Fascismo não é piada
Tratar golpistas com ironia é dar tempo para que essas forças se organizem e pratiquem atos como os de 8 de janeiro. Para cientista política, a luta antifascista deve recusar a ideia de que uma resposta virá das urnas ou está ligada à punição estatal e inclui combate nas ruas, difusão de ideias do movimento por meio de veículos independentes, formação política e produção de conhecimento
Tratar golpistas com ironia é dar tempo para que essas forças se organizem e pratiquem atos como os de 8 de janeiro. Para cientista política, a luta antifascista deve recusar a ideia de que uma resposta virá das urnas ou está ligada à punição estatal e inclui combate nas ruas, difusão de ideias do movimento por meio de veículos independentes, formação política e produção de conhecimento
Por Fhoutine Marie*
Apesar da insistência de alguns analistas e da esquerda partidária, o PT não é o único vetor da política nacional. Compreender isso é fundamental para avançar em um combate ao fascismo que seja descolado de resultados eleitorais. Porque é disso que estamos tratando: de um fenômeno que não é exclusivo do Brasil, que tem sido gestado há algumas décadas e que não pretende mera mudança de governo, mas a substituição de uma ética humanista, inclusiva e ancorada na ciência por uma outra punitivista, excludente e que tem como base o fundamentalismo cristão.
A ascensão de Bolsonaro e seus asseclas está relacionada a um projeto político que remonta décadas: o neoconservadorismo. Trata-se de um projeto político que conjuga a crença no ultraliberalismo, o anticomunismo e a crítica ao que eles chamam de relativismo moral (tratar minorias como gente). Não começou no Superpop ou no CQC, mas ganhou visibilidade nesses programas enquanto o campo progressista tratava tudo como piada ou engajava com os conteúdos de quem aprendeu antes a usar as redes sociais para se tornar conhecido e recrutar. Com isso, o limite do que é aceitável foi sendo esgarçado na mídia, normalizando xingamentos contra jornalistas e a expressão dos mais diversos preconceitos como entretenimento.
Bolsonaro já tinha visto isso décadas antes, quando começou a se projetar nacionalmente por meio de um artigo (1986) e posteriormente em uma entrevista (1987) publicados pela revista Veja. O que no começo era uma reivindicação de melhores salários para os militares evoluiu para um plano de colocar bombas em quarteis. Essa história e como desde então o ex-presidente aprendeu a usar os meios de comunicação a seu favor está descrita com detalhes no podcast Retrato Narrado, da jornalista Carol Pires para a Revista Piauí. Deixar-se tratar como piada e colher os frutos disso é mais uma faceta de como usar a opinião pública a seu favor.
Quem atribui a vitória de Bolsonaro ao Superpop e CQC ou a ascensão da extrema-direita no Brasil aos atos de junho de 2013 provavelmente passou toda a década de 2000 dormindo ou está simplesmente sendo desonesto. Contudo, passados dez anos das Jornadas de Junho essa leitura persiste, sobretudo entre pessoas ligadas a uma esquerda partidária que inventou a delirante missão de vencer o fascimo nas urnas, tratando quem discordasse como… fascista.
O resultado de quatro anos de uma política que tinha como prioridade Lula Livre e, em seguida, a eleição, sem atos de rua “porque isso poderia ser apropriado pela direita” está aí. Uma esquerda tão desmobilizada que diante de uma tentativa de golpe de Estado fascista chama as pessoas para as ruas para ficar paradas ouvindo discurso de político em carro de som, segurando cartaz e gritando “sem anistia!”. Isso me lembra quando foram convocados os atos “Não vai ter golpe” contra o impeachment de Dilma Rousseff. Teve golpe. Honestamente, boto mais fé na Gaviões, na Galoucura e em Cid Gomes com a retroescavadeira, porque parecem ser as poucas pessoas que entenderam que fascismo se combate.
Ao gritar “terroristas!”, “vândalos!” e clamar pelos rigores da lei, pelo uso da força policial, corremos o risco de estar dando carta branca para que tudo isso seja revertido contra todo e qualquer manifestante. Isso pode deixar o povo do “vencer o fascismo nas urnas” dar continuidade a uma narrativa de que todo protesto de rua que não for convocado pelos partidos e entidades a eles alinhados é um protesto contra o PT. Seguir tratando os acampamentos golpistas como piada é dar tempo para que essas forças se organizem e pratiquem atos como os de 8 de janeiro – que ao meu ver são mais perigosos do que parecem, na medida que podem encorajar outros.
A história da luta antifascista mostra que ser antifascista não é uma filiação ideológica, mas uma prática. Em outras palavras: não existe governo antifascista. Trata-se de algo que pertence à sociedade. Trata-se de recusar a ideia de que uma resposta virá das urnas. Do contrário, na primeira oportunidade estarão clamando que se combata o fascismo com mais fascismo. Trata-se de um projeto político coletivo que requer levar a sério as ameaças e impedir que elas tomem corpo. É evidente que os governos progressistas possuem responsabilidades. O que me parece mais urgente hoje é impedir que a mensagem se espalhe.
Em 7 de outubro de 1934, um episódio famoso da luta antifascista no Brasil ficou conhecido como A Revoada dos Galinhas Verdes. Na ocasião oficialmente chamada de Batalha da Praça da Sé, os antifascistas brasileiros se uniram para impedir o comício de comemoração ao aniversário de dois anos do Manifesto Integralista, promovido pela AIB (Ação Integralista do Brasil). Antes disso já havia no Brasil, desde a década anterior, organizações comunistas e anarquistas voltadas para a luta antifascista, como o Comitê Antiguerreiro, liderado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), o Comitê Antifascista, articulado pelos anarquistas em torno da Federação Operária de São Paulo (FOSP) e a Frente Única Antifascista (FUA), organizada pelos trotskistas da Liga Comunista (LC) e pelos militantes do Partido Socialista Brasileiro (PSB) paulista.
O próprio Centro de Cultura Social (CCS), espaço anarquista em atividades em São Paulo há 90 anos, já havia organizado eventos contra os integralistas alguns anos antes deste confronto. Para além do enfrentamento corporal, a luta antifascista não se restringe ao combate nas ruas e inclui a difusão de ideias do movimento por meio de veículos independentes, formação política e produção de conhecimento. Há uma história de enfrentamento do fascismo. Ela não passa por tratar ameaças como piada, pelas urnas ou pelo clamor de punição estatal.
*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional