Nova ordem dos Brics+ carece de valores e identidade comuns
As duas últimas cúpulas dos países do Brics levantaram questões sobre a identidade e o objetivo da coalizão
As duas últimas cúpulas dos países do Brics levantaram questões sobre a identidade e o objetivo da coalizão. Isso começou a ficar evidente na cúpula organizada pela África do Sul em 2023 e, de forma mais aguda, na recente cúpula de 2024 em Kazan, na Rússia.
Em ambos os eventos, a aliança se comprometeu a ampliar sua base de membros. Em 2023, os cinco primeiros membros do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) convidaram o Irã, o Egito, a Etiópia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos a se associarem. Todos, exceto a Arábia Saudita, já o fizeram. A cúpula de 2024 comprometeu-se a admitir mais 13 países, talvez como associados ou “países parceiros”.
No papel, o Brics+, formado por nove membros, tem uma postura poderosa. Eles têm uma população combinada de cerca de 3,5 bilhões, ou 45% da população mundial. Juntas, suas economias valem mais de US$ 28,5 trilhões – cerca de 28% da economia global. Com o Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos como membros, o Brics+ produz cerca de 44% do petróleo bruto do mundo.
Com base em minha pesquisa e na assessoria política aos tomadores de decisão da política externa africana, eu diria que há três interpretações possíveis do propósito do Brics+.
- Um clube de membros com interesses próprios – uma espécie de cooperativa do sul global. O que eu rotularia como uma organização de autoajuda.
- Um bloco reformador com um objetivo mais ambicioso de melhorar o funcionamento da atual ordem global.
- Um agente desestabilizador, preparando-se para substituir a ordem mundial liberal dominada pelo Ocidente.
Analisando os compromissos assumidos na reunião na Rússia, eu diria que o Brics+ se vê mais como um reformador interessado em si mesmo. Ele representa o pensamento entre os líderes do sul global sobre a natureza da ordem global e as possibilidades de moldar uma nova ordem. Isso porque o mundo está se afastando da ordem ocidental financeiramente dominante, mas em declínio (em termos de influência moral), liderada pelos EUA. A mudança é para uma ordem multipolar na qual o leste desempenha um papel de liderança.
Entretanto, a capacidade do Brics+ de explorar essas possibilidades é limitada por sua composição e inconsistências internas. Isso inclui uma identidade contestada, valores incongruentes e falta de recursos para converter compromissos políticos em planos acionáveis.
Resultados da cúpula
A tendência de estreitar a cooperação e a coordenação comercial e financeira foi uma das principais conquistas da cúpula de Kazan. Outras conquistas dizem respeito à governança global e ao combate ao terrorismo.
No que diz respeito ao comércio e às finanças, o comunicado final afirma que o seguinte foi acordado:
- adoção de moedas locais em transações comerciais e financeiras; a Declaração de Kazan observa os benefícios de instrumentos de pagamento transfronteiriços mais rápidos, de baixo custo, mais eficientes, transparentes, seguros e inclusivos. O princípio orientador seria o de barreiras comerciais mínimas e acesso não discriminatório.
- estabelecimento de um sistema de pagamento transfronteiriço. A declaração incentiva a criação de redes de correspondentes bancários dentro do Brics e permite liquidações em moedas locais, de acordo com a Iniciativa de Pagamentos Transfronteiriços do Brics. Tal sistema é voluntário e não vinculativo, devendo ser discutido posteriormente.
- Criação de funções aprimoradas para o Novo Banco de Desenvolvimento, como a promoção de infraestrutura e desenvolvimento sustentável.
- Proposta de uma Bolsa de Grãos do Brics para melhorar a segurança alimentar por meio do aumento do comércio de commodities agrícolas.
Todos os nove países do Brics+ se comprometeram com os princípios da Carta da ONU, principalmente em resposta às sanções unilaterais do Ocidente, tais como paz e segurança, direitos humanos, Estado de Direito e desenvolvimento.
A cúpula enfatizou que o diálogo e a diplomacia devem prevalecer sobre o conflito em lugares como Oriente Médio, Sudão, Haiti e Afeganistão.
Linhas de falha e tensões
Apesar do tom positivo da declaração de Kazan, há sérias falhas estruturais e tensões inerentes à arquitetura e ao comportamento do Brics+. Isso pode limitar suas ambições de se tornar um agente de mudança significativo.
Os membros não concordam nem mesmo com a definição do próprio Brics+. O presidente Cyril Ramaphosa, da África do Sul, por exemplo, o chama de plataforma. Outros o chamam de grupo (o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi) ou de família (segundo o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Lin Jianan).
Então, o que poderia ser?
O Brics+ é orientado pelo Estado, deixando a sociedade civil à margem. Ele lembra a União Africana, que fala sobre o envolvimento dos cidadãos na tomada de decisões, mas não o coloca em prática.
Uma possibilidade é que ele evolua para uma organização intergovernamental com uma constituição que estabeleça suas agências, funções e propósitos. Entre os exemplos estão a Organização Mundial da Saúde, o Banco Africano de Desenvolvimento e a Assembleia Geral da ONU.
No entanto, ela precisaria se unir em torno de valores compartilhados. Quais seriam esses valores?
Os críticos apontam que o Brics+ é composto por democracias (África do Sul, Brasil e Índia), uma teocracia (Irã), monarquias (Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita) e ditaduras autoritárias (China e Rússia). Para a África do Sul, isso cria um problema interno. Na cúpula de Kazan, seu presidente declarou a Rússia como amiga e aliada. No entanto, seu parceiro de coalizão no governo de unidade nacional, a Aliança Democrática, declarou a Ucrânia como amiga e aliada.
Também há diferenças marcantes em questões como a reforma das Nações Unidas. Na recente Cúpula do Futuro da ONU, por exemplo, houve consenso a favor da reforma do conselho de segurança da ONU. No entanto, resta saber se a China e a Rússia, como membros permanentes do conselho, concordarão com mais assentos com direito a veto.
Quanto a conflitos violentos, crises humanitárias, corrupção e crime, há pouco na cúpula de Kazan que sugira um acordo em torno de ações.
Unidade de propósito
E quanto aos interesses compartilhados? Vários membros do Brics+ e os países parceiros mantêm laços comerciais estreitos com o Ocidente, que considera a Rússia e o Irã como inimigos e a China como uma ameaça global.
Alguns, como a Índia e a África do Sul, usam noções de política externa, como ambiguidade estratégica ou não alinhamento ativo para mascarar a realidade do comércio com o leste, o oeste, o norte e o sul.
A dura verdade das relações internacionais é que não existem amigos ou inimigos permanentes, apenas interesses permanentes. A aliança Brics+ provavelmente se unirá como uma cooperativa do sul global, com uma agenda inovadora de autoajuda, mas relutará em derrubar a ordem global atual, da qual deseja se beneficiar de forma mais equitativa.
Pode ser necessário fazer concessões e compromissos para garantir a “unidade de propósito”. Não está claro se essa aliança flexível está próxima de conseguir isso.
Anthoni van Nieuwkerk, Professor of International and Diplomacy Studies, Thabo Mbeki African School of Public and International Affairs, University of South Africa
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