13 outubro 2025

O bom momento da diplomacia, da democracia e da soberania  – E o risco de hubris

País passou a viver um momento positivo tanto na política interna quanto nas relações com o resto do mundo, mas a situação da economia ainda exige cuidados e é importante não se entusiasmar demais para não colocar em risco o potencial do Brasil

Abertura do Debate Geral da 80.ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

O discurso do Brasil na abertura da Assembleia Geral da ONU deste ano foi um bom momento de nossa diplomacia. 

Como em outras ocasiões, defendemos o multilateralismo, os direitos humanos e o regime de regras no comércio internacional. Entretanto, nos últimos seis anos, o Brasil foi vítima de ameaças reais à democracia (tentativa de golpe de Estado) e à soberania (ingerência norte-americana na política interna). Por essas circunstâncias adversas, o Brasil abordou, na ONU, os dois temas de forma concreta, sem retórica, e com equilibrada contundência. 

O discurso teve outra virtude – não aderimos ao conhecido antiamericanismo, nem ao alinhamento simplista com o BRICS – o que recolocou nossa diplomacia no rumo histórico da equidistância em relação às superpotências. Lula é interlocutor privilegiado de Trump e de Xi Jinping.  

‘A diplomacia é hoje fonte de maior credibilidade, se comparada com o padrão das declarações anteriores de Lula’

A diplomacia é hoje fonte de maior credibilidade, se comparada com o padrão das declarações anteriores de Lula – identificação com o Brics, oposição ao Ocidente, e defesa da Rússia na guerra da Ucrânia. 

Mas, se a diplomacia vai bem, a economia vai mal – a trajetória a médio prazo é sombria e preocupante. O maior perigo é o excesso de entusiasmo – a  hubris.

O Brasil bem na foto da democracia e da soberania

O Brasil tem uma democracia longeva, imperfeita e tutelada pelos militares. Após os 21 anos de regime militar, o país iniciou a redemocratização (1985) e aprovou a Constituição Cidadã de 1988, o que produziu a percepção geral de que a democracia estava consolidada.

Mas a eleição de Bolsonaro (2019-2022) abalou aquela visão, agravada pelo papel político de relevo atribuído aos militares e pelos ataques sistemáticos às instituições, em especial, ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). 

Essa trajetória antidemocrática, somada à derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, e à insurreição de 8 de janeiro de 2023 deixaram clara a existência de uma trama golpista destinada a impedir a posse do presidente Lula e a dar um golpe de Estado. Concluídas as investigações da Polícia Federal, o STF julgou e condenou – por primeira vez em nossa história – cinco oficiais de alta patente e o ex-presidente a penas superiores a 20 anos. 

‘À trama golpista antidemocrática somaram-se ameaças robustas à soberania nacional’

À trama golpista antidemocrática somaram-se ameaças robustas à soberania nacional. Foi nesse contexto – em brutal quebra do princípio da não ingerência – que o presidente dos EUA, Donald Trump, fez acusações de extrema gravidade ao STF, tais como: fraude eleitoral; perseguição ao ex-presidente; e violação de direitos humanos. Ao mesmo tempo, Trump impôs tarifa total de 50% a produtos brasileiros e aplicou a Lei Magnitsky contra o Ministro Alexandre de Moraes e familiares.

As ameaças à democracia e à soberania reverteram os índices de aprovação de Lula, que passaram a indicar curva ascendente e aumento da distância em relação ao potencial rival eleitoral – o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. 

O bolsonarismo perdeu adeptos, em consequência da desastrosa atuação de Eduardo Bolsonaro junto ao governo Trump. Ao assumir ter tido influência sobre a decisão do tarifaço, fragilizou o bolsonarismo, dividiu a oposição, e entregou ao governo Lula a defesa de três grandes bandeiras – democracia, soberania e nacionalismo. 

‘A diplomacia brasileira vive um bom momento, e a fala de Lula na ONU lembra o histórico Discurso dos Três Ds do chanceler Araújo Castro (Desenvolvimento, Desarmamento e Descolonização), em 1963’

A diplomacia brasileira vive um bom momento, e a fala de Lula na ONU lembra o histórico Discurso dos Três Ds do chanceler Araújo Castro (Desenvolvimento, Desarmamento e Descolonização), em 1963. 

Após a boa química na ONU e a importante conversa de trinta minutos com o presidente norte-americano, Lula se tornou privilegiado interlocutor dos líderes das duas superpotências – Trump e Xi Jinping.  

