02 julho 2025

O Irã e o temor à paz do radicalismo

Apesar dos sinais de abertura com a posse do presidente reformista Pezeshkian e do esforço brasileiro por uma aproximação diplomática, o Irã segue preso a tensões internas, sabotagens externas e ameaças crescentes, num cenário que põe em risco qualquer chance de cooperação e estabilidade na região

O vice-presidente Geraldo Alckmin durante reunião com o presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, em Teerã (Foto: Embaixada do Irã)

É frustrante para quem acompanha os assuntos do Irã observar quantas oportunidades são desperdiçadas para o estabelecimento de relações construtivas com esse país. Como ex-embaixador brasileiro em Teerã, recentemente aposentado, pude testemunhar pessoalmente uma delas. Seguindo recomendações da nossa embaixada de que uma comitiva de alto nível comparecesse à posse do presidente reformista Massoud Pezeshkian, em julho de 2024, o vice-presidente Geraldo Alckmin representou o presidente Lula na cerimônia, demonstrando apoio à moderação desejada pelo novo chefe de governo iraniano.

A visita foi muito produtiva. Foram examinadas formas de equilibrar mas também expandir a já significativa parceria no setor agrícola, que tem gerado superávits bilionários à balança comercial brasileira. Tratou-se da criação da adidância agrícola na embaixada, hoje em pleno e eficaz funcionamento. 

‘Alckmin e Pezeshkian valorizaram nossos mais de 120 anos de excelentes relações e discutiram possibilidades de aumento de negócios e investimentos’

Alckmin e Pezeshkian valorizaram nossos mais de 120 anos de excelentes relações e a entrada do Irã no Brics, trataram do projeto de criação de centro e curso de língua portuguesa em Teerã e discutiram possibilidades de aumento de negócios e investimentos em áreas não afetadas por sanções internacionais. Como ambos são médicos, levantaram possibilidades de cooperação na produção de vacinas e medicamentos, intercâmbio de conhecimentos em terapias inovadoras e construção de hospitais.

Tudo isso foi eclipsado pela atenção midiática ao assassinato do representante do Hamas Ismail Haniyeh nas proximidades e na ocasião em que se realizava a cerimônia de posse.

‘Mais uma vez consolidou-se o padrão de sabotagem de qualquer tentativa de aproximação com Teerã por forças radicais, internas ou externas’

Mais uma vez consolidou-se o padrão de sabotagem de qualquer tentativa de aproximação com Teerã por forças radicais, internas ou externas. 

Durante a campanha presidencial iraniana, bastou Pezeshkian defender maior liberdade no uso do véu (hijab) para que as patrulhas da moralidade, cujas inspetoras são reconhecidas pelo uso do chador negro, voltassem a vigiar as entradas de shoppings e outros espaços públicos, numa clara demonstração de resistência à liberação. 

‘O presidente teve que calibrar seus discursos para não dar munição às alas mais conservadoras, que veem qualquer negociação com o Ocidente como ameaça à soberania nacional’

Pezeskhian também enfrentou a reação de correntes radicais contrárias por favorecer negociações com quaisquer países sobre assuntos nucleares. Para isso, nomeou como chanceler o veterano diplomata Abbas Araghchi, ex-negociador do Acordo Nuclear de 2015 (JCPOA), o qual se cercou de profissionais altamente qualificados e experientes no assunto. O presidente, porém, teve que calibrar seus discursos para não dar munição às alas mais conservadoras, que veem qualquer negociação com o Ocidente como ameaça à soberania nacional.

A despeito da prova em contrário que Brasil e Turquia deram ao assinar com o Irã em 2010 a “Declaração de Teerã”, há quem sustente que tentativas de entendimentos com o país persa são inúteis devido à dificuldade de seu governo institucional de firmar compromissos independentemente das instâncias paralelas dos aiatolás, da Guarda Revolucionária e do estamento de segurança que controlam o país.

Por outro lado, é interessante observar que até o mais do que pró-Israel Gatestone Institute – International Policy Council tenha publicado em 7 de junho o artigo Is Trump ‘Going Wobbly’ on Iran?, de Majid Rafizadeh, reconhecendo que o Irã – face ao que ocorreu com a Líbia e com a Ucrânia – aprendeu a lição e nunca renunciará à busca de uma arma nuclear.

‘É muito provável que o Irã e outros países sob os mesmos riscos de perda da soberania estejam investindo pesadamente em busca de armas eletrônicas, digitais e outras que possam se contrapor aos armamentos avançados de que não dispõem para se proteger’

Nessas condições, é muito provável que não só o Irã como outros países sob os mesmos riscos de perda da soberania face a ameaças ou medidas concretas contrárias ao direito internacional de Trump, Putin e Netanyahu, bem como grupos não estatais e mesmo facções terroristas, estejam investindo pesadamente em inteligências artificiais altamente sofisticadas em busca de armas eletrônicas, digitais e outras que possam se contrapor aos armamentos avançados de que não dispõem para se proteger. 

