05 junho 2024

Se na primeira tentativa você não conseguir…

Projeto da Ferrogrão ganha impulso enquanto governo Lula enfrenta dilema entre a perspectiva de desenvolvimento da Amazônia e da economia brasileira e necessidade de proteção dos direitos dos povos originários que vivem na região

O cacique Raoni Metuktire e o presidente Luís Inácio Lula da Silva durante cerimônia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente. Raoni cobrou de Lula o cancelamento do projeto da Ferrogrão (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

O ímpeto parece estar se formando para mais uma rodada de investimento em infraestrutura na Bacia Amazônica. O projeto do momento é a Ferrogrão, 933 km de ferrovia projetada para conectar Sinop, em Mato Grosso, a Miritituba, logo do outro lado de Itaituba, no rio Tapajós. A intenção é permitir uma exportação mais eficiente de commodities agrícolas para mercados internacionais, cumprindo assim a busca do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de integrar economicamente a América do Sul com um plano que ele chamou de Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul, ou IIRSA em resumo. 

O plano original de infraestrutura, ainda em andamento hoje, divide o continente em dez eixos de desenvolvimento. Um deles é para a Bacia Amazônica, que será transformada em um centro de transporte multimodal destinado a servir mercados internacionais com uma rede de ferrovias, hidrovias, rodovias e portos. 

‘As vantagens econômicas deste plano de infraestrutura em larga escala, e da Ferrogrão em particular, são difíceis de negar’

As vantagens econômicas deste plano de infraestrutura em larga escala, e da Ferrogrão em particular, são difíceis de negar. E os argumentos a seu favor, alardeados pelos interesses agrícolas do Brasil, são difíceis de evitar. O projeto tem defensores entusiasmados.

E por que não? Pela lógica econômica dos apoiadores do projeto, a Ferrogrão exibe as características de um projeto perfeito, algo puramente benéfico sem custos ocultos. 

A circunstância de fundo que deixa o setor eufórico é que a maior parte da produção agrícola de Mato Grosso atualmente é carregada em caminhões para uma longa e cara jornada até portos do sul, como Santos e Paranaguá, de onde é exportada para mercados distantes. Uma vez em funcionamento, a Ferrogrão interromperá instantaneamente esse sistema ineficiente com uma linha ferroviária indo na direção certa, ou seja, para o norte, reduzindo os custos de transporte em 30 a 40%. Isso se traduzirá em preços de mercado mais baixos e uma participação de mercado muito maior para os produtores brasileiros em uma série de commodities agrícolas. 

‘Os defensores observam que, além de trazer ganhos econômicos tremendos para a agricultura brasileira, a Ferrogrão ajudará o país a cumprir seu compromisso com o Acordo de Paris’

Os defensores observam que, além de trazer ganhos econômicos tremendos para a agricultura brasileira, a Ferrogrão ajudará o país a cumprir seu compromisso com o Acordo de Paris, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa (GEE), já que o transporte por caminhão é muito mais intensivo em combustíveis fósseis do que por ferrovia.

Como se esses benefícios não fossem suficientes, os defensores são rápidos em apontar que a construção e manutenção da Ferrogrão criarão empregos na Amazônia e permitirão que o agronegócio enfrente a pobreza no Nordeste brasileiro, fornecendo à região grãos baratos por meio das hidrovias amazônicas e entrega costeira.

Tudo isso é maravilhoso. Mas é bom demais para ser verdade? E o desmatamento, você pode perguntar. A resposta pronta do agronegócio: uma linha ferroviária não é como a BR-230 ou a BR-364, rodovias construídas com o propósito expresso de abrir terras para ocupação ao longo do direito de passagem. Pelo contrário, uma linha ferroviária conecta dois pontos distantes enquanto o direito de passagem permanece fora dos limites. Sem possibilidade de desmatamento, caso encerrado.

Como disse, o ímpeto parece estar se formando para este projeto, e um senso de sua inevitabilidade dado uma aclamação bastante ampla de suas virtudes, como acabamos de notar. Se a Ferrogrão é realmente o que seus orgulhosos defensores sugerem, representa algo nunca visto antes, um mega-projeto de infraestrutura construído em uma fronteira florestal sem danos ao meio ambiente.

Críticas ao projeto

Infelizmente, para o belo quadro que acabei de pintar, nem todos concordam com o agronegócio. Há alguns anos, juristas nos tribunais federais derrubaram uma medida provisória que permitia a redução do tamanho de uma área protegida, o Parque Nacional do Jamanxim, para facilitar a construção da ferrovia. Isso significa que o projeto está atualmente em espera enquanto os tribunais deliberam. 

Nem devemos esquecer das pessoas que realmente vivem na região e serão mais afetadas. Não estou me referindo aos oportunistas e políticos de pequenas cidades – e há muitos – que fizeram fortunas negociando em mogno, ouro e terras. Refiro-me àqueles de longa residência e conexão profunda. 

‘Dois dos povos indígenas mais renomados da Amazônia brasileira, os Kayapó e os Munduruku, estão insatisfeitos com a Ferrogrão, que tendem a ver como mais uma intrusão do governo federal em suas terras ancestrais’

De fato, dois dos povos indígenas mais renomados da Amazônia brasileira, os Kayapó e os Munduruku, estão insatisfeitos com a Ferrogrão, que tendem a ver como mais uma intrusão do governo federal em suas terras ancestrais. Como de costume, o governo federal esqueceu de consultá-los com antecedência, esquecendo mais uma vez que o Brasil assinou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que se compromete a fazer exatamente isso.

