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Interesse Nacional
23 março 2023

Oscar, BBB e Mayhem – o pacto da branquitude ilustrado

A pandemia não tornou as pessoas melhores, mas botou em evidência a capacidade de sobrevivência da misoginia e do racismo – bem como dos mecanismos que os sustentam. Para cientista política, a ideia de “poder nu e cru” ignora casos de pessoas brancas em posição social de destaque que cometem crimes de racismo, violência de gênero ou dão declarações públicas defendendo práticas nazistas e permanecem com suas carreiras intactas

A pandemia não tornou as pessoas melhores, mas botou em evidência a capacidade de sobrevivência da misoginia e do racismo – bem como dos mecanismos que os sustentam. Para cientista política, a ideia de “poder nu e cru” ignora casos de pessoas brancas em posição social de destaque que cometem crimes de racismo, violência de gênero ou dão declarações públicas defendendo práticas nazistas e permanecem com suas carreiras intactas

Cena do filme Tár (Foto: Reprodução)

Por Fhoutine Marie*

Há pouco mais de 3 anos a Organização Mundial de Saúde anunciou que as infecções e mortes ocasionadas pelo coronavírus haviam se espalhado por todo o mundo. Estávamos vivendo oficialmente uma pandemia. Apesar dos protestos de empresários e da insistência de governos pouco responsáveis para que as atividades econômicas não fossem interrompidas e do negacionismo de líderes políticos que insistiam no uso de medicamentos inócuos, houve quem jurasse que sairíamos daquilo melhores. Infelizmente, não foi o que aconteceu, e não faltou exemplo para intuir o erro desta suposição. A guerra que se seguiu à gripe espanhola e uma infinidade de filmes e séries que se passam em cenário pós-apocalíptico estão aí para mostrar como a humanidade em momentos de crise aguda não caminha para um futuro mais solidário nem na ficção.

Não saímos da pandemia melhores. Os debates acadêmicos e a produção cultural e de entretenimento do período pós-pandemia são indicativos de como alguns problemas sociais, como o racismo e a violência contra a mulher, semelhante aos vírus, passam por atualizações, se fortalecem e se multiplicam sob o manto da ignorância mal-intencionada e do desejo bobo de ser controverso. A esse respeito, merecem atenção três acontecimentos recentes: o cancelamento do show da banda Mayhem, os crimes ocorridos dentro da casa do Big Brother Brasil e a instrumentalização do debate de dois intelectuais negros sobre o racismo no Brasil.

Poder “nu e cru” não existe; privilégio branco existe

Falar sobre o resultado do Oscar pode estar datado para o tempo da Internet, mas de vez em quando é preciso evitar cair na tentação de aproveitar o momento das palavras-chave para recuar e pensar uma premiação não como uma notícia, mas um sintoma. Para os propósitos desta reflexão, mais importante do que quem ganhou ou quem perdeu, é como ganhou e como perdeu. 

Michelle Yeoh venceu na categoria Melhor Atriz, tornando-se a primeira mulher asiática a receber a estatueta na história da premiação. Contudo, parte da crítica especializada (e muitas pessoas sem formação nenhuma em crítica cinematográfica com acesso à Internet) julgavam pertencer a Cate Blanchett. O terceiro Oscar da carreira da atriz australiana viria  por sua atuação excelente em um filme pavoroso baseado numa ideia tosca: a de que existiria um poder límpido, imune aos atravessamentos de gênero e raça. Esse mesmo poder tornaria a pessoa que o exerce um alvo para a “sanha punitivista do cancelamento”, um argumento que basicamente reduz qualquer denúncia de abuso de poder a inveja. Ou como diria Valeska Popozuda, recalque. 

Na trama, uma regente extraordinariamente talentosa ignora totalmente o feminismo a ponto de não saber do que trata o 8 de março. A ideia é que ela não precisou de feminismo para chegar onde está, apenas talento. O problema é que essa pessoa ameaça crianças, humilha uma pessoa negra não-binária em sala de aula, só se aconselha com homens e, pelo que trama a entender (sem deixar explícito), assedia, favorece ou trava a carreira de mulheres mais jovens a ela subordinadas. Ocorre uma denúncia, baseada em vídeo e essa mulher é demitida.

Quando você pensa que o show de horrores está terminado, há mais racismo e xenofobia. A regente precisa retomar sua carreira em algum país asiático cujo nome não é mencionado, onde meios de transporte são os mais precários, com águas cheias de crocodilos, todo o pacote ilustrativo de quem teve que sair de Berlim para ir pro fim do mundo. O problema, além do racismo, é que isso não encontra paralelos na realidade. 

