O risco de normalizar a ‘teoria do louco’ em Trump
A diplomacia, diferentemente do mundo dos negócios privados, é estruturada na previsibilidade, na continuidade e na coerência. É justamente isso que Trump despreza — e que não pode ser confundido com um cálculo estratégico

A expressão “teoria do louco” (madman theory) ganhou notoriedade nos anos 1970, associada ao presidente Richard Nixon e à sua política em relação à Guerra do Vietnã (1).
A lógica era relativamente simples: ao cultivar deliberadamente uma imagem de imprevisibilidade, Nixon buscava convencer adversários de que os Estados Unidos poderiam recorrer a medidas extremas, inclusive ao uso da força nuclear, caso não encontrassem concessões aceitáveis.
‘A encenação da irracionalidade era, paradoxalmente, um recurso calculado’
A encenação da irracionalidade era, paradoxalmente, um recurso calculado, uma ferramenta de pressão que funcionava dentro de limites definidos.
Nos últimos anos, essa mesma teoria tem sido evocada por alguns analistas para explicar o comportamento internacional de Donald Trump. Tal analogia, no entanto, é não apenas frágil como também perigosa.
Ao projetar a lógica da “teoria do louco” sobre Trump, corre-se o risco de conferir racionalidade a uma atuação que, na prática, mina os alicerces da credibilidade diplomática norte-americana e fragiliza a governança global.
Nixon e a encenação controlada
O contexto histórico é importante.
Nixon adotou a “teoria do louco” como parte de um conjunto de estratégias cuidadosamente planejadas para aumentar a pressão sobre o Vietnã do Norte e, indiretamente, sobre a União Soviética. A imprevisibilidade presidencial era, nesse caso, uma ferramenta deliberada de barganha.
Ainda que se tratasse de uma abordagem arriscada, havia nela um desenho racional, delimitado e direcionado a objetivos específicos.
‘A imagem do líder “capaz de qualquer coisa” estava a serviço de negociações circunscritas’
Nixon não buscava comprometer toda a política externa norte-americana. Ao contrário: a imagem do líder “capaz de qualquer coisa” estava a serviço de negociações circunscritas. Seus efeitos eram calibrados de acordo com interlocutores e situações.
Nesse sentido, mesmo que se critique a moralidade ou a eficácia da estratégia, havia um cálculo, uma lógica de coerência interna.
Trump e a confusão entre estilo e estratégia
Trump, por sua vez, não reproduz esse modelo. Seu comportamento não se limita a um expediente tático, voltado a situações ou atores específicos. Ao contrário, ele atua de forma errática e desarticulada, multiplicando frentes de atrito em escala global: União Europeia, China, Coreia do Norte, Irã, aliados da OTAN, organismos multilaterais, entre tantos outros.
‘Nixon encenava a irracionalidade; Trump parece confundir impulsividade com estratégia’
A diferença crucial é de escala e de consequência. Nixon encenava a irracionalidade; Trump parece confundir impulsividade com estratégia. Sua imprevisibilidade não se traduz em ganho de barganha, mas em erosão da credibilidade dos compromissos assumidos pelos Estados Unidos. No limite, o que se mina não é apenas a imagem pessoal de um presidente, mas a confiança na diplomacia norte-americana como instituição.
A credibilidade como pilar da diplomacia
Diplomacia é, em grande medida, a arte da palavra empenhada. Compromissos entre Estados, mesmo quando não codificados em tratados formais, dependem da expectativa de cumprimento. Credibilidade é o ativo invisível que sustenta negociações, alianças e regimes internacionais.
Ao adotar uma postura em que promessas podem ser desfeitas por um tuíte, em que acordos são denunciados unilateralmente sem negociação prévia, e em que aliados são tratados com a mesma desconfiança que adversários, Trump corrói esse pilar fundamental. A consequência é um ambiente de incerteza que dificulta a cooperação internacional e encoraja outros atores a igualmente relativizar compromissos.
‘O que Trump faz vai além da encenação: ele desestrutura as bases da prática diplomática’
Se todos acreditam que a palavra empenhada pode ser desfeita ao sabor de humores internos, a própria lógica do sistema internacional se enfraquece. O que Trump faz, portanto, vai além da encenação: ele desestrutura as bases da prática diplomática.
Do “louco estratégico” ao “louco sistêmico”
É nesse ponto que a comparação com Nixon se torna não apenas inadequada, mas enganosa.
A “teoria do louco” pressupõe uma racionalidade subjacente. No caso de Trump, a imprevisibilidade não é instrumentalizada em favor de objetivos claros, mas se torna o próprio método — ou, mais precisamente, a ausência dele.
