A ‘questão militar’ invertida? Solução à vista? (parte 1)
Turbulenta relação entre civis e militares discutida atualmente reflete tensão nascida no Império e presente na história do país desde então. Em texto inspirado no historiador José Murilo de Carvalho, diplomata avalia que as respostas a esses desafios deverão moldar o destino do papel político das Forças Armadas e são a chance de superar a histórica República Tutelada
Turbulenta relação entre civis e militares discutida atualmente reflete tensão nascida no Império e presente na história do país desde então. Em texto inspirado no historiador José Murilo de Carvalho, diplomata avalia que as respostas a esses desafios deverão moldar o destino do papel político das Forças Armadas e são a chance de superar a histórica República Tutelada
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
Após quatro anos de turbulência nas relações entre poder civil e poder militar e da ameaça real de um golpe de Estado, o país debate hoje, de forma civilizada e democrática, a antiga questão militar, nascida nas últimas décadas do Império e até agora resiliente.
O tema do presente é o mesmo do passado, mas o propósito do debate é o inverso. No surgimento da questão militar, o Exército, então composto por jovens oficiais de boa formação técnica e científica, se sentia discriminada por um sistema imperial que privilegiava os bacharéis ligados aos políticos associados à oligarquia rural. Os jovens tenentes, inspirados no positivismo do mestre Benjamin Constant, pregavam a ordem, assegurada pelo Exército, e o progresso, resultante da abolição e da República.
Assim, o núcleo da questão militar da década de 1870 era a aspiração dos jovens oficiais por liberdade política para se manifestarem em defesa da abolição, da República, da corporação. Em contraste, hoje o núcleo da resiliente questão militar é o oposto – o desejo da sociedade de limitar o poder político dos militares, enfatizar sua profissionalização, e, assim, preservar a democracia.
Ou seja, o país vive hoje uma “questão militar” invertida. Há solução à vista? Uma resposta exige revisitar aspectos das principais intervenções militares- origem, motivação, resultado e desdobramento.
O tratamento diferenciado dispensado a oficiais e a bacharéis não era um problema trivial no final do Império. Refletia uma divergência mais ampla entre o segmento jovem e reformista de uma instituição emergente – o Exército – e um sistema monárquico decadente, resistente a mudanças e defensor de privilégios. As pressões por mudança eram intensas: sociais e econômicas – abolição da escravidão; bem como políticas e institucionais – República. A escravidão era uma vergonha histórica, e sua defesa por parte das oligarquias rurais perdia vigor com o aumento no número de escravos libertos e de imigrantes europeus. Ao mesmo tempo, a República, refletida no Manifesto de 1870, traduzia aspiração crescente das classes médias urbanas, de intelectuais e da imprensa.
O impasse se prolongava, e a solução final veio por meio do Golpe Militar que implantou a República. Curiosamente, seu protagonista – Marechal Deodoro – era monarquista e amigo pessoal do Imperador. Na época, confessou ao chefe do Gabinete de Ministros, Ouro Preto, que o Exército decidiu proclamar a República porque “era mal tratado pelo governo”. Essa confidência é importante, porque revela um comportamento recorrente do Exército ao longo da história: atua tanto pela ética da convicção – a República –, quanto pela ética da corporação – a defesa do Exército.
Assim, o golpe da República foi a primeira manifestação clara do papel político do Exército e da consciência de que a corporação deve ter papel de vanguarda na defesa lato sensu do país e da governabilidade. Era o resgate republicano do Poder Moderador do Império, assumido então, não mais pelo Imperador, mas pelo Exército. Até aqui não fizemos referência a Forças Armadas porque o papel da Marinha foi modesto, por contar com contingente muito menor e pelo reduzido envolvimento político.
O nascimento da “República da Espada” não podia deixar de ser conturbado. Dois presidentes militares assumiram o poder, mas a morte de Deodoro e Floriano, logo após seus mandatos, facilitou a transição do poder para os civis.
Apesar da ruptura da Monarquia para a República, o sistema político permaneceu dominado pelas oligarquias rurais. E os militares se transformaram na garantia desse modelo excludente. “A ausência do povo, eis o pecado original da República” (José Murilo de Carvalho – JMC). Isso não impediu períodos de instabilidade, como o Estado de Sítio no governo Hermes da Fonseca, e rebeliões militares, como o Movimento Tenentista de 1922 que, embora derrotado, preservou forte influência política. Ou seja, os militares não estavam no palco, mas inspiravam o enredo.
A Revolução de 30 foi o ponto de inflexão. “Foi necessário aguardar a década de 1930 para que a presença do povo se fizesse novamente sentir” (JMC). Mais uma vez, o Exército foi decisivo na vitória, tendo à frente o tenentismo, com o importante apoio das polícias militares estaduais. A corporação contribuiu, assim, para o nascimento do Brasil moderno, semi industrial e apoiado pelo operariado urbano. É verdade que muitos tenentes de 1922 apoiaram Vargas na Revolução de 30, mas foram sendo cooptados pelos conservadores, e terminaram por endossar a ditadura do Estado Novo sete anos depois.
