13 dezembro 2024

Nova ordem na Síria

A mudança do regime trará profundas modificações políticas e geopolíticas no Oriente Médio. Ocidente, árabes e Israel apreciarão ver o fim da influência do Irã sobre a Síria, Rússia perde aliado mais próximo no Oriente Médio, e Irã é afetado em sua política de Eixo da Resistência. O redesenho da geopolítica beneficiará a Turquia e Israel, mas poderá criar situações de divisão territorial no país

Conflito na Síria deixou milhares de deslocados (Foto: ONU)

Depois de mais de 50 anos de domínio da família Assad, ninguém poderia imaginar uma rebelião derrubando o regime sírio de forma tão rápida. E inesperada, em função da total ausência de resistência das Forças Armadas sírias na defesa de Assad. 

A guerra da Rússia na Ucrânia e os ataques de Israel ao Irã inviabilizaram uma efetiva defesa do regime Assad por seus principais aliados, Moscou e Teerã. A partir da tomada de Aleppo, a segunda maior cidade da Síria, os rebeldes em dez dias chegaram e ocuparam a capital Damasco. 

O grupo que comandou a rebelião é o Hayat Tahrir Al Sham (HTS), cujo líder Abu Muhammad Al Jalani é um ex-combatente da Al Qaeda. Em suas declarações iniciais, sublinhou que o objetivo da revolução era derrubar o regime. 

Como a nova situação na Síria poderá impactar os principais atores políticos no Oriente Médio? 

‘Durante a guerra civil na Síria, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos apoiaram grupos de oposição a Assad para reduzir a influência regional do Irã’

Os Estados árabes nos últimos anos se reaproximaram de Assad. Durante a guerra civil na Síria, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos apoiaram grupos de oposição a Assad para reduzir a influência regional do Irã. Com o apoio da Rússia, Irã e Hezbollah, Assad sobreviveu e recuperou parte de seu território. 

Sob pesadas sanções dos EUA, a Síria se tornou um narco-Estado, criando uma crise de drogas nos países vizinhos. Essa nova realidade fez com que os países árabes mudassem de posição e passassem a apoiar o regime de Damasco. 

Nos últimos anos, a Síria foi readmitida na Liga Árabe. Na última reunião do Conselho de Cooperação do Golfo, na semana passada, os líderes árabes pediram respeito pela integridade territorial e soberania, rejeitando qualquer interferência nos negócios internos da Síria. A Arábia Saudita e os Emirados veem a queda de Assad como desafiadora e com possível desestabilização da região. A Arábia Saudita condenou os ataques de Israel a objetivos militares na Síria.

‘O Irã usou a Síria para expandir sua influência regional por meio de grupos sob seu controle em diversas partes do país’

O Irã usou a Síria para expandir sua influência regional por meio de grupos sob seu controle em diversas partes do país. O Irã e o Hezbollah foram importantes para manter Assad no poder, inclusive pelo envio de tropa (Islamic Revolutionary Guard Corps) para apoiar os militares de Assad.

Com a Guerra de Israel contra o Hamas, o Hezbollah saiu da Síria, tendo sido muito debilitado pelos ataques israelenses. Israel atacou seguidamente alvos iranianos na Síria, inclusive o consulado em Damasco. A perda da Síria representa um forte golpe para Teerã, que perde margem de negociação com a nova administração de Washington.

Israel atacou cirurgicamente o território sírio no governo Assad, que optou por não responder, mas permitir que grupos próximos do Irã e do Hezbollah pudessem ocupar seu território. Os impactos dos ataques de Israel sobre o Hezbollah e sobre o Irã foram causas diretas do ataque do movimento revolucionário que explorou o enfraquecimento das defesas sírias. 

‘Dada a sua localização geográfica, Israel procurará evitar que o novo governo evolua como um desafio a partir do HTS e dos sunitas rebeldes’

Dada a sua localização geográfica, entre o Irã e seus grupos radicais e os rebeldes islamistas na Síria, Israel procurará evitar que o novo governo evolua como um desafio a partir do HTS e dos sunitas rebeldes. O exército de Israel, desrespeitando o acordo de 1974, entrou na zona desmilitarizada na fronteira e em território sírio. Os israelenses afirmam, entretanto, que a ocupação é “limitada e temporária”.

A Rússia teve papel importante, desde a intervenção de Putin em 2015 até agora, para a preservação do regime de Assad. A Rússia mantém duas bases militares na Síria, com pequeno contingente militar. A rapidez do ataque e os esforços na guerra da Ucrânia impediram uma reação das tropas russas. 

