04 junho 2025

O G20 na África do Sul e a última presidência do Sul Global: o que esperar?

Encontro tem a oportunidade de deixar o legado de reafirmação do multilateralismo e de estratégias concretas para os problemas globais. É fundamental pensar que o multilateralismo deve ser não só mais representativo, mas também mais justo, enraizado em epistemologias africanas e de outras regiões

Foto: G20

Em dezembro de 2024, a África do Sul assumiu a presidência do G20. Esta será a última presidência consecutiva do Sul Global no bloco, após Indonésia (2022), Índia (2023) e Brasil (2024). 

Este ano marca a primeira vez que um país africano ocupa a presidência, o que dá à África do Sul a chance de conduzir a agenda e de dar continuidade aos trabalhos desenvolvidos pela presidência do Brasil. 

‘O encontro do G20 na África do Sul carrega um peso histórico e político singular’

O encontro do G20 na África do Sul carrega um peso histórico e político singular. Sendo o único país africano por muito tempo no G20, as vozes do continente africano foram reforçadas com a aprovação da União Africana (UA) como membro permanente, em 2023. 

A recente inclusão da UA foi celebrada como um avanço na diversidade do bloco, apesar de o G20 ser marcado ainda por assimetrias de poder e uma perspectiva baseada em racionalidades econômicas ocidentalizadas.

‘Tudo indica que o tom das discussões não será o mesmo visto nos últimos anos, havendo retrocessos nas demandas dos países do Sul’

Em meio às tensões entre a África do Sul e os Estados Unidos – que sediará o G20 em 2026 -, questiona-se o que esperar da última presidência consecutiva do Sul Global. Tudo indica que o tom das discussões não será o mesmo visto nos últimos anos, havendo retrocessos nas demandas dos países do Sul.

O ciclo do Sul Global no G20

A partir de um breve balanço das presidências do Sul Global, é possível observar uma continuidade nas agendas e grupos de engajamento. 

A presidência da Indonésia (2022) foi no período após a pandemia de Covid-19, trazendo como tema “Recuperar juntos, recuperar mais fortes”. 

As áreas prioritárias eram: (1) arquitetura global de saúde (especialmente para fortalecer os sistemas de saúde para futuras crises); (2) transformação digital (para promover a inclusão digital e inovação tecnológica); e (3) transição energética sustentável (para incentivar o uso de energias renováveis e práticas sustentáveis no combate às mudanças climáticas). O encontro teve como pontos fortes a adoção da Declaração de Bali e a discussão e mediação em relação à guerra na Ucrânia.

    A presidência da  Índia (2023) focou no tema “Uma Terra, uma família, um futuro”, priorizando as áreas de desenvolvimento verde e sustentável, infraestrutura digital pública e reformas em instituições multilaterais. 

    Além da inclusão da União Africana como membro permanente, o encontro teve como pontos fortes o lançamento da Aliança Global de Biocombustíveis (visando a promoção de fontes de energias alternativas) e a adoção da Declaração de Nova Déli.

    ‘A presidência do Brasil teve como pontos fortes o lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a proposta de taxação de grandes fortunas e a criação do G20 Social’

    Já a presidência do Brasil (2024) apresentou o tema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”, focando nas áreas de inclusão social e combate à fome, transição energética e desenvolvimento sustentável, e reforma das instituições de governança global. Como pontos fortes, houve o lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a proposta de taxação de grandes fortunas e a criação do G20 Social.

    Nas três presidências houve dificuldade para adesão dos membros em relação a iniciativas e posicionamentos concretos, ilustrando a dificuldade dos países do Norte Global em abdicar os privilégios e hierarquias. Pode-se observar como avanços a inclusão da União Africana, o foco no desenvolvimento sustentável, a ênfase Sul-Sul e os debates sobre transformação digital.

    A vez da África do Sul

    A África do Sul carrega consigo um repertório de resistências: da luta contra o apartheid à tentativa de articular políticas externas pautadas em justiça racial e solidariedade Sul-Sul. Apesar da sua importância geopolítica e econômica, o país enfrenta desafios atuais, como crises internas, desigualdade racial e pressão internacional (especialmente pelo presidente Trump).