Claro, o agronegócio e os defensores da Ferrogrão são rápidos em apontar que a linha ferroviária não passa por nenhum território indígena, dado que segue uma rodovia já existente, a BR-163, construída em meados da década de 1970 e agora pontilhada com uma série de pequenas cidades como Castelo de Sonhos, Novo Progresso e Trairão. Isso é verdade, mas, em última análise, irrelevante quando levamos em conta a expansão do mercado de trabalho e os efeitos certos de surgir ao longo do tempo com sinergias de múltiplos projetos. 

‘Basta examinar as fotografias de Sebastião Salgado para ver como a excitação por novas oportunidades econômicas pode desencadear uma bomba populacional no meio ambiente amazônico’

De fato, os defensores estão entusiasmados com as perspectivas de emprego que a Ferrogrão trará, talvez até 100 mil empregos. Eles parecem esquecer o que acontece na Amazônia quando tantas pessoas chegam para procurar trabalho com suas famílias, suas famílias estendidas e seus animais de fazenda. Tudo o que é necessário é examinar as fotografias de Sebastião Salgado para ver como a excitação por novas oportunidades econômicas pode desencadear uma bomba populacional no meio ambiente amazônico, como aconteceu no estado do Pará com a descoberta de ouro em Serra Pelada.

Transformação econômica regional

Embora tais preocupações sejam legítimas, a verdadeira preocupação reside em como a Ferrogrão se encaixa em um esquema maior, cujo objetivo final é a transformação econômica regional. 

Para a Amazônia brasileira, a industrialização há muito é o prêmio e, especificamente, o valor agregado na manufatura que finalmente permaneceria dentro das fronteiras nacionais do Brasil. Tal transformação vem com uma multiplicidade de projetos desenvolvidos para se complementar, não com projetos individuais construídos um por um em um vácuo de efeitos limitados. 

‘A Ferrogrão representa apenas um componente de um grande plano de infraestrutura para o Vale do Rio Tapajós que visa algo mais do que enriquecer os agricultores de Mato Grosso’

Não é surpresa que a Ferrogrão represente apenas um componente de um grande plano de infraestrutura para o Vale do Rio Tapajós que visa algo mais do que enriquecer os agricultores de Mato Grosso. Este plano envolve – além da Ferrogrão – um complexo de barragens, uma hidrovia industrial, um sistema de portos e até outra ferrovia. Em suas administrações anteriores, Lula perseguiu vigorosamente esse plano, assim como a presidente Dilma Rousseff, até que a resistência dos povos Munduruku e seus aliados os parou em 2016.

Projetos de desenvolvimento na região amazônica (Foto: Robert Walker)

Com essas considerações em mente, uma pergunta naturalmente surge: devemos ver a Ferrogrão como o fim do programa de desenvolvimento de Lula no Vale do Tapajós ou como mais um passo dado em seu esforço prolongado, começando em sua primeira administração, para transformá-lo, e a Amazônia mais geralmente, com grandes projetos de infraestrutura? 

O dinheiro inteligente reconheceria a persistência da visão de Lula. Por sorte, os efeitos de longo prazo da infraestrutura não devem se manifestar tão cedo e, portanto, não comprometeriam sua promessa de acabar com o desmatamento até 2030.

‘O desenvolvimento amazônico possui uma inércia curiosa, e projetos considerados moribundos muitas vezes ressurgem’

O desenvolvimento amazônico possui uma inércia curiosa, e projetos considerados moribundos muitas vezes ressurgem. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, outra das iniciativas amazônicas de Lula, foi o passo final em um processo prolongado iniciado em 1975. Parecia ter terminado em protestos públicos em 1989, apenas para ser ressuscitado com um novo design e uma nova data de início de construção em 2011, durante a presidência de Rousseff.

Projetos de infraestrutura para a região do rio Tapajós (Foto: Robert Walker)

Se na primeira tentativa você não conseguir, tente e tente novamente.

Embora a Ferrogrão possa aproximar Lula dos interesses agrícolas e empresariais do Brasil, ele terá que prestar muita atenção aos seus apoiadores nas comunidades ambientalistas e indígenas, que são fundamentais para a face política que ele apresenta à comunidade global, especialmente com a aproximação da COP30.

De fato, Lula se encontrou com Macron em Belém, em março, para reconhecer as conquistas de Raoni Metuktire, líder da nação Kayapó e defensor ferrenho do meio ambiente amazônico. Macron viajou ao Brasil para conceder a Raoni a Ordem Nacional da Legião de Honra, a mais alta homenagem da França a cidadãos franceses ou estrangeiros cujas ações tenham tornado o mundo um lugar melhor.

Na cerimônia, Raoni foi direto com Lula e disse-lhe sem rodeios para não construir a Ferrogrão. Claramente, Raoni, aos 92 anos, tem muita experiência com os impactos de longo prazo dos projetos de infraestrutura na Bacia Amazônica. Lula ouvirá e, ao fazê-lo, enfrentará os ruralistas no Congresso Brasileiro? Ou exaltará o projeto da ferrovia como um modelo único de desenvolvimento sustentável e prometerá que nem uma árvore será cortada ou uma comunidade indígena será prejudicada.

Pelo menos até 2031.

Desmatamento em 2024

Embora pareçam surgir grandes projetos de infraestruturas no horizonte da Amazônia, Lula continua a presidir a uma queda nas taxas de desmatamento relativamente a tempos anteriores. O grupo de pesquisa Imazon informa que, nos primeiros quatro meses de 2024, a floresta amazônica perdeu 508 km2, uma queda de 58% quando comparada aos 1.203 km2 desmatados em 2023.

Robert Toovey Walker é colunista da Interesse Nacional, geógrafo, tem doutorado em ciência regional pela University of Pennsylvania e é professor de estudos latino-americanos e geografia na University of Florida

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter