03 julho 2025

O freio e o motor da inteligência artificial brasileira

Artigo publicado na edição 70 da Revista Interesse Nacional analisa a situação da pesquisa em Ia no país

O Brasil está em ritmo acelerado para regular a Inteligência Artificial (IA). O Senado aprovou, no final de 2024, o Projeto de Lei 2.338/2023, que cria a “Lei da Inteligência Artificial”. O texto introduz um sistema de freios e contrapesos ao desenvolvimento tecnológico nacional, criando nada menos que 56 obrigações para quem quiser apostar na Inteligência Artificial brasileira. É o inverso do que precisamos.

Para comparação, o AI Act da União Europeia contém apenas 39 obrigações. Em comparação com a Europa, nós aumentamos não só a quantidade, mas a intensidade das obrigações. Incluímos obrigações específicas para o setor público, aumentamos as hipóteses de IA de alto risco e, como regra, tratamos desenvolvedor, aplicador e distribuidor da tecnologia como iguais. É fato que os freios foram amenizados ao longo do debate, mas a matriz adotada de compliance desacelera o ecossistema de inovação.

Se o AI Act um dia nos inspirou, os ventos na Europa mudaram e os arrependimentos são claros. Sobre a competitividade do bloco, o Relatório Draghi foi explícito ao recomendar a “desregulação” para garantir o futuro do Estado de Bem-Estar Social. Draghi, presidente do Banco Central Europeu (e primeiro-ministro da Itália), está certo em sua preocupação. Quando o AI Act começou a tramitar, em 2021, a Europa representava 3% das 100 maiores empresas digitais. Em 2024, mesmo com o boom da IA generativa, a Europa segue estagnada e esmagada entre Estados Unidos e China. 

Para desregulamentar, a Europa depende de harmonizar regras e definir excepcionalidades para as médias e pequenas empresas. Mas a gênese da regulação traz seus limites: o que foi instituído é um freio para o desenvolvimento da tecnologia, em prol da prevenção de riscos. No Brasil, por sua vez, ainda temos a chance de mudar o tom do debate. Em 2025, a Câmara dos Deputados passa a analisar o texto, com previsão de publicação do relatório final ao fim do ano. Já foram anunciadas consultas públicas para calibrar os freios instituídos pela Lei.

No Legislativo temos pela frente três caminhos a escolher: podemos manter as escolhas do Senado — que, por sua natureza, criam uma grande barreira de proteção contra tecnologias —, optar por uma estrutura que foque mais nas oportunidades que nos riscos — até que sejamos de fato produtores de tecnologia —, ou misturar os dois caminhos na busca de um consenso. O ideal, em qualquer caso, é apostar em um veículo que acelere rápido e freie quando necessário (e não em um carro que fique parado, enquanto os outros decolam).

O efeito Bruxelas na IA

A União Europeia saiu na frente com o AI Act. A proposta começou a ser discutida ainda em 2017. De lá até 2024, foram mais de 2 mil consultas, com inúmeras metodologias e processos participativos. O processo nem se compara ao realizado aqui. A Comissão de Juristas que redigiu a primeira versão do texto chegou a publicar todas as contribuições que recebeu, mas a transparência parou ali. Ao longo da tramitação, a metodologia adotada no Senado consistiu em consultas públicas a especialistas, com diversas repetições entre os participantes. Importante notar que o Senado até hoje se nega a publicar as contribuições recebidas.

A proposta do AI Act é clara: estipular obrigações conforme o nível de risco. É assim que regulamos estradas ou produção de energia, e essa é uma boa prática legislativa. O dilema está na dosagem para algo que ainda desconhecemos. Na Europa, foram quatro as classificações de risco adotadas: riscos irremediáveis são tratados com proibição; para casos de elevado risco, aplicam-se grandes obrigações; para os riscos conhecidos e limitados, regras de transparência; e, para os casos de risco mínimo, prática da autogovernança.

A regulação por risco tem formato de pirâmide, com o risco elevado na ponta de cima. Ou seja, o risco alto e máximo são exceções, não a regra. Não é isso que estamos trazendo para o Brasil. A Europa, em 2021, estimou que 10% dos usos de IA seriam regulados como de alto risco. Uma análise independente por lá, em 2024, encontrou um percentual maior, de 18%. Já no Brasil, uma análise conduzida pelo ITS Rio identificou 35% dos usos classificados como de alto risco (mais de um terço do mercado analisado). 

