Golpe militar desestabiliza parceiro de potencial estratégico no Atlântico Sul
É interesse do Brasil contribuir para a estabilidade política desta nação amiga, com quem partilha história e língua comuns, de forma a conservar próximo um aliado estratégico na preservação do Atlântico Sul como zona de paz e livre de armas nucleares

A instabilidade política da África ocidental atingiu há dias a pequena Guiné-Bissau, país de língua oficial portuguesa, um dos mais pobres do mundo, parceiro do Brasil na CPLP e atual presidente pro tempore da organização lusófona. Uma grande comunidade guineense, principalmente de jovens, vive em território brasileiro, ao se beneficiar de uma histórica cooperação educacional e universitária.
As eleições presidenciais e legislativas realizadas em 23 de novembro terminaram sem a proclamação de resultados, uma vez que um grupo de militares, após reunião com o presidente cessante, general Umaro Sissoco Embaló, anunciou a tomada de poder. O ex-presidente, que concorreu à reeleição e teria sido derrotado nas urnas, encontra-se no exterior, provavelmente no Senegal.
O autoproclamado presidente da “República de Transição”, major-general Horta N´ta-a, nomeou imediatamente um novo gabinete, que incluiu aliados importantes do ex-presidente, como Ilídio Vieira Té, que conservou o cargo de ministro das Finanças e tornou-se primeiro-ministro (o sistema é semipresidencialista, no modelo de Portugal).
‘O Alto Comando Militar substituiu dispositivos da Constituição por uma Carta Política da Transição, a qual estabelece, entre outras medidas, a realização de eleições presidenciais e legislativas dentro de um ano’
O Alto Comando Militar substituiu dispositivos da Constituição por uma Carta Política da Transição, a qual estabelece, entre outras medidas, a realização de eleições presidenciais e legislativas dentro de um ano. Os atuais presidente e primeiro-ministro da transição não poderiam se candidatar naquela ocasião. Foi ainda dissolvido o Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público e designado como novo Procurador-Geral outro aliado do general Embaló, o ex-presidente do Tribunal de Contas, Amadu Baldé.
O principal candidato da oposição, Fernando Costa Dias, que reivindica a vitória com base na apuração preliminar dos órgãos eleitorais regionais, denunciou a decisão do secretariado da Comissão Nacional de Eleições de não proclamar o resultado, sob a alegação de que “homens armados” teriam confiscado equipamentos e atas de votação. Fernando Dias, candidato por duas amplas coligações de partidos, API-Cabaz Grande e PAI-Terra Ranka, recebeu oferta de asilo da Nigéria, mas ainda não aceitou.
Entretanto, o mais tradicional adversário do general-presidente Embaló, o deputado cassado Domingos Simões Pereira, líder do histórico partido da independência (PAIG), que já havia sido impedido de concorrer às eleições pela justiça, foi agora preso pelo governo militar sem qualquer acusação formal.
‘Associações de direitos humanos protestam contra o que denominam autogolpe ou “inventona” de golpe, que teria sido orquestrada pelo próprio presidente Embaló, tendo já sido iniciado um movimento que defende sua volta ao poder’
Associações de direitos humanos protestam contra o que denominam autogolpe ou “inventona” de golpe, que teria sido orquestrada pelo próprio presidente Embaló, tendo já sido iniciado um movimento que defende sua volta ao poder. Uma associação de jovens de oposição defende, porém, que o candidato Fernando Dias seja empossado “na base da diplomacia”, uma vez que a comunidade internacional teria conhecimento dos verdadeiros resultados do pleito por meio dos observadores que testemunharam o processo.
Reação internacional
Logo no dia 26/11, o Brasil expressou em nota oficial sua preocupação com a “suspensão arbitrária das eleições” e chamou as forças políticas da Guiné-Bissau ao “diálogo pacífico” com vistas ao “retorno à ordem constitucional”.
No início da crise, o chefe da missão de observação eleitoral da União Africana (UA) e ex-presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, pedira a publicação imediata dos resultados, afirmando que a votação fora pacífica e transparente, não havendo motivos para atraso. Ao esclarecer que a missão da UA não tinha competência para proclamar vencedores, defendeu a transparência como elemento essencial para garantir a confiança dos cidadãos e da comunidade internacional nas instituições.
