O teste da diplomacia brasileira: Liderando o Brics+ em tempos de fragmentação global
Presidência brasileira do bloco testa capacidade de converter uma agenda cautelosa em ações multilaterais efetivas. Se o Brics+ aspira a reconfigurar hierarquias globais, precisará superar assimetrias internas e transformar retórica em cooperação concreta com a construção de pontes duradouras entre o Sul Global

Por Ghaio Nicodemos Barbosa e Stephanie Braun Clemente*
Em 1º de janeiro de 2025, o Brasil iniciou sua quarta presidência rotativa do Brics, agora rebatizado como Brics+, após a histórica expansão de 2023. O bloco, que originalmente reunia Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, incorporou Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã, além de contar com nove países parceiros e uma fila de mais de trinta candidatos.
Essa transformação não é casual: desde a Cúpula de Xiamen (2017), líderes apontavam a necessidade de ampliar a cooperação entre nações do Sul Global, movimento impulsionado pela crescente insatisfação com a arquitetura dos principais sistemas multilaterais. China e Rússia emergiram como os grandes defensores dessa ampliação, vendo nela uma alavanca para seus projetos geopolíticos e a desdolarização da economia global.
‘A heterogeneidade do Brics+ gera divergências que exigem mediação delicada, enquanto assimetrias econômicas persistem’
A presidência brasileira, porém, desenrola-se sob um cenário complexo. A heterogeneidade do Brics+ gera divergências que exigem mediação delicada, enquanto assimetrias econômicas persistem: cerca de 80% do comércio intrabloco ancora-se na China, com outros membros exportando commodities e importando bens de alto valor agregado.
Externamente, a política protecionista do presidente norte-americano, Donald Trump – que ameaça tarifas sobre produtos de membros do bloco – e conflitos como Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina adicionam camadas extras de tensão.
Nesse tabuleiro geopolítico, o Brasil busca equilibrar contradições, como o apoio à transição energética aliado à exploração de hidrocarbonetos e a defesa de soluções pacíficas de conflitos sem romper com aliados do bloco, como Irã e Rússia.
‘O papel brasileiro no bloco sempre foi singular. Como maior economia sul-americana, o país atua como ponte para a integração regional e promotor da cooperação Sul-Sul’
O papel brasileiro no bloco sempre foi singular. Como maior economia sul-americana, o país atua como ponte para a integração regional e promotor da cooperação Sul-Sul. Sua relevância manifesta-se em acordos como o Fundo China-Brasil de Cooperação em Investimentos e a Plataforma de Pesquisa Energética com a África do Sul, além de explorar seu soft power ao construir alianças em temas como combate à pobreza e saúde global.
Para o Brasil, os Brics+ representam não apenas acesso a mercados e financiamentos, mas um canal para ampliar sua voz na governança global e fomentar uma ordem multipolar menos desigual.
Sob o lema “Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável”, a presidência brasileira definiu seis eixos prioritários. Em saúde global, enfatiza o combate a doenças negligenciadas e acesso equitativo a vacinas. No campo comercial, promove transações em moedas locais para reduzir custos – sem, como frisa o governo, buscar a “desdolarização sistêmica” que alarmaria os EUA. A agenda climática busca alinhar o bloco às metas da COP30, enquanto a governança de IA explora seu papel na transição energética e desenvolvimento econômico. Completa o leque a defesa de soluções multilaterais para conflitos e o fortalecimento institucional do Brics+, incluindo novos critérios para a rotatividade da presidência que acomodem os membros recém-chegados.
Nos primeiros meses de gestão, ações concretas ganharam forma. Em fevereiro, reuniões de agências espaciais retomaram o Acordo de Satélites de Sensoriamento Remoto (2021), visando reduzir assimetrias tecnológicas. Em abril, ministros do meio ambiente firmaram compromissos sobre economia circular e desertificação, alinhados à Agenda 2030.
