Terrivelmente humanos – a violência do desaparecimento e a nossa tentativa de impor significado ao mundo
Série sul-coreana ‘Profecia do Inferno’ usa monstros e deuses cruéis para evocar um drama humanista que pode ser identificado na realidade brasileira de milhares de mortos e desaparecidos tratados através de um prisma moralista que separa os ‘cidadãos de bem’ dos “vagabundos” que merecem o castigo recebido
Série sul-coreana ‘Profecia do Inferno’ usa monstros e deuses cruéis para evocar um drama humanista que pode ser identificado na realidade brasileira de milhares de mortos e desaparecidos tratados através de um prisma moralista que separa os ‘cidadãos de bem’ dos “vagabundos” que merecem o castigo recebido
Por Christoffer Guldberg*
A série de drama sul-coreana Profecia do Inferno termina na noite de Seul com um pequeno gesto humano. Um taxista leva uma mulher que segura um bebé embalado no colo, protegendo-o da neve e do frio, por um caminho mais longo para evitar as pessoas que querem matar e sequestrar ela e o bebê, este último condenado a morte por um “Deus”. Num tom tranquilo, o homem (ou taxista) explica seu gesto com as seguintes palavras: “eu não sei muito sobre Deus, e nem me importo, mas sei uma coisa –este mundo pertence a nós, humanos, e devemos resolver os nossos problemas por nós mesmo”.
Com este gesto e fala termina o que é uma obra de arte radicalmente humanista, ou mesmo humana, já que, apesar da evidente inspiração no existencialismo de Albert Camus – particularmente sua obra prima, A Peste, este pequeno seriado transcende qualquer tentativa de análise ou de encaixe, seja ela política, religiosa, espiritual, estética ou psicológica.
Assim, não pretendo aqui analisar Profecia do Inferno, mas lançar mão da inspiração que a arte nos dá para pensar como devemos resolver nossos problemas.
Para fazer isso, entretanto, preciso resumir brevemente a série Profecia do Inferno, pois este drama se dá na Coréia do Sul quando de repente começam a surgir fantasmas ou “anjos” que “decretam” para as pessoas o dia e hora da sua morte, e que são destinados ao inferno. No horário determinado, os julgados são brutalmente mortos por monstros que depois do ato desaparecem para o vazio de onde vieram. Este fenômeno tem efeitos nas pessoas e na sociedade à medida que tentam impor algum significado e ordem na aparente aleatoriedade da violência e da morte. Assim surgem seitas religiosas, como a Nova Verdade e milícias violentas formadas por adolescentes convictos, todos procurando identificar os pecados dos condenados e implementar, por eles mesmos, o que julgam ser a palavra de “Deus”. O fazem torturando e queimando vivos os pecadores, expondo ao vivo a tortura e morte dos condenados, e obrigando filhos a denunciarem os pecados dos pais, seja jogo de azar, uso de pornografia, ou quaisquer outras transgressões religiosas e sociais.
É neste ponto que podemos viajar para o outro lado do nosso mundo onde a necessidade de impor significado à experiencia de violência e morte aparentemente aleatória se impõe também com brutal insistência. Assim, sabemos que, no Brasil, entre 2017 e 2022, desapareceram ao menos 369.737 pessoas, o que equivale a uma média de 203 pessoas por dia (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). É importante dizer que o número muito provavelmente é maior e nem por isso inclui pessoas que são mortas pela polícia em confrontos ou por “engano”, como o recente caso de um morador da Cidade de Deus, morto quando a polícia alegadamente confundiu um pedaço de madeira com uma pistola (Ferreira, 2023). Muitos destes desparecidos e mortos pela polícia continuam como meros números para a sociedade e o Estado, enquanto as famílias procuram as pessoas e os potenciais culpados.
Às vezes, no entanto, um caso vem à tona nesse mar de mortos. Um caso assim, é o de Amarildo de Souza. Assim, em seguida a este desaparecimento, partes da Polícia Militar tentaram impor um significado ao caso, ao atribui-lo à famosa categoria de “associação ao tráfico”, baseado em evidências falsificadas (G1 Rio, 2013; Pinto, 2013; Satriano, 2015; Serra & Soares, 2013), mas correspondendo a uma categoria e um significado socialmente potente. Se refere ao homem negro traficante e/ou usuário, categorias estas últimas que se confundem e se mesclam segundo a utilidade política e jurídica na tentativa sempre de criminalizar os homens negros, e associa-los a uma violência social e criminal, mas sobretudo nunca política, com o intuito de naturalizar e banalizar a violência contra esta população (Ferreira, 2017).