‘Segundo os ministros da CPLP, a interrupção do processo eleitoral constituiu uma “grave violação aos princípios democráticos e à vontade soberana do povo” e “compromete a estabilidade política e a ordem constitucional”’
Em 5/12, o Conselho de Ministros da CPLP, em reunião extraordinária, recomendou a suspensão temporária da Guiné-Bissau da organização e a transferência da presidência pro tempore para outro Estado-Membro, decisão que deverá ser referendada oportunamente pelos Chefes de Estado e de Governo. Segundo os ministros da CPLP, a interrupção do processo eleitoral constituiu uma “grave violação aos princípios democráticos e à vontade soberana do povo” e “compromete a estabilidade política e a ordem constitucional”. Ao exigir a “libertação imediata e incondicional de todos os detidos”, os ministros decidiram também enviar uma missão de bons ofícios ao país.
A CEDEAO, instituição sub-regional da África Ocidental vinculada à União Africana, examinará a situação da Guiné-Bissau na próxima Cúpula de chefes de Estado e de Governo, a realizar-se em 14 de dezembro. (Antes disso, porém, teve de lidar com outra tentativa de golpe militar no vizinho Benin, desta vez fracassada, graças ao apoio militar da Nigéria, a maior economia regional).
Desafios econômicos e estratégicos
Com menos de 2 milhões de habitantes, urgências de nutrição, saúde, infraestrutura e educação, a Guiné-Bissau depende da exportação da castanha de caju in natura para a Ásia de forma a gerar divisas e importar quase tudo o que consome, principalmente da União Europeia e dos vizinhos Senegal e Guiné.
As remessas dos imigrantes são outra importante fonte de ingressos, contribuindo para equilibrar minimamente a balança de pagamentos, apesar de representar deletéria fuga de cérebros e da mão-de- obra mais qualificada. O pagamento dos serviços da volumosa dívida externa sufoca os investimentos, demanda a sobrevalorização da moeda e impõe a restrição fiscal, em país sob receituário clássico do Fundo Monetário Internacional desde o acordo firmado em 2023 pelo governo Embaló.
As reservas ainda inexploradas de fosfato, petróleo e bauxita encontram-se sob prospecção por empresas russas e chinesas, que se aproximaram mais recentemente do país diante da decepção com parceiros ocidentais. Na pesca em alto mar, setor de grande potencial, a Europa enfrenta cada vez maior competição de navios de China, Índia, Turquia e Coreia do Sul, entre outros.
‘A diplomacia brasileira tem recorrido à cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento como instrumento para combate à vulnerabilidade do país à pobreza e à violência política’
Nesse ambiente de profunda fragilidade econômica e social, a diplomacia brasileira tem recorrido à cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento como instrumento para combate à vulnerabilidade do país à pobreza e à violência política, com projetos em andamento em diversas áreas.
Entretanto, é necessário ousar mais. A assistência técnica e o fornecimento de máquinas agrícolas simples podem estimular o cultivo de arroz irrigado, a produção de carne, leite, ovos e hortícolas em estrutura familiar, reforçando a segurança alimentar e empoderando as mulheres, base de uma sociedade ainda majoritariamente rural e tradicional. No campo energético, é possível ampliar o plantio, controlar as pragas e transferir a tecnologia de aproveitamento sustentável da biomassa de cana e milho, culturas locais capazes de contribuir para a redução do uso de combustíveis fósseis importados.
‘Sem uma profunda transformação da estrutura produtiva e maior distribuição da riqueza e da renda, a Guiné-Bissau parece infelizmente fadada a enfrentar retrocessos democráticos frequentes’
Sem uma profunda transformação da estrutura produtiva e maior distribuição da riqueza e da renda, a Guiné-Bissau, a exemplo do que ocorre em outros países de independência recente na região, parece infelizmente fadada a enfrentar retrocessos democráticos frequentes.
É interesse do Brasil contribuir para a estabilidade política desta nação amiga, com quem partilha história e língua comuns, de forma a conservar próximo um aliado estratégico na preservação do Atlântico Sul como zona de paz e livre de armas nucleares. Tal imperativo torna-se ainda mais crucial no contexto de crescente ameaça de uso da força em águas internacionais e de crise de legitimidade das organizações multilaterais, incluindo as Nações Unidas e a União Africana.
Claudia de Borba Maciel foi Embaixadora do Brasil na Guiné-Bissau em 2022-2025. Atualmente é Cônsul-Geral do Brasil em Zurique e no Principado do Liechtenstein. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.
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