Estado de Direito. Tal confusão – ou manipulação – dos conceitos é comumente feita por oponentes do paradigma, e até mesmo por aqueles que praticaram os crimes, visando sua impunidade.

Um exemplo que ilustra bem essa perspectiva é encontrado no editorial recente de O Estado de São Paulo, “Justiça não é vingança”. No subtítulo, o editorialista afirma que “a pacificação política exige a punição dos radicais, mas também um exame de consciência de todas as forças democrática, que precisam se desvencilhar de quaisquer ânimos retaliatórios”. No breve texto, o jornal defende um “exame de consciência”, uma “responsabilização” da direita e das Forças Armadas que se assemelha a autocritica, atribui o papel de pacificação às esquerdas, e sugere a responsabilização de Jair Bolsonaro e seus seguidores radicais – observado o devido processo legal.

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Apesar de levantar alguns pontos relevantes, o texto faz uma falsa correspondência e retorna ao clássico discurso nacional de tolerância e pacificação, ao defender uma compreensão própria de que “justiça não é vingança”. De fato, no paradigma do Estado Direito, justiça não é vingança. Entretanto, ao contrário do proposto, isso não quer dizer tolerância e pacificação, no sentido de impunidade que parece ser defendido. Justiça, em sentido necessário aos requerimentos expostos acima, é a responsabilização daqueles que forem considerados culpados, observado o devido processo, visando os objetivos citados acima. Portanto, qualquer percurso que visasse uma justa pacificação nacional, ao contrário do que ocorreu na redemocratização, resultaria deste processo.

‘No paradigma do Estado Direito, justiça não é vingança. Entretanto, isso não quer dizer tolerância e pacificação, no sentido de impunidade que parece ser defendido. Justiça é a responsabilização daqueles que forem considerados culpados, observado o devido processo’

Para concluir, vale retomar uma citação que sumariza bem a reflexão proposta aqui. Certamente, poderia citar uma das vítimas que sobreviveu ao genocídio perpetrado contra o povo Yanomami, ou um dos parentes de uma das centenas de milhares de vítimas da pandemia do Covid 19 ou das violências que há tanto assolam o país. Entretanto, ao escrever este artigo, me recordei de uma fala anterior, que responde bem àqueles que afirmam que responsabilização se trata de uma busca por vingança.

A opção, portanto, é pela perspectiva de outra vítima – sobrevivente de um dos maiores crimes do século passado – que também lutou por justiça em relação àqueles que perpetraram as violações sofridas. Além disso, sua empreitada face aos autores de crimes contra a humanidade foi guiada – em grande medida – de forma compatível com os requerimentos e objetivos do Estado de Direito defendidos aqui. Neste sentido, ao ser questionado sobre o papel que desempenhou ao contribuir para que nazistas respondessem por seus atos nas cortes, Simon Wiesenthal, sobrevivente do Holocausto, afirmou: “Minha causa era a justiça, não a vingança. Meu trabalho é por um futuro melhor e mais seguro para os meus filhos e netos.”


*Felipe Tirado é doutorando em direito e política e professor substituto de jurisprudência no King’s College London

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute

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