21 agosto 2024

Por que o Brasil falhou em consolidar uma indústria nuclear doméstica

História do programa nuclear brasileiro é marcada por conturbados cenários políticos e econômicos que impactaram seu desenvolvimento. Falta uma política de longo prazo e pensamento estratégico para estabelecer um padrão de desenvolvimento ao programa nuclear com apoio estatal na promoção de investimentos nos centros de pesquisa

Vista geral das Usinas de Angra 1 e Angra 2, na Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto (CNAAA), em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

O Brasil, apesar de seu potencial e dos esforços contínuos ao longo das décadas, não conseguiu consolidar uma indústria nuclear robusta. No campo do desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovação (CT&I), o Brasil ainda se apresenta muito dependente de maquinário importado e os laboratórios de pesquisa frequentemente convivem com dificuldades orçamentárias por conta da escassez de recursos destinados pelo poder público. 

Esse contexto se apresenta controverso ao que a maioria da literatura de ciência política relata: um país no grau de latência nuclear; isto é, capaz de mobilizar seu programa para potencial produção de armas nucleares (caso seja um dia de seu interesse, algo nunca oficialmente idealizado por Brasília). 

‘O cenário atual do programa nuclear brasileiro é ainda de grandes dificuldades’

Nesse sentido, o cenário atual do programa nuclear brasileiro é ainda de grandes dificuldades: enquanto o Brasil alcançou a produção de urânio enriquecido em nível industrial em 2006, a produção de hexafluoreto de urânio (UF6) continua sendo um gargalo, necessitando de assistência da Europa ou do Canadá. As duas usinas nucleares do país, equipadas com reatores importados, enfrentaram uma crise de abastecimento em 2021, o que levou a negociações com o Cazaquistão. Projetos domésticos, como o reator multipropósito (RMB) para produção de isótopos medicinais, permanecem inacabados

O programa de investimento em bolsas de pós-graduação em parceria entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e os setores de energia nuclear do Brasil enfrentou interrupções significativas em 2021 devido a problemas orçamentários. Além disso, o Brasil ainda carece de uma instalação para a disposição de resíduos radioativos de baixo e médio nível. 

Em relação ao acordo nuclear com a Alemanha Ocidental, o Brasil construiu apenas Angra II e ainda enfrenta dificuldades financeiras e operacionais para construir Angra III. Por fim, sem a consolidação da a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) continua sobrecarregada, com funções simultâneas de implementação de projetos, fiscalização regulatória e alinhamento da indústria nuclear com os interesses nacionais e regulamentos da IAEA.

‘As restrições orçamentárias crônicas têm sido um dos maiores obstáculos ao progresso do programa nuclear brasileiro’

Em um estudo recente que realizei com Dawisson Belém Lopes, exploramos as razões por trás desse fracasso, destacando a influência de políticas inconsistentes, restrições orçamentárias e mudanças na diplomacia internacional. As restrições orçamentárias crônicas têm sido um dos maiores obstáculos ao progresso do programa nuclear brasileiro. 

Apesar dos aumentos recentes no financiamento à pesquisa sob a atual administração de Luiz Inácio Lula da Silva, os recursos permanecem insuficientes para sustentar um programa nuclear robusto. Essa falta de financiamento adequado tem levado à evasão de cérebros, com muitos cientistas e engenheiros talentosos buscando oportunidades no exterior. Além disso, a falta de recursos desestimula jovens a seguirem carreiras científicas, agravando ainda mais a situação – por exemplo, uma bolsa de mestrado da Capes equivale a R$ 2.200, valor pouco atrativo para egressos da graduação vis-à-vis os ordenados pagos no setor privado ou auxílios de pesquisa no exterior.

A história do programa nuclear brasileiro também está marcada por conturbados cenários políticos e econômicos que impactaram seu desenvolvimento. Crises subsequentes, como a crise financeira durante o governo de José Sarney e a crise política sob Dilma Rousseff, também atrasaram significativamente os avanços na área nuclear. Essas crises levaram a cortes orçamentários e à paralisação de projetos importantes, minando a continuidade e a sustentabilidade do programa nuclear. Contudo, o principal problema é a falta de uma política de longo prazo e um pensamento estratégico que fora mantido de forma a estabelecer um padrão de desenvolvimento ao programa nuclear com apoio estatal na promoção de investimentos nos centros de pesquisa e, igualmente, na educação da sociedade sobre a importância dessas tecnologias para produção de tratamentos médicos e ao agronegócio. 

