17 abril 2023

Ataques nas escolas – O que está em jogo?

Compreender que tipos de forças estão sendo mobilizadas nesses ataques é o primeiro passo para evitar a cilada autoritária de combater violência com repressão. Para cientista política, é preciso entender casos de violência nas escolas como um problema político

Compreender que tipos de forças estão sendo mobilizadas nesses ataques é o primeiro passo para evitar a cilada autoritária de combater violência com repressão. Em primeira parte de análise sobre violência nas escolas, cientista política argumenta que é preciso entender casos de violência nas escolas como um problema político

Alunos saem abraçados de escola na Estrutural, no Distrito Federal. Até hoje ocorreram 11 ataques com mortes em escolas brasileiras, cinco nos últimos anos (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Por Fhoutine Marie*

Quando não somos capazes de compreender atos brutais praticados contra pessoas indefesas, nosso impulso é colocar seus autores no campo da irracionalidade. Deste modo, é compreensível que, como mecanismo de defesa, pensemos nos autores dos atentados responsáveis pela morte da professora Elisabeth Tenreiro (71) e mais quatro crianças de idades entre 4 e 7 anos como monstros irracionais, loucos, psicopatas, desalmados.

Contudo, passado o calor da emoção diante desses terríveis acontecimentos, é preciso pensar no problema com alguma ancoragem na realidade. Para isso é preciso deixar de lado a hipótese da doença mental e dos efeitos do bullying –que podem estar presentes nesses casos, sim, mas que não nos ajudam a entender o problema dos ataques às escolas como o que ele é: um problema político.

‘Considerar que há uma mera importação do que acontece nos EUA não parece suficiente para compreender esse fenômeno, tampouco para imaginar saídas que não reproduzam a lógica autoritária e belicista’

Por se tratar de um fenômeno recente no Brasil, os ataques nas escolas muitas vezes parecem associados ao que acontece nos Estados Unidos, país onde se registram 300 ocorrências do tipo ao ano. Felizmente, o acesso a armas de fogo por aqui não é tão fácil, o que se reflete na baixa letalidade dos ataques em comparação àquele país. Contudo, considerar que há uma mera importação do que acontece por lá não me parece suficiente para compreender esse fenômeno, tampouco para imaginar saídas que não reproduzam a lógica autoritária e belicista.

Assim, essa análise se desdobra em três pontos: a questão dos lobos solitários/extremismo de direita/terrorismo doméstico, o crescimento no neonazismo no Brasil e as políticas para prevenir esses ataques que começaram a ser discutidas/implantadas pelo poder público.

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Lobos solitários não nascem sozinhos

Autores de atentados que agem individualmente (ou, no máximo, em dupla), costumam ser chamados pela imprensa de “lobos solitários”, termo que indicaria que não pertencem a uma organização e que seriam os únicos responsáveis pelo planejamento e execução de seus ataques. A questão é que os lobos não são animais solitários. Assim, tomando como exemplo os atentados já praticados no Brasil é possível fazer algumas observações sobre essas alcateias, os coletivos onde os lobos vivem e “cuidam” uns dos outros.

‘Autores de atentados que agem individualmente costumam ser chamados de “lobos solitários”, mas os lobos não são animais solitários e é possível fazer observações sobre essas alcateias, os coletivos onde os lobos vivem e “cuidam” uns dos outros’

Até hoje ocorreram 11 ataques com mortes em escolas brasileiras, cinco do ano passado pra cá. Ao todo, 39 pessoas foram assassinadas nessas ocasiões. A princípio realizados por “lobos solitários”, esses atentados revelam algumas características em comum quando observados dentro de um quadro mais amplo: a relação com o discurso de extrema-direita e o “efeito contágio” que exercem sobre ataques futuros.

Contatos virtuais, consequências reais

Em abril de 2011, um ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, carregando na mochila duas armas de fogo. Na época com 23 anos, entrou na escola dizendo ser um palestrante e matou 12 alunos -dez do sexo feminino– e deixou mais 12 feridos. Segundo relatos, ele atirava na cabeça das meninas e no corpo dos meninos. Em carta, o autor do massacre disse ter sido vítima de bullying na escola.

