16 agosto 2024

Itamaraty sob pressão

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas

Diplomatas protestam em defesa da valorização dos funcionários do Serviço Exterior Brasileiro (Foto: ADB/Instagram)

Está muito difícil para o Ministério das Relações Exteriores desempenhar suas competências constitucionais de assessorar o presidente da República e de ser a voz do Brasil no cenário internacional.

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação, a facilidade dos contatos entre chefes de Estado com conversas e encontros frequentes. Nos últimos 15 anos, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa e a atração de lealdades ao presidente, ao ministro e às ideias por eles defendidas. Exemplos recentes desse esvaziamento político são a retirada da Camex, da Apex, a dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro do exterior. 

‘A credibilidade do Itamaraty e da solidez da política externa na defesa do interesse nacional ficaram afetadas por pronunciamentos presidenciais neste e no governo anterior’

A credibilidade do Itamaraty e da solidez da política externa na defesa do interesse nacional ficaram afetadas por pronunciamentos presidenciais neste e no governo anterior. No governo atual, as posições oficiais expressas pela chancelaria em relação à guerra na Ucrânia, a Gaza e sobre a eleição na Venezuela foram contraditadas por manifestações presidenciais.

A duplicidade de interlocutores com o presidente da República entre o Itamaraty e a assessoria internacional da presidência, estão criando dissonâncias sobre assuntos que colocam em questão o interesse nacional. O caso mais recente é a vocalização da posição oficial do governo brasileiro no tocante à Venezuela ou o silêncio quanto às violações da democracia e dos direitos humanos. O último exemplo, nesta semana, foi a opinião do assessor internacional da presidência sobre a realização de novas eleições na Venezuela, em vista da contestação dos resultados pela oposição, logo contraditada pelo Itamaraty ao divulgar que a posição do governo não havia mudado e que o Brasil continuava no aguardo da divulgação das atas. Sem mencionar a nota do PT aceitando o resultado das urnas e se congratulando com Maduro pela eleição.

‘As interferências de outros membros do governo nos assuntos de competência do MRE se multiplicam’

As interferências de outros membros do governo nos assuntos de competência do MRE se multiplicam. A disputa pela liderança da COP30 entre o Itamaraty, que normalmente deveria assumir esse papel, e o Ministério do Meio Ambiente e, nesta semana, o encontro entre o chefe da Casa Civil e o embaixador da China para discutir a vinda ao Brasil do presidente chines Xi Jinping são exemplos de fatos que contribuem para o esvaziamento da Chancelaria. A assessoria internacional do Planalto prevaleceu sobre o Itamaraty no tocante à ampliação do Brics e o Ministério do Planejamento discute e propõe políticas sobre a integração física regional. 

É evidente a perda de espaço do Itamaraty nas secretarias internacionais dos ministérios, a descoordenada ação subnacional, a marginalização dos embaixadores nas reuniões em nível de chefe de Estado, a perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras).

‘O esvaziamento do Itamaraty vem ao mesmo tempo em que aumenta a insatisfação dos diplomatas com os salários e com o fluxo das promoções’

O esvaziamento do Itamaraty vem ao mesmo tempo em que aumenta a insatisfação dos diplomatas com os salários e com o fluxo das promoções. A criação de um sindicato dos diplomatas, nos últimos anos, criou um fórum de coordenação para a defesa dos interesses burocráticos dos funcionários diplomáticos como nunca houve no passado. Em assembleia nesta semana, o sindicato votou a favor de indicativo de greve, com estado de mobilização permanente pela primeira vez na história do Palácio do Itamaraty. A principal motivação para o movimento foi uma contraproposta de reajuste salarial apresentada pelo Ministério da Gestão e Inovação (MGI), considerada insuficiente pelos diplomatas. A categoria considerou a oferta insuficiente para compensar as perdas inflacionárias, especialmente para diplomatas nas classes iniciais e intermediárias. 

Diferentemente de outras carreiras públicas, nas quais os servidores podem chegar ao topo em pouco mais de dez anos, diplomatas costumam levar até 30 anos para alcançar o nível máximo. Com o aumento da idade de aposentadoria para 75 anos e uma estrutura engessada, com vagas limitadas por classe, um número significativo de servidores fica estagnado nas classes iniciais ou intermediárias. A decisão pela greve reflete a frustração das gerações mais recentes do Itamaraty com a falta de perspectivas de desenvolvimento profissional, “de valorização e de reconhecimento da importância da carreira”, segundo a entidade, “em um momento que o Brasil retoma as ambições na política externa, sediando importantes eventos como as cúpulas do G20, do Brics e a COP30”. Canções de protesto e carros de som em frente ao Itamaraty colocam as reivindicações no mesmo nível das demais carreiras da burocracia na Esplanada dos Ministérios.

‘O Itamaraty tem de ser revigorado e deveria recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e de sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior’

Ao contrário do que está acontecendo agora, o Itamaraty tem de ser revigorado – inclusive para melhor defender os interesses dos funcionários diplomáticos – e deveria recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e de sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior.Como instituição de Estado, o Ministério das Relações Exteriores deve ser preservado para a defesa do interesse nacional acima de princípios ideológicos ou partidários. Os governos de turno não podem improvisar na política externa.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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