Muito mais que uma querela – Fascismo contemporâneo mostra os dentes no novo governo Trump
Presidente dos EUA e bilionários da tecnologia deixaram evidente por meio de ações concretas que o racismo, a misoginia e transfobia não são apenas um meio, mas um fim na composição desta forma de poder patriarcal. Neste contexto, questões de gênero e raça precisam ser protagonistas da reação a uma política que quer a nossa morte

Em três semanas de governo, Donald Trump já deixou claro que a perseguição às minorias políticas – mulheres, pessoas LGBTQIAP e pessoas racializadas não era apenas retórica para atrair o voto cristão conservador ou instrumentalizar o ressentimento do homem branco cisgênero e heterossexual das políticas de inclusão e diversidade. É isso, mas é muito mais. Trata-se da consolidação do fascismo contemporâneo, que tal como no século passado, recruta e se expressa por meio da masculinidade violenta e do racismo.
Há mais de 40 anos o filósofo francês Michel Foucault já havia aventado que discurso é prática. Por mais numerosos que sejam os adeptos da ideia da “cortina de fumaça”, tanto o novo presidente estadunidense quanto seus “parças”, os bilionários da tecnologia, já deixaram evidente por meio de ações concretas que o racismo, a misoginia e transfobia não são apenas um meio, mas um fim na composição desta forma de poder patriarcal.
‘O patriarcado do século 21 cria novas formas de autoritarismo global, ao mesmo tempo que perpetuam antigas desigualdades’
Como sintetiza Joanna Burigo, autora de Patriarcado Gênero Feminismo, sob o argumento de defesa da meritocracia e da liberdade de expressão, o patriarcado do século 21 cria novas formas de autoritarismo global, ao mesmo tempo que perpetuam antigas desigualdades.
As primeira ações deste novo governo Trump seguem e ampliam o que já tem sido implementado internamente pelas big techs: maior tolerância para a divulgação de discurso de ódio e eliminação de programas internos Diversidade, Equidade e Inclusão, que visavam tornar os ambientes de trabalho dessas plataformas mais diversos.
Mark Zuckerberg, CEO da Meta, declarou recentemente que sentia falta de “energia masculina” no ambiente corporativo. Elon Musk, dono do X, antigo Twitter, foi além e mandou um salve emocionado para a extrema-direita. O próprio Trump atribuiu um acidente aéreo às políticas de diversidade. Segundo ele, há algumas profissões que requerem “um nível mais alto de inteligência”.
‘A reação conservadora aos pequenos avanços obtidos por minorias acontece pouco após a internet ter feito balançar as estruturas do patriarcado branco cis hétero normativo’
Essa reação conservadora aos pequenos avanços obtidos pelos movimentos de minorias acontece poucos anos após a internet e as redes sociais terem feito balançar, (mas não ruir, nem mesmo rachar) as estruturas do patriarcado branco cis hétero normativo. Foi por meio das redes sociais que se articularam movimentos como #MeToo, que se criaram debates, convocaram manifestações e disseminaram conhecimento sobre feminismo.
A novidade neste novo mandato de Trump talvez seja a ausência total de pudor em escancarar o desejo de ordem social em homens poderosos jamais sejam questionados e/ou expostos.
‘Infelizmente, a esquerda e os setores progressistas prosseguirão em coro num discurso vazio de defesa da democracia e das instituições’
Mas, infelizmente, não será dessa vez que a esquerda, os setores progressistas ou minimamente comprometidos com a manutenção das liberdades e instituições democráticas construídas no pós-Segunda Guerra irão dar o braço a torcer. Eles prosseguirão em coro num discurso vazio de defesa da democracia e das instituições, o que não é irrelevante de forma alguma, mas bem menos contagiante e popular que o slogan “Deus, pátria e família”.