O Senado se inspirou no regulamento europeu, mas muito inovamos ao longo do processo. Outros países fizeram o mesmo, como Colômbia. O problema é que esquecemos que a Europa não institui só freios, mas muitos motores. Nos últimos anos, o bloco aprovou mais de 20 regulamentos sobre mercados digitais. É o caso, por exemplo, do incentivo à interoperabilidade, da obrigação de compartilhamento de dados públicos, das segurança jurídica para tratamento de dados não pessoais, dentre outros. Nenhum desses regulamentos trouxemos como inspiração para cá, aumentando ainda mais o perfil restritivo que estamos tomando. 

O papel do Poder Executivo

O Brasil publicou, em 2023, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA). São 31 ações, com uma promessa de investimento de 23 bilhões de reais. É um documento importante e baseado em consultas com diversos atores da sociedade, mas ainda modesto. Além de ter dois terços das atividades por iniciar, o investimento bruto é pequeno em comparação com a concorrência.

A corrida da IA é liderada pela China e pelos Estados Unidos. Cada um aportou, só nos últimos anos, mais de 300 bilhões de reais no fomento do mercado interno. E movimentações globais em 2025 indicam que as cifras vão aumentar: o governo Trump anunciou 500 bilhões de dólares em investimentos, e valor semelhante deverá ser investido pela União Europeia.

Mas é possível promover a IA nacional mesmo com orçamentos menores, basta colocar apostas onde temos chances de despontar. O Japão, por exemplo, aumentou as hipóteses de uso de material protegido para treinamento de modelos fundacionais; a França apostou em atrair datacenters, com fornecimento de energia nuclear abundante no país; já Reino Unido e Singapura investiram em regulação ágil e sandboxes. A própria Europa está criando bancos de dados públicos para treinamento e criando “Fábricas de IA”. Sem falar na China, que há mais de 15 anos tem planos estratégicos implementados para fomentar sua tecnologia.

E o que poderia o Brasil fazer? Podemos apostar, por exemplo, na energia renovável, na agenda verde e no mercado agro. Enquanto infraestruturas de IA, como datacenters, estão crescendo lá fora com uso de combustíveis fósseis, o Brasil possui uma matriz majoritariamente renovável, da energia eólica ao biometano. O Brasil também ocupa posição de destaque no G20, que presidiu em 2024, e agora na COP30 e no BRICS. Nesses locais o Brasil já vem promovendo a agenda de uso de tecnologias para combater as mudanças climáticas. E sobre o mercado do agronegócio, basta dizer que estados como Goiás e São Paulo estão disparados na corrida pelas maiores AgTechs.

A aposta no modelo aberto

Além de uma regulação que fomente oportunidades, precisamos fomentar tecnologias que possamos dominar. Isso implica escolher entre dois modelos de IA: aqueles de código, dados e sistemas abertos, e aqueles proprietários, fechados. No modelo aberto, todos podem ser produtores de tecnologia, bastando investir na adoção ou no desenvolvimento. No modelo fechado, só podemos ser consumidores, e nosso uso é condicionado ao pagamento de assinaturas ou APIs. A combinação de IA aberta e fechada é importante para a competitividade, mas apenas a IA aberta permite nos tornar produtores de tecnologia de ponta.

O modelo fechado de IA é capitaneado pelos Estados Unidos. Lá, a proposta é repetir a fórmula de sucesso aprendida com redes sociais ou ferramentas de busca, mercados que dominam. Nesse sentido, o governo investe pesado para favorecer a inovação gerada por poucas e grandes empresas. Esse é o modelo das big tech a aparecer, e funciona (basta ver a OpenAI, que se tornou líder de mercado em menos de dois anos).

Já o modelo da China é apostar na IA aberta, e isso não é de hoje. A China investe em tecnologias abertas como política de Estado, como infraestrutura pública digital. O Brasil, diga-se de passagem, sempre foi líder em tecnologias abertas, tendo sediado por mais de 10 anos o principal evento internacional do tipo em Porto Alegre.

E vale ver como o modelo de IA aberta está alterando as regras de competição mundial. Vindo da China, o DeepSeek ganhou fama internacional ao gerar resultados comparáveis aos melhores modelos fechados, mas usando uma fração do custo equivalente. O DeepSeek apostou no modelo aberto, explicando em artigos como o treinamento foi feito, como placas “série B” foram aproveitadas ao máximo para processamento, dentre outros avanços. 