‘O desaparecimento de Assad representa uma grande perda para a Rússia como uma potência e sua margem de manobra no Oriente Médio’

A vitória dos rebeldes com a ajuda da Turquia é uma ameaça à Rússia que investiu politicamente na manutenção do governo Assad. O desaparecimento de Assad representa uma grande perda para a Rússia como uma potência e sua margem de manobra no Oriente Médio. Putin não teve alternativa senão conceder asilo a Assad e toda sua família.

A Turquia tentou se distanciar das ações dos rebeldes no norte da Síria, mas apoiou fortemente o Exército Nacional Sírio, um dos grupos que participou da ofensiva. Ancara representou a oposição em negociações com a Rússia por vários anos até o acordo de cessar-fogo de 2020 entre as diferentes partes em luta na Síria. Apesar disso, a Turquia procurou se aproximar da Síria, tendo o presidente Erdogan pedido encontro com Assad para retomar as relações pessoas, mas Assad recusou encontrá-lo enquanto a Turquia continuasse a ocupar partes do território sírio. 

A Turquia também buscou uma solução para os cerca de 3.1 milhões de refugiados sírios, que se tornaram um ponto de tensão interna na Turquia. A situação na Síria era percebida na Turquia como de certa estabilidade pelo apoio do eixo Irã-Rússia, mas a vitória dos rebeldes mudou radicalmente essa visão. A Turquia entra em uma posição de mais força e um de seus objetivos é o de afastar grupos curdos localizados na região fronteiriça com a Síria e criar uma zona neutra. 

Erdogan tem sido um tradicional opositor do nacionalismo curdo e não esconde que seu objetivo é eliminar o PKK, partido dos trabalhadores curdos. Depois da queda de Assad, a Turquia intensificou os ataques no norte do território Sírio contra os curdos com a intenção talvez de ocupar parte do território onde vivem os curdos, espalhados na Turquia, Síria, Irã e Iraque, e evitar que se crie um estado curdo. 

‘Embora Trump tenha dito que os EUA não têm interesse na Síria e vai retirar os militares americanos do país, é difícil imaginar que o governo americano se mantenha afastado dos desdobramentos da queda de Assad’

Os EUA atacaram fortemente instalações do Estado Islâmico na Síria para destruir depósitos de armas químicas, e Israel atacou objetivos militares sírios, inclusive em Damasco, para destruir misseis e o poderio naval do país. Os americanos mantém cerca de 900 militares em suas bases na Síria. Embora Trump tenha dito que os EUA não têm interesse na Síria e vai retirar os militares americanos do país, é difícil imaginar que, pelo apoio continuado a Israel, o governo americano se mantenha afastado dos desdobramentos da queda de Assad.

A mudança do regime na Síria trará profundas modificações políticas e geopolíticas no Oriente Médio. O Ocidente e os Estados Árabes, assim como Israel, apreciarão ver o fim da influência do Irã sobre a Síria, mas nenhum deles vai aceitar um regime Islâmico radical no lugar de Assad. 

Para a Rússia, a queda do governo sírio significa perder o aliado mais próximo no Oriente Médio e a redução de sua força para projetar seu poder na região. Para o Irã, afeta substancialmente sua política de Eixo da Resistência com estados aliados e milícias. 

O redesenho da geopolítica beneficiará a Turquia e Israel em um primeiro momento, mas poderá criar situações de divisão territorial no país. É difícil prever a manutenção da estabilidade política e militar do país.

‘As promessas de uma transferência de poder tranquila foram cumpridas. O que não está claro é se os demais grupos revolucionários vão aceitar e se questões religiosas vão ficar em segundo plano’

As promessas de uma transferência de poder tranquila foram cumpridas. Mohammed Al Bashir, ligado à direção do grupo rebelde HTS, assumiu provisoriamente o cargo de primeiro-ministro. O que não está claro é se os demais grupos revolucionários que atuam na Síria vão aceitar uma transição tranquila como está sendo anunciada e se questões religiosas vão ficar em segundo plano. 

Como reagirão os diversos grupos armados de oposição na Síria treinados, armados e financiados por mais de uma década por diversas potências regionais e globais, como o Qatar, a Arábia Saudita, a Turquia, os Estados Unidos, Israel e membros da União Europeia, entre outros. 

A situação continua muito fluida e incerta com muitos desafios para o novo governo: manter a integridade territorial, lidar com a Turquia, resolver a questão das bases russas e norte-americanas em seu território, enfrentar a questão dos curdos no Norte do país, o tratamento a ser dado a Israel, cumprir a promessa de respeitar as minorias religiosas e étnicas sem o radicalismo da sharia. Sem falar da questão humanitária com a volta, estimulada pelo novo governo, de refugiados espalhados nos países vizinhos e, em especial, na Europa.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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