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Interesse Nacional
07 janeiro 2023

Na sombra do rei Pelé, seu negativo: Garrincha

Astros de origens semelhantes, os dois jogadores tiveram destinos diametralmente opostos, explica o antropólogo Christian Bromberger. Enquanto Pelé foi coroado em vida e homenageado na morte, Garrincha viveu a decadência e foi enterrado sem consagração

Astros de origens semelhantes, os dois jogadores tiveram destinos diametralmente opostos, explica o antropólogo Christian Bromberger. Enquanto Pelé foi coroado em vida e homenageado na morte, Garrincha viveu a decadência e foi enterrado sem consagração

Pelé e Garrincha juntos em ensaio fotográfico (Reprodução)

Por Christian Bromberger*

Dois jogadores brasileiros disputaram o estrelato na década de 1960: Pelé e Garrincha. Os destinos de um e de outro eram diametralmente opostos.

O “Rei Pelé” foi coroado em vida e após sua morte, tendo o Brasil decretado oficialmente três dias de luto nacional  com o anúncio de sua morte em 29 de dezembro.

Garrincha (1933-1983) foi enterrado em um obscuro cemitério no subúrbio do Rio.

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Origens semelhantes

Ambos tiveram, desde o início, as mesmas desvantagens. A família de Garrincha, descendente de índios, morava em Pau Grande, zona sul do Rio. Seu pai fazia biscates: varredor, vigia noturno, operário. Pelé, sete anos mais novo, também nasceu em condições miseráveis, no estado de Minas Gerais, zona norte do Rio; foi até engraxate antes de ser apresentado ao clube santista.

Para ambos, as peladas, essas festas praticadas descalças em gramados improvisados, foram os primeiros contatos com o futebol. Ambos também eram conhecidos por seus apelidos: Edson Arantes do Nascimento era apelidado de Pelé (quando criança pronunciava o nome do goleiro do time local, um certo Bilé, “Pilé”, que mais tarde se tornou Pelé); Manoel Francisco dos Santos foi, entretanto, apelidado pela irmã de Garrincha (nome de um passarinho que preferia morrer a ser apanhado).

Das condições marginais de vida, Garrincha e Pelé sem dúvida mantiveram a mesma postura à margem das atitudes burguesas: a paternidade ilegítima somada a três casamentos com grande número de filhos: sete filhos oficiais de Pelé, cinco da primeira esposa para Garrincha. Mas o paralelo termina aí.

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Tempo da glória

Tudo separa o futuro de Pelé e Garrincha. Pelé representaria o ápice do sucesso esportivo e financeiro e se firmaria como o símbolo máximo da meritocracia, a encarnação do self-made man que começou do nada e chegou ao topo antes de ser idolatrado por todo o planeta até o fim da vida, aos 82 anos; Garrincha, depois de façanhas que suscitaram imenso entusiasmo, experimentou decadência física, social e econômica, e morreu de cirrose hepática antes de completar meio século.

É verdade que os dois jogadores não tinham exatamente os mesmos ativos em suas carteiras. O pai de Pelé (Dondinho) foi jogador de futebol, cuja carreira foi comprometida por lesões; estava condenado a jogar em times pequenos, mas conhecia os procedimentos de recrutamento em clubes profissionais. Pelé alimentou o sonho de conseguir o que seu pai não conseguiu? Belo tema de meditação para a psicanálise. Garrincha, por sua vez, não teve o mesmo apoio; notado pelo Botafogo, prestigioso clube carioca, enquanto jogava em um pequeno time local, ele só ingressaria neste famoso clube um ano após as primeiras convocações. A tradição relata que ele voltava de partidas que acabara de disputar no mesmo caminhão da torcida.

Fisicamente, tudo apunha Pelé e Garrincha. O primeiro era musculoso e mostrava relaxamento extraordinário; o segundo nasceu com uma coluna que não era reta; suas pernas estavam arqueadas, a perna direita seria 6 cm mais curta que a perna esquerda, seus joelhos estavam, segundo os médicos, “deformados”. Dando continuidade às carreiras nacionais e internacionais, Pelé e Garrincha participaram juntos das Copas do Mundo de 1958 e 1962, ambas vencidas pelo Brasil.

Ambos se consagraram como os melhores jogadores do mundo, empatados. Pelé foi exaltado em triunfo após a Copa do Mundo na Suécia em 1958, quando, com apenas 17 anos, marcou 6 gols –um nas quartas de final, três nas semifinais e dois na final. Garrincha marcou 4 gols em 1962, Copa do Mundo em que Pelé, lesionado, só participou de dois jogos. Esta foi a apoteose de Garrincha, cujas façanhas foram celebradas em todo o mundo.

Os estilos das duas estrelas eram muito diferentes. Garrincha praticava sempre o mesmo drible, para a direita, depois parava. Embora seus oponentes conhecessem esse hábito, eram ridicularizados a cada vez, o que provocava risos nos espectadores. Pudemos discernir nessa prática enigmática, “um amor do jogo pelo jogo”. Pelé, ao contrário, era um gênio da improvisação; fluidez, mudanças de ritmo, força, uma notável visão periférica do jogo caracterizaram seu estilo. Um chute de mais de 60 metros, com o goleiro adversário avançado, foi uma de suas façanhas durante a Copa do Mundo de 1970, que consolidou sua condição de maior astro da história do futebol: tornou-se, então, o único jogador a vencer três vezes a competição suprema, feito inédito até hoje.