    Para o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, “Esta é uma oportunidade valiosa para a África do Sul avançar em seus esforços rumo a um maior crescimento econômico global e desenvolvimento sustentável. É uma oportunidade de colocar as necessidades da África e do restante do Sul Global mais firmemente na agenda de desenvolvimento internacional”. 

    Com o tema “Solidariedade, Igualdade e Sustentabilidade”, a presidência sul-africana se concentra em três objetivos: (1) crescimento econômico inclusivo, industrialização, emprego e redução da desigualdade; (2) segurança alimentar; e (3) inteligência artificial, governança de dados e inovação para o desenvolvimento sustentável. 

    Como afirma o diretor-geral do Departamento de Relações Internacionais e Cooperação (DIRCO) e Sherpa do G20, Zane Dangor, a “presidência do G20 é pautada por seus pilares estratégicos de política externa: interesse nacional, agenda africana, cooperação Sul-Sul e multilateralismo”. 

    O Sherpa afirma que a UA desempenhará um papel fundamental no reforço e na complementação da afirmação da África do Sul, a qual utilizará sua presidência para incorporar as aspirações do continente, principalmente com a “Agenda 2063: A África que Queremos”. Além do apoio à agenda, o G20 pode criar espaço para comprometimentos em relação ao Pacto do Futuro, Agenda 2030 e outras iniciativas, como afirma Dangor. 

    E o que esperar do G20 África do Sul?

    Com o fim do ciclo de presidências do Sul Global, o G20 voltará a ser presidido por países do Norte, como a presidência dos Estados Unidos. Isso reforça a urgência de dar prioridade a outros espaços multilaterais, como é o caso dos Brics e outras cúpulas globais. 

    A África do Sul tem a oportunidade de solidificar as propostas desenvolvidas pelo Brasil, Índia e Indonésia, além de reforçar a importância de arranjos multilaterais para soluções de problemas compartilhados, diferente do posicionamento individualista dos Estados Unidos. 

    ‘Este ano será decisivo para a produção de conhecimento crítico desde o Sul e propostas práticas de aplicação da declaração futura do G20’

    Este ano será decisivo para a produção de conhecimento crítico desde o Sul e propostas práticas de aplicação da declaração futura do G20. Além disso, é importante a inclusão e o fortalecimento da sociedade civil no fórum, dando ênfase à relevância da cooperação multinível (envolvendo Estados, grupos sociais, governos locais, dentre outros atores).

    Uma das grandes críticas em relação ao G20 e seus grupos de engajamento é a materialidade das propostas em termos práticos: de que forma propor soluções e colocá-las em práticas? Como medir e acompanhar progressos de uma presidência à outra? De que forma incentivar um consenso este ano e lidar com uma possível marginalização de pautas do Sul a partir da presidência dos Estados Unidos? São algumas perguntas que geram uma maior expectativa sobre o que esperar do G20 África do Sul.

    A oportunidade atual é deixar o legado de reafirmação do multilateralismo e de estratégias concretas para os problemas globais. Torna-se fundamental pensar que o multilateralismo deve ser não só mais representativo, mas também mais justo, enraizado em epistemologias africanas e de outras regiões. É preciso romper com lógicas hierárquicas de saber, produção e poder para traçar um futuro em conjunto.

    Camila Andrade é colunista da Interesse Nacional, pesquisadora do Pan-African Thought and Conversation (IPATC), na Universidade de Joanesburgo, e do pós-doutorado na UFPB. Doutora em ciência política pela UFRGS e pesquisadora do Grupo Áfricas: sociedade, política e cultura. É também mestre em relações internacionais pela UFSC. Suas principais linhas de pesquisa são estudos africanos e do Sul Global, Ruanda e feminismos negros. É criadora do @camilaafrika, uma comunidade de democratização dos Estudos Africanos.

    Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

    Tags:

    África 🞌 G20 🞌 Sul Global 🞌

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