A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, com a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), criou o paradoxo entre uma política externa democrática e uma ditadura doméstica. Uma vez mais, foi o Exército operou a inflexão, ao dar um ultimatum a Vargas para deixar o poder e anunciar eleições livres, vencidas pelo Marechal Dutra, ministro da Guerra de Vargas.
Vale aqui o paralelo entre Deodoro, um monarquista que proclamou a República, e Dutra, um simpatizante do nazismo, que assumiu a Presidência do Brasil democrático de 1945. Essa comparação revela um perfil recorrente no papel político do Exército: a hegemonia política da corporação tem mais relevância que a ideologia – no primeiro caso, o republicanismo, no segundo, a democracia.
Vargas assumiu três perfis ao longo da vida política, segundo seu biógrafo Lira Neto. O revolucionário de 30, o ditador do Estado Novo de 37 e o democrata – reformista – de 50. Com esse último Vargas, “veio a primeira experiência brasileira de conciliação da liberdade e da igualdade” (JMC). Iniciou reformas que ameaçaram poderosas forças econômicas nacionais e estrangeiras, aliadas com a liderança militar, o que teve como desfecho seu trágico suicídio.
A gigantesca manifestação popular em solidariedade ao pai dos pobres frustrou a elite militar, que preparava o golpe. “A multidão de um milhão de pessoas que acompanhou o corpo do presidente suicida indicou de que lado estava o mundo da necessidade” (JMC). Poucos anos depois, com a eleição de Juscelino Kubistchek, uma conspiração de oficiais da Aeronáutica tentou impedir a posse do Presidente eleito, rapidamente superada pela mão legalista do Marechal Lott.
O suicídio, reconhecidamente, adiou por dez anos o golpe militar, que veio a ocorrer em 1964. Pela primeira vez, a corporação militar, tendo o apoio do empresariado, das classes médias e do governo norte-americano, assume o poder e inaugura o autoritarismo, com o regime militar de 21 anos.
A imagem de um Exército reformista do passado desapareceu com o AI-5 de 1968 e outras medidas que implicaram: proibição do jogo político democrático, suspensão das liberdades individuais, graves violações de direitos humanos, mortes e execuções sumárias.
Com o golpe de 64, o desgaste da imagem pública das Forças Armadas foi inevitável. Em contraste, com a redemocratização e durante 33 anos, os militares respeitaram as instituições e se afastaram da política. Assim, recuperaram em grande medida o perfil de honestidade, profissionalismo e espírito público.
“Em 1985, retomou-se o ensaio de 1945. Mas até hoje a recuperação da liberdade não tem resultado em progresso significativo da igualdade. O Brasil continua uma democracia liberal, com liberdade, mas sem igualdade” (JMC). A partir da eleição de Bolsonaro, aquelas virtudes dos militares se transformaram em vícios.
Os amplos e profundos danos para a democracia durante o governo Bolsonaro são de domínio público – defesa do regime militar e dos ícones da tortura, como o Coronel Brilhante Ustra –; ataque às instituições representativas, em particular o Supremo Tribunal Federal (STF); tentativa de desacreditar o sistema eletrônico de votação; emprego de mais de 6.100 militares em funções civis; aparelhamento militar da Presidência da República e da Casa Civil, chefiada por generais; forte aproximação com polícias militares estaduais; negacionismo de vacinas na pandemia; desvio de presentes do Estado em benefício próprio; e provas robustas de tentativa de golpe.
Muitos desses crimes tiveram o envolvimento de militares reformados e da ativa, alguns deles de alta patente, inclusive membros do Alto Comando. O desfecho desse desvirtuamento do papel das Forças Armadas atingiu seu clímax no vandalismo – praticado por milhares de seguidores do presidente – das sedes dos Três Poderes. Esse episódio do 8 de janeiro era parte de um plano destinado a provocar caos social generalizado, na expectativa de que a liderança das Forças Armadas se sentisse pressionada a dar o golpe.
A fracassada tentativa de ruptura institucional exigiu mudanças imediatas do no Alto Comando das três Forças e o julgamento dos participantes, bem como dos financiadores da tentativa de golpe. Nessas condições, o principal desafio do atual governo consiste em limitar o papel político das Forças Armadas, sem, ao mesmo tempo, agravar sua imagem pública, tão desvirtuada no último governo.
Concretamente, os desafios atuais assumem diversos contornos. O principal deles é a forma de limitar o papel político das Forças Armadas e, nesse contexto, fixar o escopo das investigações envolvendo altas figuras militares, inclusive o ex-presidente. Também muito relevante será reformular o arcabouço jurídico que inspira o chamado poder moderador das Forças Armadas – o Artigo 142 da Constituição de 1988 –, por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Desafio adicional consiste em determinar o rigor das punições para os responsáveis pela tentativa de golpe do 8 de janeiro.
A substância e o formato das respostas a esses três desafios deverão moldar o destino do papel político das Forças Armadas. É a chance de começarmos a equacionar, de forma construtiva, a resiliente questão militar e, nesse sentido, superarmos nossa histórica República Tutelada.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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