Apesar desta tentativa de criminalização da vítima e da família, a polícia não conseguiu definir este caso, e jornalistas, ativistas, artistas, sociólogos, antropólogos e cientistas políticos tentaram entender o que aconteceu como um caso de violência de Estado. Isso evitou que se limitasse à atribuição de responsabilidade penal dos autores imediatos do crime, e que deveria envolver uma reposta mais ampla da sociedade, e sobretudo uma resposta política (A Tarde, 2013; Alana, 2013; Medina, 2013; Resende, 2019; Stefanelli, 2013; Vargas, 2018).
Em frente deste movimento esteve a família de Amarildo e os moradores da Rocinha que, junto com vários grupos da sociedade civil, políticos, policiais, advogados e ativistas, tornaram o caso num evento, isto é uma ocorrência cujo significado não pode ser limitado a um vocabulário e uma narrativa já definidos, inclusive com base na cor da pele dos protagonistas.
Assim como do outro lado do mundo, o drama da violência é ao mesmo tempo, político, social, criminal, jurídico e psicológico. Este último nível nos leva a uma parte do drama sul-coreano que transcende o caso Amarildo, mas nem por isso é menos relevante para o contexto brasileiro, qual seja, a estrita conexão entre nossa íntima necessidade de encontrar sentido num mundo aleatório onde a morte é nossa única certeza, seja ela pelo Estado, pela violência, doença, no trânsito ou no seio da famosa família tradicional, e a procura de verdades transcendentes para compreender essa terrível verdade.
Em Profecia do Inferno, uma das consequências mais notáveis do aparecimento de “anjos” e monstros é a emergência de seitas religiosas, como a Nova Verdade, que procuram oferecer explicações que separam confortavelmente os pecadores dos cidadãos de bem, ao mesmo tempo explorando e oferecendo conforto às pessoas.
Dessa forma, a procura por significado tem um lado que pode embocar em práticas religiosas e repressivas, e vemos como os autonomeados pastores condenam em tom dramático os “pecadores” que vão morrer, encenando tais mortes e torturas ao vivo com orçamentos grandes em templos suntuosos. Tudo isto poderia se dar no Brasil, num mundo onde as pessoas desaparecem violentamente por monstros, ou morrem de doenças curáveis por falta de amparo de um Estado em cujo lugar a esperança de salvação evangélica toma um lugar tão importante.
Contra esta separação entre pecadores e cidadãos de bem, se rebela um grupo de pessoas lideradas por uma advogada, cuja mãe idosa foi assassinada por uma milicia religiosa, e um homem, cuja filha — de quem somente sabemos que queria ver o mar – recebe o “decreto” com dez segundos de antecipação quando ele, querendo realizar o desejo da filha, leva-a numa viagem de carro por uma linda paisagem do litoral onde ela é torturada e morta na frente do pai, desesperado e preso debaixo do carro.
Este pai e professor de sociologia se recusa a julgar a filha como pecadora e, se rebelando contra a religião moralista, diz calmamente que ele encara os decretos e demonstrações como catástrofes naturais, terremotos ou enchentes, mas que: “se este é verdadeiramente um ato de deus e sua vontade é essa que a Nova Verdade diz, não temos escolha senão de negar a deus, porque nesse caso ele não se importa conosco”. Por seu ativismo, este pai é vítima da milícia religiosa que o queima vivo, exibindo os restos mortais pendurados em frente à sua universidade como advertência.
Esta insurgência contra o moralismo religioso recebe uma inesperada ajuda quando a separação entre pecadores e cidadãos de bem é ameaçada onde menos se espera, de um pequeno e frágil bebê, nascido prematuramente. Este é o bebê cuja imagem encerra o drama, dormindo no colo da advogada, esta sim, terrivelmente humana, que se dedica a protegê-lo contra os fanáticos que querem eliminar esta aberração contra a doutrina; um bebe que só quer viver e – quem sabe – um dia ver o mar, sendo por isso condenado ao inferno.
Sabemos que, no Brasil, as mortes causadas por agentes do Estado, seja por omissão ou comissão, assim como desaparecimentos forçados ou mortes na fila do SUS, são enquadrados pelo Estado como mortes morais. Seja pela moral da austeridade econômica ou da austeridade pessoal que recusa qualquer uso do tempo que não seja “útil”, assim como o uso de drogas ou álcool, ou mesmo determinados estilo de música, valendo a pecha de “vagabundo” e justificando a morte ou prisão (Zaccone, 2015).