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Um ano após o massacre, a Polícia Federal descobriu que Wellington foi influenciado e incentivado por Marcello Valle Silveira Mello[1] e Emerson Eduardo Rodrigues Setim, que estavam organizando um ataque, desta vez contra os alunos de ciências sociais da Universidade de Brasília. Os dois faziam parte de um grupo conhecido como “sanctus”, conhecidos por disseminar no ambiente virtual discurso de ódio (revestido de religiosidade cristã) contra mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+, entre outras minorias.

Assim como em Realengo, o atentado ocorrido na escola estadual Raul Brasil, em Suzano (SP) foi realizado por dois ex-alunos da instituição. Em março de 2019, um adolescente de 17 anos e um homem adulto de 25 entraram na escola portando um revólver e mataram 8 pessoas, suicidando-se em seguida. As investigações apontaram que os autores frequentam fóruns virtuais onde predominam os discursos de ódio misóginos, supremacismo branco, bullying e nazismo.

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Antes do ataque à creche em Blumenau (SC), que resultou na morte de 4 crianças com idades entre 4 e 7 anos e outras 5 feridas, houve outro atentado tão terrível quanto este. Em maio de 2021, um homem de 18 anos invadiu uma creche municipal em Saudades. Armado com um facão, matou 3 crianças menores de 2 anos e duas mulheres. O autor não possuía nenhum vínculo com a escola. Apesar disso, as investigações levantaram a hipótese de bullying, como nos outros casos já citados. Poucos dias após o atentado, uma reportagem do DCM mostrou prints extraídos de um fórum de extrema-direita que saudavam o autor dos atentados como herói e como um “sancto”. O texto também mostra prints sugerindo que ele teria pedido orientações para cometer o atentado.  

‘Processo de radicalização acontece no ambiente virtual, onde esse adolescentes do sexo masculino e jovens homens adultos entram em contato com discursos de ódio que não podem ser dissociados da extrema-direita’

Outros ataques em escolas com vítimas seguem este padrão. Em 2022, no Espírito Santo, um adolescente de 16 anos matou a tiros uma menina de 12 anos e 3 professoras numa escola em Aracruz; ele usava uma braçadeira com um símbolo nazista.

O que se verifica em comum é um processo de radicalização que acontece no ambiente virtual, onde esse adolescentes do sexo masculino e jovens homens adultos entram em contato com discursos de ódio que não podem ser dissociados da extrema-direita – algo anterior e mais amplo que o bolsonarismo.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-fascismo-nao-e-piada/

Não obstante, a hipótese do bullying está presente no discurso midiático e policial sobre os ataques, ainda que os alvos dos ataques analisados (com exceção de Suzano) tenham como preferência não eventuais valentões ou potenciais praticantes de bullying, mas figuras de autoridade femininas (professoras e funcionárias das escolas), garotas consideradas atraentes e crianças pequenas sem qualquer chance de se defender.

O vídeo do assassinato da professora Elizabeth Tenreiro mostra que o autor do atentado se dirige diretamente a ela e a atinge com um golpe nas costas. Depoimentos de alunos relatos que dias antes o autor dos ataques teria direcionado ofensas racistas a outro colega, ato que teve a intervenção da professora. Não parece se tratar de alguém que sofre bullying, mas antes de alguém que reivindica a liberdade para praticá-lo e adotar práticas racistas sem que ninguém possa contestá-lo. Tudo isso precisa ser levado em consideração para a elaboração de qualquer política preventiva.

(Este texto continua em uma segunda parte).


*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências:

[1] Em 2018 Mello foi condenado a 41 anos de prisão por uma série de crimes que incluem associação criminosa, terrorismo, racismo e divulgação de imagens de pedofilia. Mello também faz parte do grupo que ameaçou de morte a professora Lola Aronovich, autora de um dos blogs feministas mais importantes do país.

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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