03 abril 2024

Justiça para Marielle, sementes e violência política de gênero

Investigações da Polícia Federal revelaram os mandantes do assassinato da vereadora e do seu motorista. Para cientista política, dois legados permanecem após o desfecho: a ampliação da presença de mulheres negras na política e enfrentamento da misoginia  

Investigações da Polícia Federal revelaram os mandantes do assassinato da vereadora e do seu motorista. Para cientista política, dois legados permanecem após o desfecho: a ampliação da presença de mulheres negras na política e enfrentamento da misoginia  

Sessão solene em homenagem a Marielle Franco na Câmara dos Deputados (Foto Lula Marques/ Agência Brasil)

Por Fhoutine Marie*

Após seis anos de investigações, luto e luta para que não caíssem no esquecimento, foram finalmente respondidas as perguntas: “Quem mandou matar Marielle e Anderson? E por quê?” Beneficiado pela delação premiada, Ronnie Lessa, autor dos disparos, apontou como mandantes Chiquinho e Domingos Brazão. Marielle e Anderson morreram por causa da atuação da vereadora pelo direito à moradia, o que contrariava os interesses dos irmãos e das milícias em terrenos da zona oeste do Rio. 

Este ensaio discorre sobre o assassinato de Marielle Franco em três dimensões: as reconfigurações da política nacional naquele momento, em março de 2017; a instrumentalização de sua memória e como o crime não trata apenas do silenciamento da vereadora, mas de uma questão de violência política de gênero. 


Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram mortos em um momento crucial da história recente do Brasil: o pós-golpe de 2016 e a eleição presidencial de 2018. O primeiro evento fora marcado pela misoginia e seguido por políticas liberalizantes, como a PEC do Teto de Gastos e a reforma trabalhista, o que causou maior impacto sobre pessoas pobres, em especial sobre as mulheres, periféricas e negras, conforme a própria Marielle descreve, em artigo publicado em 2017 (1).

Segundo a parlamentar, que também era mestre em sociologia, as condições de vida precárias não eram definidoras da potência criativa e política dos habitantes desses territórios. Era ali que residia, literalmente, a possibilidade de saída do caos político que se aproximava.

“Embora o avanço nos últimos anos, em conquistas de direitos retirados a toque de caixa, não se pode permitir o crescimento da ideia de que nada mudou e tudo permanece como sempre foi. Ainda que se vivam realidades nas quais se destaquem a baixa oferta de vagas nas creches e nas escolas; a procura, na primeira fase da juventude, de uma vaga no mercado de trabalho; o baixo acesso às artes, ao estudo de línguas, a ambientes que ampliem conhecimentos acumulados na história da humanidade; pode-se identificar que as periferias se marcam pela criação de múltiplas inteligências e as mulheres ocupam localização estratégica nesse processo. Portanto, ações de esquerda no século XXI precisam atuar para ampliar tal potência e construir narrativas que elevem a liberdade, a participação e o ativismo emancipatório das mulheres negras e faveladas”

O referido texto faz parte do livro Tem Saída? Ensaios Críticos Sobre o Brasil, coletânea de textos de mulheres de diferentes áreas e perspectivas, vinculadas à academia, partidos e movimentos sociais de todo o país. Gestado sob o impacto do golpe que destituiu Dilma Rousseff da Presidência, o livro combinava esforços para resistir ao crescimento do autoritarismo que se anunciava sob a forma de ações que pretendiam censurar a arte (2)e impedir a falas feministas sobre o fascismo do século XXI (3).  

O assassinato de Marielle foi como uma pá de cal sobre essas esperanças de que as coisas se reorganizassem a partir dessa energia que vinha das pessoas mais afetadas pela retomada de um projeto político ultraliberal e, em muitos momentos, fascista. O desânimo e o medo foram ampliados pela prisão de Lula, que naquele momento era o favorito nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência.  

Apavoradas, as esquerdas e setores minimamente defensores dos direitos humanos e liberdades democráticas recalcularam a rota. Ao invés de se mostrar o oposto a esse projeto, optou-se por tentar conquistar quem já havia sido seduzido e/ou radicalizado com um discurso ameno e um homem da elite que prometia guardar lugar para o homem do povo. Nem todo homem, mas sempre um homem, numa eleição onde o lugar reservado para as mulheres foi o de vice, e princípios mais uma vez foram negociados na busca de votos que nunca vieram.

Sementes

As investigações da Polícia Federal revelaram a participação do delegado Rivaldo Barbosa, ex-diretor da Divisão de Homicídios do Estado do Rio de Janeiro, no planejamento do crime e na obstrução das investigações. O delegado teria insistido para que a execução não ocorresse no trajeto do trabalho de Marielle, numa tentativa de ocultar a conotação política do crime.   

O esforço, porém, foi em vão. Imediatamente após seu assassinato, em 14 de março de 2018, Marielle se tornou um símbolo. Se por um lado manifestações públicas dentro e fora do país cobraram respostas sobre o crime e homenagearam sua memória, no outro lado do espectro político foi iniciada uma campanha de difamação e culpabilização. Falsas acusações de associação com facções criminosas chegaram a ser divulgadas nas redes sociais até por membros do Judiciário. 

