28 abril 2025

O Novo Não-Alinhamento? A autonomia estratégica das potências médias em um mundo fragmentado

O Brasil deve mesmo afirmar sua soberania e seu papel singular como país continental, democrático, multicultural e vocacionado à mediação. Mas afirmar soberania não pode significar abdicar da responsabilidade de se posicionar com clareza em temas fundamentais da ordem internacional

Abertura da Primeira Reunião de Sherpas da presidência brasileira do BRICS Foto: Ricardo Stuckert / PR

Em meio ao agravamento das tensões entre Estados Unidos e China, à guerra prolongada na Ucrânia e ao novo ciclo de violência entre Israel e Hamas, o sistema internacional parece deslizar novamente para uma lógica de blocos. Não mais no modelo rígido da Guerra Fria, mas em uma configuração fluida e imprevisível, onde alianças tradicionais perdem estabilidade e novas coalizões emergem conforme os interesses estratégicos do momento. Nesse cenário, potências médias como o Brasil ensaiam um retorno — ou talvez uma reinvenção — da velha prática do não-alinhamento.

Diferentemente do Movimento dos Não-Alinhados nascido em Bandung (1955) e consagrado em Belgrado (1961), o que vemos hoje é menos uma postura coletiva e mais uma multiplicidade de estratégias nacionais que buscam preservar a autonomia frente às pressões de um mundo bipolarizado.

‘O objetivo não é apenas evitar escolher lados, mas sim maximizar ganhos em um cenário onde o jogo das grandes potências se tornou mais arriscado e menos previsível’

Índia, África do Sul, Indonésia, México, Turquia e, com crescente ambição, o Brasil, adotam posturas que oscilam entre o pragmatismo comercial, a diplomacia multilateral e, em alguns casos, uma retórica anti-hegemônica seletiva. O objetivo não é apenas evitar escolher lados, mas sim maximizar ganhos em um cenário onde o jogo das grandes potências se tornou mais arriscado e menos previsível.

No caso brasileiro, essa tentativa de afirmação de uma política externa autônoma reaparece com força no atual governo. Desde 2023, o país retomou a centralidade nos fóruns multilaterais, fortaleceu os laços com os Brics (agora Brics+), renovou sua presença em organismos internacionais — como a presidência temporária do G20 em 2024 — e buscou um papel de mediação em crises globais, como a guerra na Ucrânia e o conflito em Gaza. 

A diplomacia brasileira tentou abrir caminhos alternativos, seja ao propor uma “coalizão da paz” para o conflito russo-ucraniano, seja ao condenar os ataques a civis na Faixa de Gaza sem romper relações com Israel.

‘Há, no entanto, uma linha tênue entre neutralidade estratégica e omissão política’

Há, no entanto, uma linha tênue entre neutralidade estratégica e omissão política. Em março de 2024, por exemplo, o Brasil foi um dos poucos países do G20 a não subscrever uma declaração mais dura contra a invasão da Ucrânia. Já no Conselho de Segurança da ONU, onde ocupou assento temporário até o fim de 2023, o Brasil apresentou resoluções equilibradas sobre o conflito Israel-Hamas, mas enfrentou críticas de aliados ocidentais por não nomear diretamente o Hamas como organização terrorista. Essas escolhas não passam despercebidas — e tampouco são isentas de consequências.

Se, por um lado, a postura de neutralidade busca preservar o espaço diplomático e evitar comprometer a capacidade do Brasil de dialogar com múltiplos atores, por outro, ela também gera desconforto entre parceiros estratégicos. 

‘O jogo da autonomia pode, em determinados contextos, se chocar com as expectativas normativas e os limites simbólicos da política internacional contemporânea’

O presidente Lula chegou a ser criticado duramente por autoridades israelenses e norte-americanas após comparar as ações militares de Israel em Gaza ao Holocausto — uma analogia reprovada até mesmo por aliados tradicionais do Brasil. O episódio revelou o quanto o jogo da autonomia pode, em determinados contextos, se chocar com as expectativas normativas e os limites simbólicos da política internacional contemporânea.