Parafraseando Simone de Beauvoir, se a questão feminina parece tão absurda, é porque a arrogância masculina fez dela uma querela. Por isso, formadores de opinião seguirão insistindo em “guerras culturais”, que a economia é a única pauta verdadeira, que todas as outras ligadas a minorias são “cortina de fumaça”. Dirão que o importante é a classe, como se mulheres, negros, indígenas e pessoas LGBTQIAP não fossem parte dessa imensa e difusa classe que é o precariado.
Pessoas supostamente progressistas, fazendo coro com a mais atual gramática direitista responsabilizarão “identitários” e “cultura woke” pela vitória da extrema-direita no mundo – ainda que as minorias não sejam beneficiadas por este projeto político.
Mas eu insisto em apresentar outro ponto de vista. Primeiro, porque faço parte de mais de um desses grupos subalternizados e temo pelo que está por vir. Insisto também porque quero deixar registrado que eu avisei.
Cruzadas anti-gênero por toda parte
Questionar o gênero que lhe foi atribuído no nascimento, as uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo e a existência de outros arranjos familiares que não a família heterosexual com filhos são temas abarcados por este espantalho semântico que se convencionou chamar “ideologia de gênero”. A expressão foi criada nos anos 1990 pela Igreja Católica e abraçada na década seguinte pelo Papa Bento XVI e pelo seu sucessor, Francisco I.
Para o catolicismo, o gênero é entendido como diabólico. Debater o tema seria abrir oportunidade para cair em tentação. O problema é que o dogma não se restringe aos fieis, uma vez que o entendimento do Vaticano sobre o tema engendra políticas para pressionar governos e para impedir que essa discussão seja feita em lugares que também deveriam ser laicos, como escolas e universidades.
‘As eleições nacionais se tornaram palco dessa cruzada anti-gênero em diversos países. Não se trata apenas de uma defesa da família heteronormativa, mas de uma defesa da pureza racial e étnica da nação’
Conforme explica a filósofa Judith Butler em Quem tem medo do gênero?, as eleições nacionais se tornaram palco dessa cruzada anti-gênero em diversos países, como Brasil, Costa Rica, Colômbia, Equador, França, Reino Unido, Escócia, Suíça, Espanha, Turquia, Itália, entre outros. A oposição ao gênero como ameaça à família muitas vezes aparece nesses discursos ligada aos imigrantes. Não se trata apenas de uma defesa da família heteronormativa, mas de uma defesa da pureza racial e étnica da nação.
Para Butler, o ataque à “cultura woke” seria animado por uma fantasia psicossocial de perda das ordem social patriarcal, heteronormativa e supremacista branca. Isso seria considerado equivalente à morte social pelos grupos que se privilegiam desta ordem.
Deste modo, as pessoas que mais sofrem com violência física, psicológica e pobreza são transfiguradas em forças demoníacas e perigosas que devem ser combatidas a todo custo, já sua simples existência é uma ameaça ao mundo conforme está posto.
Nada de muito novo no front
Quando digo que a questão de gênero é cerne do problema político contemporâneo – a emergência de um fascismo que se acopla a discursos e instituições democráticas – não estou me referindo apenas às mulheres (cis e trans), mas ao modelo de masculinidade violenta que é um elemento constitutivo do fascismo.
Conforme explica a pesquisadora Samantha Lodi, o fascismo se ancora na ideia de um inimigo que precisa ser combatido e se propaga amarrado em alguma crise real ou criada, que geram medo e incerteza. É evocado um nacionalismo de base chauvinista, colocando a pátria acima de tudo e de todos, convidando à atitude bélica e militarizada para defender a nação. O tipo de “argumento” empregado é uma retórica agressiva, com intuito de causar agitação e violência.
‘Os fascismos contemporâneos retomam a ideia de defesa da “família tradicional”, na qual a mulher é colocada num lugar de subalternidade e dependência financeira’
Os fascismos contemporâneos retomam a ideia de defesa da “família tradicional”, na qual a mulher é colocada num lugar de subalternidade e dependência financeira. Essa tática já fazia parte do fascismo italiano de Benito Mussolini, conforme observou a anarquista Maria Lacerda em Clero e Fascismo: horda de embrutecedores, publicado pela primeira vez em 1934. Segundo a autora, o desprezo pelas mulheres é inerente a essa ideologia, cujo oposto complementar é justamente a valorização de um modelo de masculinidade “forte”.
