Racismo: Vinícius Jr. e a nova fronteira do preconceito no esporte
A história do esporte evidencia a presença de inúmeras estratégias de racismo, utilizadas por diversas estruturas de poder, sempre em articulação com os processos mais amplos em curso nas sociedades ocidentais. Essas estratégias modificam-se e se atualizam ao longo do tempo, invertendo muitas vezes a lógica racial que as orienta e define
A história do esporte evidencia a presença de inúmeras estratégias de racismo. Sem perder de vista as especificidades de cada contexto cultural, pode-se dizer que elas foram utilizadas por diversas estruturas de poder, sempre em articulação com os processos mais amplos em curso nas sociedades ocidentais. Além disso, convém salientar que essas estratégias modificam-se e se atualizam ao longo do tempo, invertendo muitas vezes a lógica racial que as orienta e define.
Sendo assim, impõe-se a seguinte indagação: qual estratégia encontra-se por trás dos ataques recorrentes a Vinícius Júnior na Espanha? Desdobrando a questão: por que, como tem questionado a imprensa especializada, ele foi o “escolhido” pelos racistas mais militantes nos estádios de futebol?
Para abordar essas questões, convém situar em uma perspectiva histórica e comparativa as estratégias usadas e as escolhas feitas pelo racismo no campo esportivo, tomando como referência as trajetórias de atletas afrodescendentes nos Estados Unidos, no Brasil e na Espanha.
Nos Estados Unidos, Jackie Robinson tornou-se em 1947 o primeiro afro- americano a atuar na Major League Baseball. Os adversários, no entanto, submeteram-no a todo tipo de provação. As “regras” do jogo, assinala o historiador Jules Tygiel, não permitiam ao atleta do Brooklyn Doodgers reagir aos insultos e combater as ofensas.
De acordo com o presidente da equipe novaiorquina naquela época, ele estava com “as mãos amarradas às costas”. Só lhe restava “sorrir”, “ser gentil”, demonstrando com esse comportamento que não se importava em ser “incomodado”, nem mesmo quando os adversários, como ocorrera contra o Philadelphia Phillies, lançavam mão de todo o vasto repertório racista para atingi-lo.
A estratégia baseada na segregação racial, porém, estava com os dias contados. Pouco a pouco, na esteira do sucesso comercial que a contratação do primeiro atleta afro-americano havia provocado no beisebol, as demais ligas profissionais estadunidenses passaram a promover a integração racial, caso da National Basketball Association. Em 1956, Bill Russel, contratado pelo Boston Celtics, fez sua estreia na liga. Na partida disputada no Missouri, contra o St. Louis Hawks, ouviu dos torcedores adversários os gritos de “volte para a África, babuíno!”
A integração racial no esporte não implicava o fim das agressões verbais, ao contrário, elas se tornavam mais estridentes e constantes, instituindo-se como uma expressão “natural” do espetáculo.
De fato, no Brasil, elas eram interpretadas pelos agentes brancos do campo esportivo como parte integrante da cultura futebolística. Nem mesmo Pelé escapava aos xingamentos de “macaco”, proferidos com regularidade nos estádios paulistas. Em 1965, durante uma partida realizada em Ribeirão Preto, contra o Comercial, o jogador do Santos foi implacavelmente perseguido, dentro de campo, pelos zagueiros adversários, fora das quatro linhas, pelos torcedores locais, mediante a exortação de “volte para a Guiné, vagabundo!”
Mais adiante, já na condição de tricampeão do mundo, Pelé teve de lidar com uma forma mais sutil e ardilosa de racismo. Em 1971 ele havia anunciado a decisão de não jogar mais pela Seleção Brasileira para se dedicar com mais tempo às atividades.
Todavia, enquanto Pelé reivindicava o direito de se deslocar no espaço social, trocando o calção e as chuteiras pelo terno e gravata, expoentes da imprensa esportiva, setores do público torcedor e agentes da ditadura militar acusavam-no de traidor da pátria, identificavam-no como mercenário, exigindo que ele voltasse atrás e continuasse a servir ao país dentro das quatro linhas, isto é, na condição de atleta de futebol, exibindo a “humildade” de sempre.
Se, no início do século passado, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, a estratégia racista visava impedir a entrada dos atletas de ascendência africana nas ligas e nas equipes, a partir dos anos 1970, ela sofria uma inversão, canalizando os afrodescendentes para a atuação no campo esportivo, isto é, para o lugar social que lhes cabia por “natureza”.
A nova estratégia racista, no entanto, comportava um risco inesperado. De fato, ela pressupunha que os atletas afrodescendentes se comportassem de acordo com as regras impostas a Jackie Robinson. Porém, nos anos sessenta, atletas de uma nova geração, Bill Russel, Muhammad Ali, Kareem Abdul Jabbar, respaldados pela ascensão dos movimentos sociais, de Martin Luther King tanto quanto o de Malcolm X, entraram em cena para converter o ringue de boxe, ou a quadra de basquete, em plataformas de informação e afirmação crítica, subvertendo a ordem sociorracial instituída no campo esportivo.
Compreende-se, assim, a referência à figura de Muhammad Ali feita por Vinícius Júnior na entrevista coletiva concedida antes da partida entre Brasil e Espanha, em Madrid, em março de 2024. Ela responde, em parte, à pergunta que tem sido formulada com insistência a cada vez que ele se vê alvo de ataques racistas: “Por que você foi o escolhido?”
As escolhas do racismo não são aleatórias, decerto, mas nem sempre recaem sobre os atletas mais combativos. Jackie Robinson foi “escolhido” porque era preciso definir, no momento em que começava a ruir a segregação racial no campo esportivo, as condições de participação dos atletas negros nas equipes e ligas brancas. Pelé foi “escolhido” porque era fundamental reafirmar o lugar dos negros na sociedade, associando-os às atividades identificadas como físicas, enquanto aos brancos continuavam a ser reservadas as funções consideradas intelectuais.
Vinícius Júnior, por sua vez, foi “escolhido” porque, no quadro da ascensão do fascismo – nos Estados Unidos, na Espanha ou no Brasil -, os jogadores negros devem se submeter às regras outrora impostas a Jackie Robinson, isto é, devem atuar com as “mãos amarradas às costas”, ou, como quer a âncora da Fox News, Laura Ingraham, reagindo em 2018 às críticas de LeBron James ao governo da extrema direita no país: “Cale a boca e drible!”. Eis a nova fronteira do racismo no esporte.
*José Paulo Florenzano é professor de ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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