03 março 2023

Rubens Barbosa: Ideologia e interesse nacional – O caso do Brexit

Seis anos depois do referendo que determinou a saída britânica da União Europeia, Reino Unido amarga sérios problemas econômicos, sociais e políticos. Para embaixador, caso é emblemático de contradição entre ideologia e interesse nacional com grande prejuízo para o país e deve servir de lição para o Brasil Por Rubens Barbosa* É muito conhecida a […]

Seis anos depois do referendo que determinou a saída britânica da União Europeia, Reino Unido amarga sérios problemas econômicos, sociais e políticos. Para embaixador, caso é emblemático de contradição entre ideologia e interesse nacional com grande prejuízo para o país e deve servir de lição para o Brasil

Manifestante protesta contra crise econômica no Reino Unido após o Brexit (Foto: CC)

Por Rubens Barbosa*

É muito conhecida a anedota de um jornal londrino, em dia de grande nevoeiro com condições climáticas muito negativas, ter publicado manchete que dizia: “Nevoeiro forte no Canal da Mancha: a Europa isolada da Inglaterra”.

Historicamente, nunca houve ao longo dos séculos o sentimento profundo de pertencimento à Europa por parte da população e dos governos britânicos.

Com muitas reservas, a Grã-Betanha se juntou à União Europeia, mas não ao sistema monetário europeu, sempre com posições próprias que, em alguns momentos, incomodaram seus parceiros no processo de integração.

Mais recentemente, em tempos de fake news, grupos ideológicos, conservadores, promoveram forte campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia, culminando no referendo de 2016, em que a maioria dos votantes apoiou o Brexit, a saída da Grã-Bretanha da comunidade de nações europeias. A decisão foi celebrada como uma vitória do nacionalismo, da força da sociedade britânica contra a ingerência e a burocracia de Bruxelas, sede das discussões políticas, econômicas e comerciais entre os 27 países que constituem a União Europeia.

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A vitória da ideologia sobre o interesse nacional está tendo uma grande repercussão negativa sobre o desenvolvimento político, econômico e comercial do Reino Unido com o aparecimento de problemas que foram mal equacionados na euforia da vitória no referendum.

Seis anos depois do Brexit e dois anos após o retorno das barreiras comerciais com a UE em decorrência da saída, o Reino Unido é a única economia desenvolvida que não se recuperou economicamente comparada com os números de antes da Covid-19 e o FMI prevê que o país terá o pior desempenho em 2023.

Os problemas se acumulam com o baixo crescimento, a alta da inflação (ao redor de 10%), o aumento dos impostos, o crescimento da imigração de fora da UE. Internamente, na UE, ficaram eliminados os controles alfandegários entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, mas fora do mercado comum, esses controles terão de ser restabelecidos ameaçando a paz na região. A Escócia, com boa parte da população buscando a independência em relação a Londres, não se conforma e busca permanecer na União Europeia. 

Do ponto de vista político, depois que saiu da UE, Downing Street já conviveu com 5 primeiros ministros, todos conservadores, cresce a divisão do país, apenas 28% da população acredita que a vida vai melhorar em 2023. Nos dias que correm, discute-se a substituição da legislação europeia por novas leis britânicas. Operação de grande complexidade, conduzida pela Câmara dos Lordes, muitos consideram como a legislação mais estúpida que o Parlamento deve analisar. Certas medidas encontraram resistência dos defensores do Brexit, mas os danos comerciais poderão mudar o sentimento geral.

Segundo pesquisa de opinião pública, mais de 60% dos britânicos creem que a saída da UE foi um erro e estariam dispostos a votar novamente agora para voltar a participar da integração europeia. Desse total, 79% são jovens que, por serem os mais afetados, querem rever a decisão do referendo. Não vai ser fácil, mas nas próximas eleições gerais, em caso de vitória dos trabalhistas, a volta do Reino Unido à UE poderá ser um tema vitorioso de campanha. O risco é se a UE não quiser…

Nesta semana, o primeiro ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, conseguiu o que seus antecessores não conseguiram: fechar acordo com a União Europeia sobre o trânsito de mercadorias entre o Reino Unido e a Irlanda do Norte. Essa era a questão mais difícil na negociação ainda incompleta relacionada com a legislação comercial entre Londres e Bruxelas.

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A saída do Reino Unido da UE foi contestada pelos norte-irlandeses, que têm um certo grau de autonomia em relação a Londres desde um acordo de paz de 1998. Após o Brexit, o Protocolo da Irlanda do Norte manteve a região como uma espécie de associada da UE, se beneficiando do livre comércio com o bloco. Para isso, teria de ser criada uma fronteira alfandegária entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido, enquanto teria passagem livre para a Irlanda, o que não é aceitável para os seguidores do Brexit, nem para o Partido Unionista na Irlanda do Norte. Com o acordo, será mantido um fluxo comercial normal dependendo do tipo de produto com o Reino Unido, e protegerá o status da Irlanda do Norte junto à UE. O mecanismo do acordo prevê a compensação das diferenças tributárias entre a UE e o Reino Unido. 

Todo o processo de saída do Reino Unido da UE  — ainda não completado — talvez seja o caso mais emblemático de contradição entre ideologia e interesse nacional com grande prejuízo para o pais.

O caso do Reino Unido deve ser lembrado sempre que surgir a ameaça de que a partidarização ou ideologização da política externa possa se repetir no Brasil


*Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Londres, é diplomata, presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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