O herói perdido…

Em, Garrincha, de 37 anos, já estava muito distante da seleção, não sendo convocado desde a Copa do Mundo de 1966, disputada (e tristemente perdida, tendo o Brasil sido eliminado na primeira fase) na Inglaterra.

Na verdade, ele já estava em decadência havia muito tempo. Seu clube, o Botafogo, deixou de ser protagonista; a estrela envelhecida foi vendida em 1966 para o Corinthians de São Paulo, mas suas pernas e joelhos, suturados regularmente para reduzir a dor, não permitiam mais que ele jogasse no mais alto nível.

A sua vida desportiva foi, a partir de então, um obscuro rebaixamento. Ele se juntou a times cada vez mais medíocres da segunda e terceira Divisões. Enquanto isso, seu caso com a cantora Elza Soares, ainda casado com sua segunda esposa, desencadeia um escândalo; exilado na Itália para fugir da justiça, Garrincha continua ocioso (nenhum clube se interessa por ele).

De volta ao Brasil, Garrincha e Elza Soares se separam. O ex-futebolista, cada vez mais assolado pelo álcool e desvendando os dramas da sua vida privada, tem de acolher os 5 filhos que teve da primeira mulher, falecida.

O alcoolismo leva a internações em 1978, 1979 e 1980, internações onde Garrincha é identificado como Manuel da Silva “uma variante próxima a José da Silva que é o nome por excelência do brasileiro miserável”, observam os sociólogos José Sergio Leite Lopes e Sylvain Maresca.

Garrincha morreu em 1983. Seu caixão foi exposto no Maracanã, grande estádio do Rio (Botafogo é um clube carioca, Garrincha era carioca) e depois enterrado em Pau Grande, no cemitério popular da cidade, enquanto seu amigo de longa data, Nelson Santos, outro grande jogador de futebol, teria preferido um enterro em um cemitério mais chique. Mas a popularidade de Garrincha combinava melhor com o cemitério de Pau Grande. Uma grande multidão compareceu ao seu funeral. Detalhes repugnantes desse enterro: o fosso para acomodar o caixão era muito pequeno e não havia terra para cobri-lo. O enterro de Garrincha foi um reflexo de sua vida: contou com a presença de milhares de simpatizantes que sentiram um carinho especial por ele… E foi também um desastre memorável.

… e o profissional higienizado

A indisciplina de Garrincha se contrapõe ao hiperprofissionalismo de Pelé. A partir de 1958, após a vitória na Copa do Mundo, Pelé conseguiu de seu clube, o Santos, que doasse metade dos direitos das partidas de exibição no exterior. A carreira do “rei” combinaria façanhas esportivas e sucesso financeiro e promocional. Pelé venderia a sua imagem através de sapatos, camisas, um perfume com o seu nome… Será também o arauto da Puma, Pepsi Cola, Honda, Pony, Fabergé, Pan Am…

‘A indisciplina de Garrincha se contrapõe ao hiperprofissionalismo de Pelé’

Em 1974, o rei se transferiu do Santos para o New York Cosmos (clube da Warner Bros), onde se juntaria a outros craques, como o compatriota Carlos Alberto e o alemão Franz Beckenbauer. Foi neste clube, onde se inaugurou a globalização do futebol, que Pelé encerrou a carreira em 1977. No ano de sua aposentadoria, foi tema de uma pintura de Andy Warhol; poliglota, frequentou os grandes deste mundo: o Papa em 1987 (ele próprio era católico), a Rainha de Inglaterra em 1997, Nelson Mandela em 2007.

Antes dessas reuniões e apesar de seu constante apetite por publicidade, Pelé mostrava uma queda por causas humanitárias. Ele também foi um embaixador da boa vontade da Unicef. Mas também exerceu funções políticas: ocupou o cargo de ministro do Esporte de 1995 a 1998 e permitiu que os jogadores, então propriedade dos clubes, negociassem seu futuro. Ele foi o primeiro negro a exercer uma função ministerial no Brasil.

Para evitar atritos, Pelé absteve-se de qualquer intervenção no plano político, o que lhe foi censurado por parte da população e dos jogadores que, como Sócrates, fizeram campanha pela democracia enquanto a ditadura militar (1964-1985) reinava de forma ignominiosa. Da mesma forma, o “rei” dificilmente se manifestou contra o racismo vigente no Brasil. Maradona, outro herói do nosso tempo, estigmatizou essa atitude com comentários contundentes e excessivos: “Pelé ama mais o dinheiro do que o sono”. Consagração dessa vida “exemplar”, um museu é dedicado a Pelé, em Santos, em 2014.

A oposição entre esses dois destinos é caricatural. Enquanto o presidente da Fifa, Gianni Infantino, vem meditar diante dos restos mortais de Pelé e pede que em todos os países do mundo exista um estádio com o seu nome, não houve tal no enterro para Garrincha, ao qual Pelé não compareceu.

Eis então vidas com diferentes inflexões mas com o mesmo capital de mérito à partida. O contexto familiar, a diversidade de competências, o respeito pela disciplina, a conformidade com os tempos têm orientado estas histórias de vida para o sucesso ou para a desgraça.


*Christian Bromberger é antropólogo e professor emérito na Aix-Marseille Université (AMU)


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em francês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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