‘A segurança alimentar também entrou em cena com uma declaração ministerial que prevê estoques reguladores e apoio a preços mínimos de alimentos – resposta estratégica à volatilidade do mercado global’
No plano financeiro, a reeleição de Dilma Rousseff à frente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) até 2030, garantiu continuidade ao financiamento de projetos, enquanto mecanismos de pagamento em moedas locais avançaram como escudo contra sanções unilaterais. A segurança alimentar também entrou em cena com uma declaração ministerial que prevê estoques reguladores e apoio a preços mínimos de alimentos – resposta estratégica à volatilidade do mercado global.
No campo diplomático, o Itamaraty trabalhou para desvincular a agenda do bloco de narrativas “anti-Ocidente”. O assessor especial, Celso Amorim, reiterou que o Brics+ não busca confronto, mas correção de assimetrias internacionais. Esse tom pautou a Reunião de Chanceleres no Rio em abril, onde se negociou um documento de 62 parágrafos que servirá de base para a Cúpula de Chefes de Estado, que acontecerá em julho.
O texto enfatiza reformas na Organização das Nações Unidas (ONU), soluções pacíficas para conflitos em curso e a defesa do multilateralismo – ainda que divergências sobre Ucrânia e Palestina tenham exigido delicada moderação brasileira.
‘A presidência brasileira deu passos importantes ao estabelecer uma posição para que os Brics+ estejam em destaque no financiamento de ações climáticas e transição energética’
Nos últimos dois meses, a presidência brasileira deu passos importantes ao estabelecer uma posição para que os Brics+ estejam em destaque no financiamento de ações climáticas e transição energética, como a possibilidade do uso de moeda local no mercado de energia, conforme comunicado da 10ª Reunião de Ministros de Energia.
Mesmo com a pressão tarifária exercida pelos EUA contra a China, o bloco avança, fortalecendo o NBD como instituição chave para o desenvolvimento sustentável e expansão de infraestruturas críticas. A liderança brasileira contribui para institucionalizar espaços de participação da sociedade civil, mas ainda existem dúvidas sobre o potencial de efetivação de políticas públicas abrangentes nas áreas definidas como prioritárias para o bloco. Diferentes organizações já demonstraram preocupação de que a Cúpula dos BRICS repita os erros da Cúpula do G-20 para a participação de organizações da sociedade civil.
‘O ponto culminante da presidência brasileira ocorrerá em 6 e 7 de julho, quando o Rio de Janeiro sediará a Cúpula do Brics+’
O ponto culminante da presidência brasileira ocorrerá em 6 e 7 de julho, quando o Rio de Janeiro sediará a Cúpula do Brics+. A cidade decretou feriado nos dias do evento para facilitar a logística de segurança com a presença dos onze líderes nacionais.
O encontro terá três missões principais: consolidar a declaração final sobre governança inclusiva, definir critérios rigorosos para novas adesões (mais de 30 países aguardam análise) e articular posições comuns para fóruns como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a COP30 – esta última prioridade brasileira no segundo semestre. O tempo é um desafio adicional, pois a proximidade da COP30 encurtou o horizonte para resultados tangíveis.
Ao final desse ciclo, a presidência brasileira terá testado sua capacidade de converter uma agenda cautelosa em ações multilaterais efetivas. Se o Brics+ aspira a reconfigurar hierarquias globais, precisará superar assimetrias internas e transformar retórica em cooperação concreta – especialmente em comércio justo, financiamento climático e segurança alimentar. O sucesso não se medirá apenas nos documentos do Rio, mas na construção de pontes duradouras entre o Sul Global.
*Ghaio Nicodemos Barbosa é doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ, coordenador adjunto do Núcleo de Estudos Atores e Agendas de Política Externa (NEAAPE) e pesquisador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA).
Stephanie Braun Clemente é doutoranda em Relações Internacionais no PPGRI/UERJ e pesquisadora no Núcleo de Estudos Atores (NEAAPE) e Agendas de Política Externa e no Observatório Político Sul-Americano (OPSA).
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