‘A falta de uma estratégia coesa e sustentada tem sido um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento de um setor nuclear robusto’

Nesse sentido, o país demonstrou ao longo das décadas uma série de iniciativas e projetos ambiciosos, mas a falta de uma estratégia coesa e sustentada tem sido um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento de um setor nuclear robusto – inclusive, isso implica num distanciamento da formulação de política nuclear com os potenciais desenvolvidos pelos cientistas nacionais. Nota-se, muitas vezes, uma ânsia nacional por recuperar o tempo perdido sem buscar apoio dos laboratórios locais, levando a importação de tecnologias ou redirecionamento de orçamento para estratégias que não priorizem a robustez das iniciativas brasileiras no campo nuclear. 

Um exemplo significativo dessa problemática é o fim do grupo do tório no Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN) na UFMG em 1971, um projeto que ilustra as falhas do país na importação de tecnologia para melhorar seu programa nuclear nacional. 

O grupo do tório foi criado, na década de 1960, com o objetivo de explorar a utilização desse elemento como combustível nuclear, uma alternativa ao urânio. No entanto, o projeto enfrentou uma série de obstáculos. Primeiramente, o Brasil dependia fortemente de tecnologia importada para avançar suas pesquisas. Essa dependência resultou em um atraso significativo no desenvolvimento, já que as tecnologias importadas frequentemente não estavam totalmente adaptadas às necessidades locais ou eram adquiridas a um custo elevado. Além disso, houve uma falta de continuidade e financiamento consistente, o que prejudicou o progresso do grupo. Em última análise, o projeto foi abandonado, exemplificando como a falta de uma política de longo prazo e de uma estratégia clara pode levar ao fracasso de iniciativas potencialmente promissoras.

‘Em vez de desenvolver capacidades internas robustas, o país opta por soluções temporárias que dependem de assistência externa, o que cria um ciclo de dependência’

O fim do grupo do tório também expõe a questão das falhas estruturais no Brasil em relação à importação de tecnologia. Em vez de desenvolver capacidades internas robustas, o país muitas vezes opta por soluções temporárias que dependem de assistência externa. Isso cria um ciclo de dependência que dificulta a construção de uma indústria nuclear autônoma e sustentável. 

A dificuldade em estabelecer uma política de longo prazo e realista não apenas impede o progresso tecnológico, mas também afeta a capacidade do Brasil de competir no cenário global. A falta de investimento contínuo e de apoio governamental coerente torna difícil para o país aproveitar plenamente suas próprias reservas de tório e outros recursos naturais, resultando em uma subutilização de seu potencial.

Para avançar, o Brasil precisa de uma estratégia de CT&I mais coesa e sustentada. Isso inclui a necessidade de resolver os desafios orçamentários e políticos que historicamente têm impedido o progresso. Investimentos contínuos e adequados em pesquisa e desenvolvimento são cruciais para evitar a evasão de cérebros e incentivar a próxima geração de cientistas e engenheiros. Além disso, é necessário um compromisso político claro para apoiar a ciência e a tecnologia como pilares do desenvolvimento nacional.

As lições aprendidas com o programa nuclear brasileiro são cruciais para formular políticas que promovam de forma mais eficaz o desenvolvimento científico e tecnológico no país. A experiência brasileira destaca a importância de uma política estável e consistente, a necessidade de financiamento adequado e a importância de equilibrar as ambições nacionais com as pressões internacionais. Ao aprender com esses desafios, o Brasil pode desenvolver uma abordagem mais eficaz e sustentável para seu programa nuclear e para suas políticas de CT&I em geral.

João Paulo Nicolini Gabriel é doutor em Ciência Política pela UFMG e pela Universidade Católica de Louvain

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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