Tom das relações EUA-Brasil sob Trump ainda não é claro, segundo especialista
Sucesso do candidato do partido Republicano se deu graças a combinação de fatores que incluiu campanha profissional, estratégia bem-desenhada e mudanças na preferência de eleitores antes fiéis aos Democratas. Diferenças ideológicas e proximidade entre Trump e família Bolsonaro podem gerar pontos de tensão nas relações com governo brasileiro.
Por Renato Coelho*
O político republicano Donald Trump venceu a eleição presidencial dos Estados Unidos, ocorrida na terça feira, 5, ao conquistar a maioria dos 538 votos no Colégio Eleitoral e derrotar a candidata democrata, a vice-presidente Kamala Harris. A vitória foi anunciada a partir de projeções da imprensa norte-americana. Até a manhã desta sexta-feira (8), o número de votos no Colégio Eleitoral alcançado por Trump chegava a 301 delegados, e o de Harris, 226.
Trump venceu em mais da metade dos 50 estados do país, inclusive entre estados-pêndulo, grupo que inclui Carolina do Norte, Geórgia, Pensilvânia e Wisconsin. A apuração dos votos continua. Aos 78 anos, ele chega para seu segundo e último mandato na Casa Branca. Nos EUA, diferentemente do Brasil, a Constituição dos EUA impede que uma pessoa assuma a presidência por mais de duas vezes, mesmo que não consecutivas. Essa regra foi estabelecida na 22ª emenda, promulgada em 1951, depois de o democrata Franklin D. Roosevelt cumprir 4 mandatos consecutivos (1933-1945).
Primeiro presidente eleito condenado judicialmente
A vitória traz o bilionário de volta à cadeira presidencial após ter protagonizado um mandato repleto de polêmicas e escândalos (2016 – 2020). Ele também será o primeiro presidente na história do país a assumir o cargo após ser receber uma condenação judicial. Em junho, ele foi condenado por 34 acusações de irregularidades cometidas envolvendo pagamentos para silenciar a ex-atriz pornô Stormy Daniel antes das eleições de 2016. Trump ainda enfrenta outros processos judiciais, incluindo um por incitar a invasão ao Capitólio em 2020, acontecimento que marcou o fim do seu mandato.
Apoiado pela ala mais conservadora do Partido Republicano e por figuras controversas como o bilionário Elon Musk (dono da rede social X, da Tesla e da SpaceX), Trump conduziu sua campanha apostando em um discurso agressivo contra a imigração e martelando os problemas econômicos que os EUA enfrentaram nos últimos anos.
Na véspera da eleição, o republicano voltou a mencionar uma possível fraude eleitoral, o que suscitou temores de que não reconheceria o resultado em caso de derrota, como fez em 2020 após ser derrotado por Joe Biden.
Em 13 de julho, Trump sobreviveu a uma tentativa de assassinato durante um comício na cidade de Butler, no estado da Pensilvânia. Ele ficou ferido na orelha direita, ao ser alvejado por tiros disparados por um homem que estava em um terraço. Após algumas semanas, ele retornou a Butler para um grande comício ao lado de Musk.
Neusa Maria Pereira Bojikian, especialista em política econômica e internacional dos EUA, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas ligado ao IPPRI – Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp e pesquisadora e integrante Coordenação do INCT-INEU, analisa o cenário político dos EUA e os fatores que culminaram na vitória de Donald Trump.
“Ë preciso destacar que, além da vitória de Trump, os Republicanos também ganharam o controle do Senado. Por enquanto, a Câmara ainda não tem a liderança definida, mas há a possibilidade de que isso também venha a acontecer. De forma geral, Trump venceu graças a uma combinação de fatores estratégicos e contextuais. Ele fez uma campanha muito bem feita, a partir de uma operação política mais disciplinada e mais organizada do que as campanhas dele do passado. Ele usou um tom apelativo ao projetar cenários econômicos e imigratórios catastróficos. E atacou Kamala, depreciando sua capacidade de administrar o país. Ele acionou a alavanca do medo, e fez uma campanha no corpo a corpo para arrastar os eleitores às urnas. Também apoiou-se no uso muito intenso das mídias sociais, aproveitando-se de seus apoiadores, em especial o Elon Musk, e de grupos engajados”, analisa.