E por que isso importa para o Brasil? Se quisermos ser produtores de tecnologia, não podemos depender de pagar assinaturas e ter acesso restrito a modelos de IA. Como vamos falar sobre o solo brasileiro, os biomas do Pantanal ou da Amazônia, compreender as particularidades do SUS ou lidar com as diversas formas de falar português, se sempre dependermos de terceiros para isso?

Além disso, o que o Brasil já demonstrou – e o Japão também – é que as tecnologias abertas adaptadas para uso local podem ser não apenas até 70% mais em conta para pequenas e médias empresas, como muito mais eficientes em entender as peculiaridades da língua local. 

O motor da Inteligência Artificial no Brasil

Para iluminar o caminho, podemos nos inspirar no caminho escolhido por Goiás. O Estado foi o primeiro a aprovar uma lei ampla de IA no Brasil. E o que fez? Focou na criação de motores para a IA decolar na região (sem abdicar dos freios necessários). 

Goiás apostou, por exemplo, no fomento aos datacenters verdes, um diferencial nosso. A matriz energética local, somada ao biometano, torna a região atrativa internacionalmente para créditos de carbono. Estamos agora competindo com Singapura, que saiu na frente e promoveu a ideia de “datacenters tropicais”, que se diferenciam por tirar proveito de climas quentes e úmidos. Se seguirmos esse caminho, Goiás pode ser – em breve – um modelo de datacenters “latinos” para toda região. 

A segunda aposta de Goiás foi investir em IA aberta. A Lei criada não apenas coloca essa tecnologia como prioridade, orientando investimentos públicos e privados, como também integra IA aberta à pesquisa científica. O regulamento estimula parcerias com a UFG, envolve o Sistema S e outros órgãos de educação locais. O CEIA, centro de excelência dentro da universidade pública, já congrega mais de 60 empresas e 800 pesquisadores em IA, algo único no país. 

Por fim, a outra aposta de Goiás é fomentar o agronegócio. Responsável pelo superávit da balança comercial, a aposta da regulação é tornar o agro mais verde e lucrativo. Isso implica combinar pesquisa e investimentos para criar soluções próprias para o solo, o clima e os desafios peculiares que só Centro-Oeste tem.

A trajetória de sucesso nacional

O Brasil costumava ser pioneiro na regulação de novas tecnologias. Em 1993, antes mesmo da internet comercial, criamos o Decálogo da Internet, um marco que define princípios para uma rede livre e aberta. Em 2000, realizamos o primeiro fórum de software livre, em Porto Alegre. Em 2004, fomos um dos primeiros a ter um portal de transparência e, em 2011, cofundamos a Parceria de Governo Aberto. Vale lembrar também a criação da governança multissetorial sui generis, que é o CGI.br, e o processo pioneiro participativo que gerou o Marco Civil da Internet.

Além disso, somos já um grande mercado em blockchain. Fomos pioneiros ao criar o Fórum Blockchain Gov, com primeira edição em 2018, reunindo quase duas dezenas de inovações no setor público. E já somos exportadores de soluções e de especialistas em tecnologias descentralizadas. Isso sem falar no nosso sucesso no G20 com infraestruturas públicas digitais (DPIs), em que destacamos inovações transformadoras como o Gov.br e o Pix.

Mas, e a nossa liderança em inteligência artificial? Aqui, não somos páreo internacional. Conseguimos alguma relevância na governança multissetorial de IA, mas só isso. Enquanto isso, se olharmos as Cúpulas de IA (incluindo as do Reino Unido, Coreia do Sul e Paris), todas focam mais em riscos que oportunidades. E, assim, ninguém está realmente desafiando a hegemonia americana e chinesa.

Hoje, participamos do mercado de IA basicamente como consumidores. Ao fazer isso, adotamos tecnologias que não entendem de cerrado ou do SUS, ou compreendem bem o Português quebrado que chega nos call centers. E pior: as startups criadas aqui que se destacam em IA vão para fora, em busca de financiamento. 

Para reverter a estagnação, precisamos fazer duas coisas: criar oportunidades, motores que nos façam ser competitivos, e equilibrar os freios, para quando nos tornarmos velozes. O que é certo é que precisamos fomentar a Inteligência Artificial Brasileira. De outra forma, como já percebeu a Europa, corre risco o financiamento do Estado do Bem-estar Social.

é diretor executivo do ITS Rio. PhD, afiliado ao Berkman Klein Center na Universidade de Harvard, fellow em governo aberto pela Organização dos Estados Americanos, pós-doutor na Universidade das Nações Unidas, doutor na Universidade de Leeds e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia San Diego

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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