A ideia de que o papel da mulher é produzir famílias numerosas se acopla à restrição do aborto e da defesa da passividade feminina. O lugar da mulher no fascismo é o da submissão, do controle dos seus atos e corpos pelo Estado, especialmente controle dos direitos reprodutivos. Essa perspectiva é coerente com a idealização de uma suposta “energia masculina” e com a ideia de que minorias não seriam dotadas da tal “inteligência superior”, mas vai além da fala de políticos e bilionários.
Ela está no empenho de eliminar o direito ao aborto, na restrição do controle de natalidade e nas campanhas natalistas realidades em países em que a população branca está em decréscimo e conservadores se veem ameaçados pela presença de imigrantes (latinos no caso da Europa, muçulmanos no caso da Europa).
‘É preciso seguir produzindo pessoas, tirar delas a autonomia sobre ter ou não ter filhos, controlando a informação e o acesso aos meios materiais, mantendo essas pessoas em posição de fragilidade e dependência’
É preciso seguir produzindo pessoas, ainda que o custo seja retroceder nos avanços de mulheres, pessoas trans e LGBTQIA para que o casamento seja apenas o casamento heterossexual reprodutivo, tirar das pessoas com capacidade de gestar a autonomia sobre ter ou não ter filhos, controlando a informação e o acesso aos meios materiais, mantendo essas pessoas em posição de fragilidade e dependência.
Não se trata simplesmente de uma política de branqueamento, porque ela não se restringe à Europa e aos Estados Unidos, mas atinge toda a América Latina e países em desenvolvimento como meio de assegurar o trabalho gratuito ou mal remunerado fornecido pelas mulheres: o cuidado crianças, idosos, portadores de necessidades especiais, limpeza, preparação de alimentos, entre outros trabalhos que tornam todos os outros possíveis.
Cersei Lannister nunca errou
Nada disso é novo. Entretanto a política institucional, refém dos processos eleitorais, segue optando por um discurso conciliador que tolera os avanços da direita religiosa na esperança de conquistar o voto daqueles seduzidos pelo canto das sereias da extrema-direita.
A estratégia de abrir mão dos direitos dessas minorias tem limites, assim como a aposta em lideranças desgastadas que em alguma medida ainda conseguem emular a imagem de homens fortes. Neste contexto não é difícil entender por que hoje o movimento de maior expressão de jovens de esquerda busca inspiração no stalinismo.
‘Precisamos parar com esse discurso ingênuo de “hackear” o sistema e dizer que humor é ferramenta de poder’
De tudo que foi exposto até aqui creio que é possível obter duas conclusões. A primeira é que precisamos parar com esse discurso ingênuo de “hackear” o sistema, dizer que humor é ferramenta de poder. Como diria a inesquecível personagem Cersei Lannister, de Game of Thrones, “poder é poder”. A menos que estejamos nos referindo a atos de sabotagem, o máximo que dá pra fazer sem fazer coro com os agentes da ordem é desenvolver estratégias de comunicação segura que apaguem rastros dos que são mais vulneráveis perante ao Estado e capital. Todo o resto é reformismo e redução de danos.
A segunda é que, se não reconhecermos o cerne do problema, não será possível traçar estratégias para conter o avanço do fascismo no mundo. Para isso as questões de gênero e raça não podem mais ser tratadas como querelas e sim, ser protagonistas da reação a uma política que quer a nossa morte.
Na primeira semana de fevereiro, milhares de pessoas marcharam sobre Buenos Aires em reação às declarações do presidente Javier Milei contrárias ao feminismo, políticas em favor da diversidade sexual e identidade de gênero. O protesto “Orgulho Antifascista e Antirracista” foi replicado em várias cidades do país e teve apoio de partidos, entidades sindicais e outros grupos da sociedade civil.
Que seja apenas o começo.
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
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