Crise do multilateralismo – Paralisia na OMC
Reunião ministerial em Abu Dhabi aprofundou os desencontros no órgão que deveria regulamentar o intercâmbio comercial e solucionar disputas entre países nessa área, enquanto considerações geopolíticas aumentam as incertezas
Reunião ministerial em Abu Dhabi aprofundou os desencontros no órgão que deveria regulamentar o intercâmbio comercial e solucionar disputas entre países nessa área, enquanto considerações geopolíticas aumentam as incertezas
Por Rubens Barbosa*
A reunião ministerial da OMC que se realizou em Abu Dhabi, na semana passada, confirmou a crise que paralisa os organismos internacionais. No momento em que considerações geopolíticas aumentam as incertezas e os choques no comércio internacional, o encontro aprofundou os desencontros no órgão que deveria regulamentar o intercâmbio comercial e solucionar disputas entre países nessa área. Países, como o Brasil, sempre contaram com o órgão multilateral para dirimir questões de natureza comercial que restringem o livre comércio. Proliferam hoje medidas protecionistas e subsídios ilegais, inclusive pelas referidas tensões geopolíticas, afetando o fluxo normal do comércio internacional, sem que os países afetados tenham a quem recorrer.
Temas importantes estavam na mesa para serem discutidos e aprovados. O restabelecimento do funcionamento do órgão de apelação, impedido de trabalhar plenamente pela não nomeação de juízes pelos EUA, foi um dos temas principais. A moratória para evitar tarifas sobre comércio eletrônico, estoques públicos de alimentos, acesso a mercado, protecionismo, subsídios à pesca foram outros temas em discussão, que não conseguiram consenso. Esses temas continuarão a ser discutidos pelos órgãos especializados da OMC, mas deverão esperar dois anos, até a próxima reunião ministerial no Camarões em 2026.
O Brasil defendeu a reforma da OMC com o fortalecimento do órgão de apelação do mecanismo de solução de controvérsias e se envolveu em todas as principais discussões. A questão mais controvertida foi a formação de estoque públicos de alimentos. A Índia queria transformar a autorização provisória da OMC para a formação desses estoques, em permanente, com a adicional facilidade de também poder exportar parte desses estoques. O Brasil se opôs à Índia fortemente nessa questão e também na questão da limitação dos subsídios, ao contrário da Índia que queria ampliar os subsídios para formar os estoques públicos de alimentos. O Brasil, nessa questão, propôs que essa autorização fosse dada apenas a países mais pobres e pequenos (LDCs).
Na questão de acesso a mercado, a proposta brasileira não avançou pela oposição da Europa e dos EUA.
As questões relacionadas com o comércio agrícola continuaram paralisadas e dificilmente avançarão em função das posições da Índia e da União Europeia. O acordo de subsídios à pesca, assinado em 2022 e que ainda não entrou em vigor, não conseguiu avançar no tocante à sobrepesca e excesso de capacidade, que se esperava fosse concluído nesta reunião ministerial.
Decisões sobre medidas de salvaguardas especiais (SSM) para proteger pequenos agricultores contra aumentos rápidos de importação e as restrições aos subsídios ao algodão também não avançaram.
Essas negociações ocorreram no momento em que grandes protestos acontecem com os agricultores se manifestando na India e na Europa, em busca de mais espaço político. Mais uma vez a OMC mostrou sua dificuldade em responder às demandas do Sul Global, da perspectiva da segurança alimentar.
O pedido da China e outros membros do pacto integrado por 130 países de Facilitação de Investimento para o Desenvolvimento, para entrar na OMC formalmente com um acordo multilateral, foi recusado sobretudo por oposição da Índia.
O comunicado final do encontro mostra o grau de marginalização da OMC em vista do adiamento de todas as decisões sem perspectiva de resolução a curto prazo. O colapso foi quase total. A única questão que pode ser considerada positiva foi a renovação da moratória para evitar tarifas sobre comércio eletrônico por mais dois anos. Os 164 membros se comprometeram, mais uma vez, a preservar e fortalecer a capacidade do sistema multilateral de comércio, com a OMC como referência, para responder aos desafios atuais no comércio internacional, mas na prática não houve qualquer avanço significativo.
No tocante à reforma do mecanismo de solução de controvérsias, os ministros reconheceram progresso feitos com vistas a permitir um sistema de solução de disputas funcionando e acessível a todos os membros ainda este ano e instruíram seus funcionários a acelerar as discussões, aproveitar os avanços já alcançados, e trabalhar nas questões não resolvidas.
Apesar das promessas contidas no comunicado ministerial, a OMC se transformou em um palco de debates técnicos no comércio exterior, sem possibilidade de cumprir o mandato desde sua criação no sentido de formular regras e de solucionar controvérsias no comércio internacional.
*Rubens Barbosa é diplomata, foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC. É presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional. Mestre pela London School of Economics and Political Science, escreve regularmente no Estado de São Paulo e no Interesse Nacional e é autor de livros como Panorama visto de Londres, Integração econômica da América Latina, O dissenso de Washington e Diplomacia ambiental
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Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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