10 novembro 2025

Reformar é descolonizar – a África na 80ª Assembleia Geral da ONU

A participação incipiente da África tanto na fundação da Liga das Nações quanto da ONU foi justamente pelo ‘empreendimento’ (se podemos ironicamente chamar assim) de 1884-1885: a Conferência de Berlim. Ou seja, claramente a colonização definiu profundamente as hierarquias mundiais e o lugar da África no sistema internacional

A presidente da Namíbia, Netumbo Nandi-Ndaitwah, relembrou que seu país utilizou a ONU como plataforma para reivindicar sua independência (Foto: ONU)

Entre 23 e 29 de setembro, representantes de países africanos discursaram na Reunião de Alto Nível da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), no seu aniversário de 80 anos. Apesar da longevidade, a ONU continua refletindo dinâmicas (neo)coloniais em suas estruturas, reforçando as desigualdades históricas existentes no sistema internacional e enfrentando uma crise de legitimidade. Torna-se crucial a reforma e adaptação da organização aos desafios contemporâneos, como as crises climáticas, terrorismo e a ameaça nuclear.

Em um cenário pós-Segunda Guerra Mundial, a ONU foi desenhada pelas potências vencedoras. De 51 membros fundadores da organização, apenas quatro eram países africanos independentes: a União da África do Sul, o Império Etíope, a República da Libéria e o Reino do Egito. Na fundação da sua antecessora, a Liga das Nações, de 42 membros fundadores, apenas os três primeiros países supracitados representavam o continente africano, com a incorporação do Egito em 1937. 

‘O cenário internacional mudou, os países africanos se independizaram e, até os dias atuais, o CSNU continua da mesma forma, sem nenhuma representatividade do continente africano em seus assentos permanentes’

O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) é um exemplo prático da configuração do mundo na sua criação: há apenas cinco assentos permanentes, os quais são ocupados pela França, Estados Unidos, Rússia, China e Reino Unido. Além desses países, há dez membros não permanentes que têm um mandato de dois anos no órgão. O cenário internacional mudou, os países africanos se independizaram e, até os dias atuais, o CSNU continua da mesma forma, sem nenhuma representatividade do continente africano em seus assentos permanentes.

Nos 75 anos da organização, em 2020, começou-se a pensar em uma agenda comum aos desafios atuais e futuros, apesar de as demandas por reformas já virem de tempos atrás. Com o comprometimento dos Estados-membros a fortalecerem a governança global, em setembro de 2021, o secretário-geral António Guterres compartilhou suas recomendações, em seu relatório, Nossa Agenda Comum. Em março deste ano, foi lançada a iniciativa UN80 para transformar o funcionamento da ONU, ou seja, “identificando eficiências, revisando como os mandatos são implementados e examinando potenciais mudanças estruturais e realinhamento de programas”.

‘Os principais itens da agenda africana incluíram uma cúpula bienal sobre financiamento para o desenvolvimento sustentável, uma Cúpula do Clima, e o lançamento de um Diálogo Global sobre Governança de IA’

Com o tema Melhores juntos: 80 anos e mais pela paz, desenvolvimento e direitos humanos, a sessão da AGNU deste ano foi marcada por ressaltar os novos desafios existentes no contexto internacional, reafirmando a necessidade de uma cooperação multilateral mais forte. Segundo a revista digital Africa Renewal, alguns dos principais itens da agenda africana incluíram uma cúpula bienal sobre financiamento para o desenvolvimento sustentável, essencial para o crescimento da África; uma Cúpula do Clima de importância urgente para as comunidades vulneráveis ​​da África; e o lançamento de um Diálogo Global sobre Governança de IA.

Dra Christie Agawu fez uma análise crítica sobre os países africanos na sessão, com discursos reafirmando poder, exigindo reformas tanto do CSNU quanto da ONU no geral, além de desafiar “uma ordem mundial que, muitas vezes, falou sobre a África em vez de falar com a África”. 

Em seu vídeo, Christie citou a entrevista da embaixadora Arikana Chihombori-Quao, que representou claramente o espírito dos países africanos na sessão da AGNU: “Sejamos realistas. […] A África não precisa de ajuda. O que precisamos é que aqueles que exploram a África parem. A África tem tudo o que precisa. Se a África pôde ter contribuído tanto para a recuperação da Europa após a Segunda Guerra Mundial, por que a África não foi igualmente desenvolvida?”. 