Na política interna, o presidente alcançou níveis de aprovação raros em seu terceiro mandato. E o Congresso – com vultoso Fundo Partidário e com Emendas bilionárias – continua poderoso e talvez mais  refratário ainda ao Executivo, diante da ameaça de sua reeleição. 

O grande dilema revivido

Será que o Brasil resgatou o ciclo virtuoso do primeiro e do segundo mandato de Lula – quando surfava numa economia internacional em expansão, crescia em média 4,6% ao ano (2000 -2010), e virava o foguete ascendente da capa do Economist? Ou será que o país vai repetir o ciclo vicioso do segundo mandato de Dilma (interrompido em 2016), quando o PIB teve extraordinário crescimento de 4% no primeiro ano, para em seguida despencar, com o pior desempenho negativo de 3,4% em média?

Não há solução definitiva para esse enigma. Mas uma reflexão política e um diagnóstico econômico podem ajudar. 

‘Na política, o governo vive um novo clima. Na economia, a fotografia é apenas parcialmente positiva’

Na política, o governo vive um novo clima. Entretanto, os ventos favoráveis parecem ser muito mais obra dos equívocos de uma despreparada oposição impatriótica e de um Congresso desacreditado, em busca de emendas e privilégios, do que resultante de méritos do governo. 

Na economia, a fotografia é apenas parcialmente positiva – o desemprego de 6,6% em 2024, e de 5,6% no segundo trimestre de 2025, são os dois menores da série histórica do IBGE. Mas a taxa de inflação de 2024 –  4,83%, com meta de 3% – e a expectativa quase idêntica para 2025, não são nada animadoras, sobretudo diante do elevado patamar de 15% da taxa básica de juros. 

Se essas imagens fotográficas são pouco promissoras, o filme é altamente preocupante. 

A trajetória da relação dívida pública/ PIB vem-se agravando desde 2001, quando era 67%, mantida até 2014. Em 2015 – primeiro ano do segundo governo Dilma – a relação deu um salto de mais 10 pontos percentuais. Em 2016, com Temer, ocorreu novo aumento de 6 pontos percentuais, que teve continuidade até a relação dívida pública/PIB alcançar o ponto máximo de 87,1%, em 2020, durante a pandemia, seguida de pequena queda para o nível de 83,9%, no final do governo Bolsonaro. No terceiro mandato de Lula, a relação teve novo aumento de 6 pontos percentuais, situada atualmente em 87,3%. 

‘O filme se torna ainda mais sombrio quando examinamos algumas medidas previstas no arcabouço fiscal’

O filme se torna ainda mais sombrio quando examinamos algumas medidas previstas no arcabouço fiscal. A PEC da Transição elevou o limite do gasto público e autorizou reajustes do salário-mínimo acima da inflação – forte agravante do endividamento público, uma vez que os benefícios da Previdência Social não podem ser inferiores ao salário-mínimo. 

A relação dívida /PIB é também pressionada pelos pisos da saúde e da educação, que ficaram atrelados à receita e não mais à inflação anterior. O padrão de governo gastador vem-se consolidando, o que deverá agravar-se no ano eleitoral.  

Conclusão

O equilibrado discurso do presidente recolocou a política externa no trilho da histórica equidistância na relação com as superpotências, acentuado pela boa química entre os presidentes na ONU, seguida de importante telefonema. 

Na política interna também o governo sobe nos índices de aprovação, com o enfraquecimento do bolsonarismo e com um Legislativo questionado pelas ruas, em função da forte rejeição popular à PEC da blindagem.  

‘Em contraste com esse cenário animador na diplomacia e indefinido na política doméstica, na economia a trajetória a médio prazo deverá ser de sombria desestabilização’

Em contraste com esse cenário animador na diplomacia e indefinido na política doméstica, na economia a trajetória a médio prazo deverá ser de sombria desestabilização. 

O arcabouço fiscal perde credibilidade junto aos agentes econômicos, a relação dívida/PIB atinge o recorde histórico de 87,3 % e o descontrole das contas públicas fica estampado na preocupante taxa de juros real próxima a 10% .

O governo Lula III parece cada vez mais distante do padrão de seu virtuoso primeiro mandato, e cada vez mais próximo da desastrosa experiência presidencial de Dilma. 

Sobrevalorizar o quadro diplomático favorável e abstrair o sombrio cenário econômico de grave crise que se avizinha constitui ameaçadora ilusão. O maior perigo é o excesso de entusiasmo – a húbris

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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