Naquele ano de 2018, um ato se tornou particularmente emblemático. Foi quando os então candidatos a deputado federal Daniel Silveira e Rodrigo Amorim, ambos do extinto PSL, partido de Jair Bolsonaro enquanto candidato à Presidência, quebraram uma placa que homenageava a vereadora. Tratava-se de uma intervenção artística na qual um adesivo reproduzindo o design das placas que indicam nomeação de ruas foi colocada sobre a placa original, que dizia: Praça Marechal Floriano. O vídeo do ato viralizou nas redes sociais, compartilhado tanto por apoiadores quanto por pessoas que o repudiavam. 

‘Mesmo tendo sido brutalmente silenciada, Marielle deixou sementes na forma da participação política de mulheres negras’

Mesmo tendo sido brutalmente silenciada, Marielle deixou sementes na forma da participação política de mulheres negras, que desde o pleito de 2018 têm se engajado num processo coletivo de emancipação e transformação social, que passa pela ocupação dos espaços públicos de decisão. 

Desde 2018, a resistência de mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ tem encontrado novas formas de organização e começou a furar a bolha eleitoral, ampliando a presença nos parlamentos. Na atual legislatura a representatividade feminina na Câmara cresceu cerca de 3% em relação a 2018, ficando em 18,5%, ainda abaixo da média mundial, que é de 26,5%.

O número de candidaturas e de mulheres eleitas tem crescido lentamente após a criação de alguns dispositivos legais para tentar corrigir essa assimetria (4). Contribuíram também iniciativas da sociedade civil, como Tenda das Candidatas, Mulheres Negras Decidem e Quilombo nos Parlamentos (esse último voltado para candidaturas negras, independente do gênero). 

Em 2022, o número de deputadas estaduais passou de 163 para 190 nas Assembleias Legislativas do país. No Senado, a quantidade se manteve igual à última eleição, mantendo o número de 14 senadoras. Na Câmara, foram eleitas 91 mulheres. Dessas, 29 se declaram pretas ou pardas, mais que o dobro da quantidade eleita em 2018, quando foram eleitas apenas 13 deputadas federais negras. 

‘Foi na condição de mulher negra, mãe e periférica que Marielle lutou e construiu uma trajetória política e intelectual que hoje é honrada por suas sementes’

Com o fim das investigações, esse legado político permanece em disputa. Por isso não se pode esquecer que Marielle foi morta ao sair de um evento no qual falava com mulheres negras. Foi nessa condição, de mulher negra, mãe e periférica que ela lutou e construiu uma trajetória política e intelectual que hoje é honrada por suas sementes. 

Do mesmo modo, é preciso frisar que sua execução e a difamação que se seguiu se classificam como violência política de gênero. Criminalizada no Brasil desde 2021 por meio da lei 14.192, a violência política de gênero é apontada pela Organização das Nações Unidas como um dos principais fatores responsáveis pela baixa presença feminina na política. 

A violência política de gênero atinge candidatas, parlamentares e ativistas por meio da desinformação, interrupção da fala, desqualificação, ameaças, discursos de ódio e, no limite, em atentados contra a vida dessas mulheres. Assassinatos como o da missionária Dorothy Stang, a quilombola Mãe Bernadete, a indígena Nega Pataxó, só para citar alguns exemplos se inserem nesses extremos.   

Contudo, basta observar a atuação das mulheres parlamentares em exercício para verificar que esse tipo de violência faz parte de seus cotidianos. Seja nas manifestações de transfobia sofridas pelas deputadas Erika Hilton e Duda Salabert e em declarações de machismo e gordofobia dirigidos às parlamentares em plena Câmara dos Deputados.

O desfecho do assassinato de Marielle e Anderson não os trará de volta para suas famílias e pessoas queridas, mas pode ser o começo de um novo combate que já está em andamento. A luta para que mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ possam exercer a participação na política dentro e fora dos partidos com respeito e com suas vidas livres de perigo. 


*Fhoutine Marie é jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros O Brasil voltou? O interesse nacional e o lugar do país no mundo (Pioneira, 2024), Tem saída – Ensaios críticos sobre o Brasil (Zouk/2017) e Neoliberalismo, feminismo e contracondutas (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  

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Referências:

(1) Trecho do artigo publicado em Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, coletânea de ensaios escritos por mulheres sob organização Winnie Bueno, Joanna Burigo, Rosana Pinheiro-Machado e Esther Solano. 

(2) Referência à mostra Queermuseu, em Porto Alegre, fechada um mês antes do previsto devido aos protestos de grupos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL).

(3) A palestra da filósofa feminista Judith Butler, no Sesc Pompeia (SP) foi alvo de protestos dos mesmos grupos conservadores, que chegaram a queimar uma boneca vestida de bruxa com o rosto da intelectual.

(4) Uma das primeiras medidas de impacto aprovadas pelo Congresso Nacional para incentivar a participação feminina na política foi a Lei 12.034, de 2009. Ela assegura o percentual mínimo de 30% e máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Além disso, destina pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, bem como do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV Além disso, a emenda constitucional 111/2021 determinou que, nas eleições de 2022 a 2030, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados serão contados em dobro para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Com isso, as candidaturas femininas bateram recorde este ano, com 33,3% dos registros nas esferas federal, estadual e distrital.


Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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