A questão que se impõe, portanto, é se essa política de “não-alinhamento ativo” representa de fato uma estratégia coerente de inserção internacional ou se corre o risco de se tornar um instrumento de ambiguidade diplomática, onde o princípio da equidistância serve mais para evitar conflitos do que para construir alternativas. Em um mundo onde o multilateralismo está em crise, a neutralidade pode ser vista tanto como virtude quanto como omissão.

‘A ampliação dos Brics para incluir Irã, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos sinaliza uma tentativa de consolidar um contrapeso à ordem liderada pelo Ocidente’

Vale lembrar que a atuação internacional do Brasil ocorre em um momento de realinhamento global. Desde 2023, a ampliação dos Brics para incluir Irã, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos sinaliza uma tentativa de consolidar um contrapeso à ordem liderada pelo Ocidente. 

O Brasil, ao apoiar essa ampliação, mostra sua aposta em uma ordem multipolar, mas enfrenta o desafio de preservar seus compromissos com a democracia e os direitos humanos em um grupo cada vez mais heterogêneo. Entre os novos membros do Brics+, poucos compartilham os valores históricos da política externa brasileira no campo dos direitos e das instituições.

‘O Brasil tem buscado colocar temas como desigualdade social, transição energética e reforma das instituições de governança global no centro da agenda’

A presidência brasileira do G20 também revela os dilemas dessa posição. Com o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”, o Brasil tem buscado colocar temas como desigualdade social, transição energética e reforma das instituições de governança global no centro da agenda. Mas a capacidade de liderar um consenso global requer, além de legitimidade, uma clareza de posicionamento que nem sempre é fácil de sustentar diante de interesses tão diversos. Em janeiro de 2024, por exemplo, o governo brasileiro defendeu a taxação global de super-ricos, mas não conseguiu apoio unânime nem entre países do Sul Global, como Índia e Indonésia.

Potências médias têm, sim, um papel fundamental na construção de uma nova ordem mais plural, baseada em regras e representatividade. Mas isso exige mais do que equilibrismo geopolítico: exige uma política externa com clareza de valores, capacidade de articulação e, acima de tudo, coragem para exercer liderança sem se esconder atrás da retórica do “Sul Global”. Autonomia não é isolamento. E neutralidade, quando usada sem critério, pode custar caro — especialmente para quem ainda busca consolidar seu lugar no mundo.

‘Não se trata de submeter os interesses nacionais às pressões de Washington ou Pequim. Mas afirmar soberania não pode significar abdicar da responsabilidade de se posicionar com clareza em temas fundamentais da ordem internacional’

Não se trata de defender uma aliança automática com os Estados Unidos ou de submeter os interesses nacionais às pressões de Washington ou Pequim. Ao contrário: o Brasil deve mesmo afirmar sua soberania e seu papel singular como país continental, democrático, multicultural e vocacionado à mediação. Mas afirmar soberania não pode significar abdicar da responsabilidade de se posicionar com clareza em temas fundamentais da ordem internacional, como a defesa do direito internacional humanitário, o repúdio a agressões militares unilaterais, a promoção dos direitos humanos e o fortalecimento das instituições multilaterais.

O risco do novo não-alinhamento é tornar-se uma posição confortável demais. Sem os custos de alianças explícitas, mas também sem o peso de liderar soluções concretas. 

O Brasil tem credenciais únicas para protagonizar uma renovação da política internacional — sua experiência histórica com o multilateralismo, sua diplomacia profissionalizada, seu capital simbólico no Sul Global. Mas, para isso, será necessário mais do que equilíbrio entre polos: será preciso conteúdo, coerência e compromisso.

A história mostra que as potências médias podem ser decisivas nos momentos de inflexão global. Mas também mostra que as grandes transformações não vêm da neutralidade, e sim da coragem de articular alternativas reais. A pergunta que se coloca para o Brasil em 2025 é simples — embora incômoda: queremos apenas evitar o alinhamento, ou estamos dispostos a liderar uma nova forma de engajamento?

Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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