Neusa ressalta também a virada do eleitorado latino, que mostrou uma maior tendência de apoio aos Republicanos. “Essa mudança de padrão revela a importância de não tratar esse grupo demográfico como monolítico. Trump conseguiu reconhecer as complexidades e as variações internas e, portanto, a necessidade de customizar mais as campanhas. A essa nova tendência de crescimento junto aos latinos se somou a perda de apoio da classe trabalhadora aos Democratas. E o senador Bernie Sanders, que é independente, mas apoiou Harris e o Partido Democrata, já tinha chamado a atenção para isso. Ele criticou os Democratas, dizendo que não estavam em sintonia com as aspirações da maioria dos cidadãos. Ele disse que não seria nenhuma surpresa se o Partido Democrata, que abandonou a classe trabalhadora, viesse a descobrir que a classe trabalhadora também o abandonou. Isso acabou se concretizando”, diz.
Kamala Harris reconheceu a derrota
Após a divulgação das projeções, a candidata democrata Kamala Harris subiu em um palco instalado na Howard University, em Washington, com uma mensagem apaziguadora e de respeito pelos valores democráticos.
“Devemos aceitar os resultados. Hoje mais cedo, falei com o presidente eleito Trump e o parabenizei por sua vitória. Nos engajamos em uma transferência pacífica de poder”, declarou a vice-presidente. “O resultado dessa eleição não é o que queríamos, não foi para isso que lutamos, não foi para isso que votamos, mas me escutem quando eu digo que a luz da promessa da América brilhará sempre, desde que nunca desistamos e enquanto continuarmos luta”.
Segundo a pesquisadora da Unesp, a mensagem de Harris chamou a atenção para o comportamento da mulher diante da derrota. “Ela fez um discurso de concessão dirigido excepcionalmente aos apoiadores dela. Disse que estava fazendo essa concessão pois estava sendo leal à Constituição dos Estados Unidos. Ela demonstrou uma empatia muito grande pelo sofrimento desses grupos que estavam mais mobilizados para defender a campanha dela.”
O futuro das relações com o Brasil
Neusa diz que não é fácil antecipar qual o caminho que a diplomacia dos EUA poderá adotar a partir do ano que vem, tanto nas relações com o Brasil quanto com os demais países do mundo.
“É difícil fazer um prognóstico sobre a orientação política do Trump, porque ele não é um político típico, por assim dizer. Sua reeleição deve exigir dos países da América Latina, incluindo o Brasil, uma análise muito cuidadosa e estratégica, a fim de atravessar eventuais turbulências nas futuras interações diplomáticas e comerciais. Aqui estão várias questões que estarão no centro dessas interações. Por exemplo, existem as pautas referentes à política de imigração pela fronteira sul com o México, a questão da Venezuela, e também questões comerciais”, diz.
Ela lembra que Trump prometeu atacar o déficit comercial dos EUA com os seus parceiros. Isso já o preocupava desde seu primeiro mandato, e entre 2017 e 2023 o déficit só cresceu, atingindo um patamar muito alto. Esse foi um tema de destaque na campanha, e Trump chegou a falar de um plano para impor uma tarifa de 10% sobre todos os bens importados para os Estados Unidos. Nesse sentido, o México deve ser visado pelo novo governo, até por estar dentre os principais parceiros comerciais dos EUA. “Inclusive, mesmo após as piadas feitas por apoiadores do Trump em relação aos latinos, a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, disse que as relações dos países vão seguir fortes e pragmáticas”, explica a especialista em relações internacionais.
Já em relação ao Brasil, Neusa diz que também haverá impactos, atingindo em especial o aço e os produtos têxteis. Porém, os principais cuidados devem envolver as diferenças de postura dos governos. “Trump e Lula estão em extremos opostos no espectro político. Desde o início Lula apoiou Kamala, tem boas relações com Biden e compartilha pautas similares às dos Democratas. Por outro lado, Trump tem um relacionamento pessoal com a família Bolsonaro”, diz.
Esse cenário não implica que, necessariamente, as relações entre os dois países se tornarão turbulentas ou estarão fadadas ao rompimento. Mas devem ser bem desafiadoras. Lula terá que administrar esse relacionamento com bastante cuidado, porque vai pisar em ovos o tempo todo, já que o Trump é muito imprevisível e o Brasil, mais do que em qualquer outro momento, está envolvido com o bloco BRICS, uma via que permite ao país diversificar suas relações e buscar novos parceiros.
“Isso não quer dizer que esteja disposto a bater de frente com os EUA. Acho que o Brasil segue mais ou menos o comportamento das lideranças políticas mexicanas”, diz a estudiosa.
Este texto é uma reprodução livre de artigo publicado pelo Jornal da Unesp - https://jornal.unesp.br/
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