‘Ao contrário de Nixon, Trump transforma a imprevisibilidade em regra’
Ao contrário de Nixon, que aplicava a estratégia em situações pontuais, Trump transforma a imprevisibilidade em regra, multiplicando choques e incertezas. Isso gera um efeito cumulativo: a percepção internacional de que os Estados Unidos deixaram de ser uma potência confiável.
O resultado não é um ganho de poder de barganha, mas um enfraquecimento do papel norte-americano como garantidor da estabilidade do sistema internacional.
A dimensão da responsabilidade hegemônica
O peso dos Estados Unidos no sistema internacional implica responsabilidades. Não se trata apenas de poder militar ou econômico, mas da função de “fornecedor de bens públicos internacionais”: estabilidade monetária, segurança coletiva, manutenção de regimes multilaterais, promoção de normas compartilhadas.
‘Ao abdicar da responsabilidade global dos EUA, Trump compromete a própria governança global’
Ao abdicar dessa responsabilidade em nome de uma política externa marcada pelo improviso e pela hostilidade indiscriminada, Trump não apenas compromete os interesses norte-americanos, mas também a própria governança global.
A retirada de compromissos, a recusa em honrar acordos e a deslegitimação de instituições multilaterais fragilizam mecanismos que, embora imperfeitos, têm garantido níveis mínimos de cooperação internacional.
Nesse sentido, o problema é duplo: interno, ao comprometer a credibilidade da diplomacia norte-americana; e externo, ao enfraquecer pilares da ordem internacional.
Diplomacia como prática de longo prazo
Outro aspecto relevante é a temporalidade da diplomacia. A construção de confiança é um processo cumulativo, que se sedimenta ao longo de anos e, muitas vezes, de décadas. Uma decisão intempestiva pode desmanchar rapidamente aquilo que levou gerações de diplomatas a consolidar.
‘Trump trata a política externa como se fosse uma negociação imobiliária, em que rupturas podem ser revertidas ou renegociadas a qualquer momento’
Trump trata a política externa como se fosse uma negociação imobiliária, em que rupturas podem ser revertidas ou renegociadas a qualquer momento.
Mas relações entre Estados não funcionam da mesma forma. Uma vez minada, a confiança não se recompõe de imediato. As cicatrizes institucionais e políticas permanecem, moldando as expectativas dos atores por muito tempo.
A diplomacia, diferentemente do mundo dos negócios privados, é estruturada na previsibilidade, na continuidade e na coerência. É justamente isso que Trump despreza — e que não pode ser confundido com um cálculo estratégico.
O risco da analogia
É compreensível que analistas busquem explicações para o comportamento de Trump. A teoria do louco oferece um enquadramento aparentemente elegante, conectando a imprevisibilidade presidencial a uma lógica de negociação já testada na história norte-americana.
No entanto, adotar essa analogia implica dois riscos. Primeiro, o de legitimar a atuação de Trump como se fosse uma estratégia racional, quando ela representa, na realidade, um esgarçamento das práticas diplomáticas. Segundo, o de obscurecer os efeitos mais profundos e duradouros de sua política externa: a corrosão da credibilidade e a fragilização da ordem internacional.
‘Tratar Trump como “louco estratégico” é um erro analítico. Ele não encena a imprevisibilidade: ele a institucionaliza’
Tratar Trump como “louco estratégico” é, em última instância, um erro analítico. Ele não encena a imprevisibilidade: ele a institucionaliza, com efeitos destrutivos para além de sua administração.
Conclusão: não normalizar a anomalia
Ao olharmos para Trump pela lente da “teoria do louco”, corremos o risco de normalizar o que é, na verdade, uma anomalia. Nixon usou a estratégia como instrumento circunscrito. Trump a converteu em prática sistêmica, com impactos que transcendem sua figura pessoal.
‘A diplomacia depende de previsibilidade, continuidade e credibilidade. Trump ataca esses fundamentos’
A diplomacia depende de previsibilidade, continuidade e credibilidade. Trump ataca esses fundamentos, enfraquecendo não apenas a posição dos Estados Unidos, mas também a governança global.
Portanto, não se trata de compreender Trump como um estrategista excêntrico, mas de reconhecer que sua atuação representa uma ameaça estrutural à diplomacia contemporânea.
Mais do que negociar como “louco”, ele compromete o próprio sentido da negociação internacional.
Referências:
JACOBSON, Zachary Jonathan. On Nixon’s Madness: An Emotional History. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2023.
Felipe Estre é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e King’s College London. Atualmente, é pós-doutorando na Universidade de Brasília, onde estuda o impacto da Nova Direita nas práticas diplomáticas. Além disso, é colaborador da Rede de Segurança e Defesa da América Latina (RESDAL).
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