Primeiro porque, se uma pessoa dessa magnitude profissional fosse demitida, ela faria alguma retratação bem assessorada e seria contratada pouco tempo depois em algum lugar de destaque. Segundo que, se porventura ela tivesse que ir trabalhar como regente num país pobre, vários países pobres ṕossuem estruturas incríveis para a música clássica, é inclusive umas das características dos países colonizados esse tipo de contradição — vide os belíssimos teatros do Amazonas e do Pará e suas acústicas impecáveis. Mas numa trama fantasiosa desde sua premissa, o castigo é ir parar no Sul Global.

‘A ideia de que há uma “sanha punitivista” na exposição e cobrança de responsabilização dessas pessoas indica que não obstante brancos continuarem a ocupar posições de comando, há quem considere um absurdo que eles sejam cobrados’

Insistir numa ideia de “poder nu e cru” não é só ignorar completamente a analítica foucaultiana do poder — que não é exatamente obscura ou restrita a nichos muito específicos. É ignorar os inúmeros casos de pessoas brancas em posição social de destaque que cometem crimes de racismo, violência de gênero ou dão declarações públicas defendendo práticas nazistas e permanecem com suas carreiras intactas, no máximo, temporariamente avariadas. Para Foucault, poder é uma relação. Poder se exerce. Por isso é no mínimo total ignorância crer que o poder estaria localizado em um lugar e que teria uma natureza, que corrompe independente do gênero ou da orientação sexual, como Tár leva a crer.

Mas a ideia de que há uma “sanha punitivista” na exposição e cobrança de responsabilização dessas pessoas indica que não obstante brancos continuarem a ocupar posições de comando, há quem considere um absurdo que eles sejam cobrados. E indicam também que o termo punitivismo está sendo usado a torto e à direita por quem não faz a menor ideia do que este debate envolve e significa

Vigiar e passar pano

No último fim de semana, um debate teórico entre dois intelectuais negros rompeu a crisálida acadêmica ocupando lugar no jornal de maior circulação do país — a Folha de S.Paulo — e  posteriormente, nas redes sociais. Trata-se de algo positivo, pois a discussão a respeito da forma como opera o racismo no Brasil de saída já estabelece que este problema é um dado concreto. Não é pouca coisa considerando que o mito da democracia racial durante muito tempo contribuiu para a negação da maior das nossas desigualdades. 

Infelizmente o que o algoritmo das redes sociais entrega na minha bolha acadêmica e/ou militante é muito limitado. Por isso gosto de olhar pro que eu sei que chega na casa das pessoas: a televisão aberta. Observando a atual edição do Big Brother Brasil, a ideia que tenho é que o brasileiro branco jovem descolado e por dentro dos debates tem, sim, consciência da existência do racismo, mas não da própria branquitude. Por isso é incapaz de enxergar que segue esperando que o negro se comporte do modo que ele acha correto e segue classificando as pessoas pretas de acordo com estereótipos racistas. Sobre o primeiro ponto, recomendo a leitura do trabalho de Lia Vainer Schucman. Sobre o segundo, o livro Imagens de Controle, de Winnie Bueno. 

Voltando ao programa, ele ilustra perfeitamente como: 

  • Para além dos indicadores sociais que situação a população negra nas piores condições, quando colocadas em posição de igualdade com pessoas brancas, há um duplo padrão de comportamento aceitável para brancos e negros, sendo os limites bem mais elásticos para o primeiro grupo;
  • Não obstante, numa situação em que brancos e negros estão em pé de igualdade, brancos se sentem confortáveis para invalidar toda questão racial pontuada pessoas negras como vitimismo, apelação ou oportunismo
  • Na impossibilidade de fazê-lo essas pessoas supostamente esclarecidas irão negar o racismo daquela ação, individualizando uma questão que é coletiva, ou lançarão mão do black card: uma avó, um amigo ou uma trabalhadora doméstica o querida como prova de que não podem ser racistas, por terem alguém negro entre seus parentes ou afetos.

Das muitas situações que poderiam ser exemplos desses três pontos recorrentes, as mais emblemáticas, sem dúvida, são os casos de racismo religioso e importunação sexual ocorridos dentro da casa do BBB23, crimes praticados por cinco pessoas, todas brancas. 

No primeiro caso, em que a vítima era um homem negro, não houve nenhuma medida por parte do programa além de um discurso muito leve sobre intolerância religiosa. No segundo, em que a vítima era uma mulher branca, os dois assediadores foram expulsos do programa. A vítima recebeu — com justiça — acolhimento da produção, e dos remanescentes do programa, que decidiu que os praticantes de racismo religioso e um homem que ameaçou dar uma cotovelada na boca de uma mulher merecem chance de voltar à competição. Eles e os expulsos por importunação sexual seguem vistos pela casa e pelas torcidas como pessoas de “bom coração”. 