É preciso estancar esse processo, que tem alto potencial de consequências trágicas. E ter presente que já foi muito harmonioso o relacionamento de grandes potências com o Irã, não só durante o regime do xá Mohammad Reza Pahlavi ou do seu pai.

 ‘Havendo vontade política, períodos de genuína cooperação poderiam ser resgatados’

Como lembra John Ghazvinian no livro America and Iran: A History, 1720 to the Present, de 2021, havendo vontade política, períodos de genuína cooperação poderiam ser resgatados. Assim é que o país festejou a independência dos EUA como uma força nova e revolucionária que liberaria o país da opressão a que esteve submetido ao longo da história sob os impérios mongol, russo, britânico e otomano. Nos anos 1920 e 1940 multidões foram às ruas protestar contra a dispensa do americano Arthur Chester Millspaugh da chefia do Tesouro Persa, por excesso de eficiência na defesa da economia do país, em detrimento dos interesses de Washington. Até Israel – hoje seu figadal inimigo – colaborou com o Irã no passado, como durante a guerra Irã-Iraque de 1980 a 1988.

É claro que há muitas dificuldades, hoje agravadas devido à polarização global e à amplificação de narrativas radicais pelas redes sociais que dificultam a diplomacia, alimentando bolhas de desinformação e rejeitando a harmonia em favor de conflitos que atraem atenção, votos e lucros. Algorítmos e pessoas radicalizadas detestam a paz, a tranquilidade, a ausência de atritos. Comprovam isso o aumento da popularidade de Trump e a sobrevivência política de Netanyahu em resposta às suas ameaças e atitudes agressivas.

‘É necessário voltar à mesa e trabalhar para a criação de um ambiente de cooperação que beneficie não apenas o Irã e seus parceiros, como também a estabilidade global’

É necessário voltar à mesa e trabalhar para a criação de um ambiente de cooperação que beneficie não apenas o Irã e seus parceiros, como também a estabilidade global. Ainda mais neste momento de tensão após ter a International Atomic Energy Agency (AIEA) declarado o país inadimplente com suas obrigações e logo após terem os confrontos escalado para o plano bélico, inclusive com ataques recíprocos. 

Em artigo de 13 de junho na Foreign Affairs, Kenneth M. Pollack advertiu que a mais ameaçadora resposta de Teerã  aos ataques que sofreu seria a saída do Non-Proliferation Treaty – NPT de 1968, base do Joint Comprehensive Plan of Action – JCPOA, de 2015, de que Trump se afastou em 2018, dando pretexto ao Irã para enriquecer urânio nos níveis elevados de hoje. Seria mais uma perda para a diplomacia, e novos riscos de mais guerra.

‘O cessar fogo é frágil e poderá ser rompido a qualquer momento’

Os últimos acontecimentos parecem reforçar tais previsões pessimistas. Em 28 de junho, multidões saíram às ruas em Teerã para acompanhar os funerais de militares e cientistas iranianos mortos em ataques israelenses e americanos, em clima de luto e revanche. Está em curso campanha de repressão interna contra supostos colaboradores com Israel. O Parlamento iraniano suspendeu a cooperação com a AIEA, proibindo a entrada de inspetores e o envio de relatórios. O chanceler iraniano diz que não há planos de retomar negociações com os EUA, contradizendo Trump, que ameaça bombardear novamente o Irã, o mesmo declarando o ministro da defesa de Israel. O cessar fogo é frágil e poderá ser rompido a qualquer momento.

Quem conhece o Irã sabe bem o quanto tem de história e produziu de cultura, o quão belas são suas cidades e sua gastronomia, o quanto é capaz de fazer apesar das sanções, e o quanto sua população altamente educada e simpática ao Brasil já se cansou de tantas restrições e radicalismos. A dúvida é se o seu patriotismo e amor ao país, somados aos agravados riscos em ambiente de caça a quaisquer dissidências, não serão mais fortes do que a insatisfação que boa parte tem em relação ao atual regime iraniano, levando-as a defendê-lo ao lado de forças internas radicais, fortalecendo-as ainda mais e tornando assim mais difícil a via da paz que tanto desejam e que aquelas tanto temem.

Eduardo Gradilone é diplomata, advogado e mestre em Direito Constitucional pela USP. Na carreira diplomática serviu em Washington,Bogotá, Paramaribo, Londres, Tóquio e Cidade do Vaticano. Foi subsecretário das Comunidades Brasileiras no Exterior no Itamaraty, e embaixador em Wellington, Ancara, Bratislava e Teerã

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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