Contra este deus-estado separando os pecadores e os bons cidadãos, quem se opõe são essas mães, pais e filhos terrivelmente humanos que, movidos pelo amor materno, paterno, filial e de amizade, formam organizações da sociedade civil, movimentos como as Mães de Maio, Mães de Manguinhos, Mães de Acari e Mães de Xingu (Tatiana Lima, 2020), e atos de coragem individuais e coletivos como os que se formaram aos gritos que ainda ressoam no Rio de Janeiro e no Brasil – “Cadê Amarildo” e “Quem matou Marielle!”
*Christoffer Guldberg tem doutorado de dupla titulação em relações internacionais pela Universidade de São Paulo e King’s College London. A sua pesquisa foca na violência de Estado no Brasil e além, e trabalhou no Parlamento Europeu e na Organização Internacional das Migrações com a luta contra o tráfico de seres humanos, democracia e direitos humanos. Atualmente é professor de ciência política na Universidade Paris Dauphine, história e política da América Latina e Caribe na University College London, e prática e teoria de guerra e paz na City University London.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
A Tarde. (2013, October 7). Caetano Veloso lança campanha Somos Todos Amarildo. A Tarde. https://atarde.uol.com.br/famosos/noticias/1539157-caetano-veloso-lanca-campanha-somos-todos-amarildo
Alana, G. (2013, August 11). Parentes de vítimas da violência policial prestam solidariedade à família do pedreiro Amarildo. Empresa Brasileira de Comunicacao, 7–9. http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/08/parentes-de-vitimas-da-violencia-policial-prestam-solidariedade-a-familia-do
Correio Braziliense. (2014, July 10). Viúva do pedreiro Amarildo está desaparecida há 10 dias no Rio de Janeiro. Correio Braziliense, 7–10. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2014/07/10/interna-brasil,436833/viuva-do-pedreiro-amarildo-esta-desaparecida-ha-10-dias-no-rio-de-janeiro.shtml
Ferreira, D. (2017). The Banalization of Racial Events. Theory & Event, 20 (1), 61–65.
Ferreira, L. (2023, January 5). PM “confunde” madeira com fuzil e mata morador na Cidade de Deus. UOL. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/01/05/bope-confunde-fuzil-madeira-cidade-de-deus.htm
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2022). uma ausencia permanente desafios-para compreensao dos registros de desaparecimentos no brasil. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/06-anuario-2022-uma-ausencia-permanente-desafios-para-compreensao-dos-registros-de-desaparecimentos-no-brasil.pdf
G1 Rio. (2013). Conversa mostra farsa de PM para atribuir morte de Amarildo ao tráfico.
Medina, E. D. (2013). NARRATIVA E TESTEMUNHO COMO FORMAS DE ELABORAR A VIOLÊNCIA POLICIAL: SOBRE AMARILDO, MARTINIANO E OUTROS TRABALHADORES. REDD – Revista Espaço de Diálogo e Desconexão, Araraquara, v. 7, n. 1, Jun./Dez. 2013., 7(1). https://periodicos.fclar.unesp.br/redd/article/view/6380/5090
Pinto, M. V. (2013). Delegados discutem e trocam acusações sobre sumiço de Amarildo. In Terra (pp. 1–5). https://www.terra.com.br/noticias/brasil/policia/delegados-discutem-e-trocam-acusacoes-sobre-sumico-de-amarildo,9beb22b5b6e50410VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html
Resende, L. (2019). CADÊ O AMARILDO? – O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs (1st ed.). Baioneta Editora.
Satriano, N. (2015, April 30). Suborno no Caso Amarildo é confirmado pela Justiça Militar. O DIA, 1–9. https://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-04-30/suborno-no-caso-amarildo-e-confirmado-pela-justica-militar.html
Serra, P., & Soares, R. (2013, August 8). Delegado pediu prisão de mulher de Amarildo depois de deixar o caso. Extra, 1–6. https://extra.globo.com/casos-de-policia/delegado-pediu-prisao-de-mulher-de-amarildo-depois-de-deixar-caso-9412978.html
Stefanelli, J. (2013, August 12). Hackers invadem site do PMDB e cobram explicações a Cabral sobre Amarildo. O Dia, 1–8. https://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2013-08-12/hackers-invadem-site-do-pmdb-e-cobram-explicacoes-a-cabral-sobre-amarildo.html
Tatiana Lima. (2020, July 30). #ChacinaDeAcari30Anos: O Legado Das Mães de Acari e Suas Vozes Presentes. RioOnWatch.
Vargas, J. H. C. (2018). The denial of antiblackness: Multiracial redemption and black suffering. U of Minnesota Press.
ZACCONE, O. (2015). Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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