‘Os países africanos manifestaram em suas agendas a reforma das instituições financeiras internacionais, o reconhecimento do genocídio palestino, o embargo contra Cuba, mudanças climáticas e financiamento para o desenvolvimento’

De modo geral, o salão da Assembleia foi palco para discursos sobre visões nacionais de paz, desenvolvimento, direitos humanos e ação coletiva, trazendo a importância da cooperação multilateral do que ações individuais. Além do posicionamento em relação à reforma da organização, os países africanos manifestaram também em suas agendas a reforma das instituições financeiras internacionais, o reconhecimento do genocídio palestino, o embargo contra Cuba, mudanças climáticas e financiamento para o desenvolvimento. 

O presidente da Angola e da União Africana, João Manuel Gonçalves Lourenço, fez seu discurso ressaltando o direito da Palestina existir como Estado, repudiando termos como “populações terroristas” ou “crianças terroristas”. Além disso, “Nada é pior do que a exclusão da delegação palestina deste fórum, em que ela tinha o direito de fazer sua voz ser ouvida como Estado-Membro, nos termos do Acordo de Sede [the Headquarters Agreement]”.

A presidente da Namíbia, Netumbo Nandi-Ndaitwah, relembrou que seu país utilizou a ONU como plataforma para reivindicar sua independência, já que estava controlado pelo governo sul-africano do apartheid. Assim como o presidente de Angola, a presidente ressaltou o genocídio palestino, os conflitos na República Democrática do Congo (RDC) e a questão do Saara Ocidental. 

A presidente deu ênfase à cooperação multilateral para enfrentar os desafios comuns e ressaltou a importância do papel das mulheres nas instituições políticas: “A Namíbia continua progredindo na área da participação feminina na tomada de decisões. Atualmente, o Gabinete Namibiano conta com 57% de mulheres”. 

‘A colonização definiu profundamente as hierarquias mundiais e o lugar da África no sistema internacional’

Já o presidente de Gana, John Dramani Mahama, foi direto ao ponto: “é impossível fazê-lo [pensar no papel da África no futuro da ONU] sem primeiro considerar o papel coletivo que a África desempenhou na sua fundação, que foi pequeno e relativamente insignificante”. A participação incipiente da África tanto na fundação da Liga das Nações quanto da ONU foi justamente pelo ‘empreendimento’ (se podemos ironicamente chamar assim) de 1884-1885: a Conferência de Berlim. Ou seja, claramente a colonização definiu profundamente as hierarquias mundiais e o lugar da África no sistema internacional.

Estes discursos são alguns lembretes aos países do Norte de que não adianta seguir com retóricas bonitas sobre como o mundo deveria/pode ser se não há ações concretas daqueles que aprofundaram as desigualdades do Sul Global. Como Will Shoki, editor do Africa is a Country, disse: “O fato de a Assembleia continuar a ser importante reflete que ela não funciona como um instrumento de execução, mas como um palco global”. Já está mais que evidente que a organização não terá sucessos nas respostas aos desafios globais com estruturas não democráticas e que representem o mundo atual. 

A África, que representa mais de um quarto dos Estados-membros da organização, surge como uma voz central em busca por justiça e equidade. Não dá mais para continuar com um discurso enfatizando o multilateralismo se, na prática, é feita outra coisa, já que as antigas potências não querem abdicar da exclusividade e do poder de manter a estrutura da ONU como ela está. 

O continente africano precisa de seus próprios espaços, olhar para si (como já está fazendo) para não aceitar migalhas do Norte Global. Não são necessários mais 80 anos para a África reafirmar a sua importância no cenário internacional.

Camila Andrade é Research Fellow no Institute for Pan-African Thought and Conversation (IPATC), Universidade de Joanesburgo. Desenvolveu o Pós-Doutorado na UFPB, com o projeto "Decolonizando as Relações Internacionais no Brasil". Doutora em Ciência Política pela UFRGS, com Doutorado Sanduíche na Universidad Nacional de Rosario (UNR). Pesquisadora do Grupo Áfricas: sociedade, política e cultura. Mestre em Relações Internacionais pela UFSC, com pesquisa de campo em Ruanda. Suas principais linhas de pesquisa são Estudos Africanos e do Sul Global, Ruanda e Feminismos Negros. Criou o @camilaafrika, uma comunidade de democratização dos Estudos Africanos.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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