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-8m-misoginia-nao-e-piada-e-nao-sera-derrotada-na-base-da-gracinha-e-do-meme/

Nazismo recreativo

Quando eu era adolescente gostava de punk rock. Gostava das letras que falavam de anarquia, de lutas dos debaixo contra o sistema. Mas eu fui adolescente há 30 anos, no Amapá. A internet estava engatinhando no Brasil, eu não tinha TV por assinatura ou grana pra comprar revistas. Então fui saber que algumas bandas punk usavam símbolos nazistas “para chocar” quando já estava na faculdade. Mesmo assim não me caiu bem. Eu era capaz de entender que, na Inglaterra dos anos 1970 aquilo poderia ser uma afronta, afinal a guerra não tinha acabado há muito tempo, porém não, não dava, ainda bem que acabou isso. Não isso de guerra, isso de usar o símbolo de uma política de extermínio como se fosse bacana.

Mas não acabou e não foi só porque alguns músicos de bandas que eu idolatrava há 30 anos se revelaram racistas e reacionários. Mas porque homens da minha idade continuam achando bonito coisas que aos 19 eu já olhava e dizia: “quê?????”. 

‘Parece meio óbvio, depois de tanta insistência de que racismo não é piada, a gente tenha que voltar a lidar com os arautos da liberdade de opressão pra dizer que nazismo também não é’

Parece meio óbvio, depois de tanta insistência de que racismo não é piada, a gente tenha que voltar a lidar com os arautos da liberdade de opressão pra dizer que nazismo também não é. Mas precisa, porque homens brancos de 40 anos não estão reivindicando o direito de continuar ouvindo uma banda nazista, mas sim de que seus gostos e opiniões permaneçam inquestionáveis. Nada contra minorias, mas vocês precisam prestar atenção no modo com que falam comigo.

Cheguei a ler que o politicamente correto e a cultura do cancelamento estariam acabando com o mundo. Eu acho engraçado porque, se eu fosse chutar, diria que é a concentração de renda, a indústria das armas, o esgotamento dos recursos naturais ou aquecimento global. 

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-fascismo-nao-e-piada/

Pacto  narcísico

De uns anos pra cá, discussões sobre gênero e raça passaram a ser chamadas de “pautas identitárias”, gerando saltos ornamentais discursivos de que estes dariam origem a novos fascismos. Quando o fascismo basicamente é obra de homens brancos e a busca por identidade é algo essencialmente de direita.

O homem branco cisgênero, heterossexual, para quem está destinada a prerrogativa de chefiar a família e coordenar a esfera pública, tudo isso que a extrema-direita diz estar em declínio, é uma identidade. A diferença é que essa identidade se apresenta como algo neutro e universal. Um homem branco cisgênero heterossexual é apenas um ser humano. 

‘Classificar algo como identitário é a maneira de quem se supõe neutro e universal de se dar o poder decidir como grupos em desvantagem social devem conduzir suas lutas e decidir quais demandas são justas e aceitáveis’

Quanto mais perto alguém estiver disso, mais ”humana” essa pessoa será; quando mais distante, mais desumanizado e deslegitimado. Por esse motivo, a reação às discussões sobre gênero e racismo sempre é colocada como uma reação do bom senso “nu e cru”, a expressão da pura neutralidade diante de uma arena permeada de identitários. Classificar algo como identitário é a maneira de quem se supõe neutro e universal de se dar o poder decidir como grupos em desvantagem social devem conduzir suas lutas e decidir quais demandas são justas e aceitáveis. 

Em Pacto da Branquitude (2020), Cida Bento mostra que durante o processo de colonização, a branquitude se constituiu usando os africanos negros como contraste. A natureza desigual dessa relação permitiu que os brancos definissem e disseminassem os significados de si próprios e do outro. Porém, hoje no Brasil, o branco desapareceu desse contexto, como se não fizesse parte deste passado e não trouxesse dele nenhuma herança.

Um mundo onde as posições de comando e de profissões mais bem remuneradas exercidas predominantemente por brancos, num país de maioria negra, só funciona por causa de um pacto não verbal entre pessoas brancas que visa manter seus privilégios. Qualquer pessoa negra inserida nesse meio estará sujeita aos julgamentos e ser classificado como arrogante, que no fim das contas, serve pra designar o negro que “não sabe seu lugar”.    

No fundo o que está em jogo, nesse caso, é como a branquitude quer pegar o bonde andando, sentar na janelinha e determinar o trajeto. Mas desde Rosa Parks (e muito antes dela), cada dia que passa, tem menos gente disposta a ceder lugar.


*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-documentarios-sobre-dez-anos-da-boate-kiss-convidam-a-pensar-sobre-a-diferenca-entre-punicao-e-justica/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

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